A
Evolução Espiritual da Humanidade
(O Influxo Divino
e A Pluralidade das Existências)
PITÁGORAS
(Filósofo
Reformador)
(Cerca
de 600 a 580 a.C. - Grécia)
"Deus extraiu a Terra do nada,
assim
como extraiu o Um do nada
para
criar a multiplicidade"
Pitágoras, Filósofo e Matemático.
Os
Mistérios de Delfos
“Conhece-te
a ti mesmo – e conhecerás o Universo e os Deuses.”
Inscrição do templo de Delfos
O Sono, o Sonho e o Êxtase são as três portas para o Além, de
onde nos vêm à ciência da alma e a arte da adivinhação.
A
Evolução é a lei da Vida.
O
Número é a lei do Universo.
A
Unidade é a lei de Deus.
Parte I
A
GRÉCIA NO SÉCULO VI
A alma de Orfeu atravessara como um divino meteoro o céu tempestuoso
da Grécia nascente. Com o seu desaparecimento, as trevas
a invadiram de novo. Após uma série de revoluções, os tiranos da
Trácia queimaram seus livros, derrubaram seus templos, expulsaram seus
discípulos. Os reis gregos e muitas cidades, mais preocupados com a liberdade
desenfreada do que com a justiça que decorre das puras doutrinas, imitaram-nos.
Quiseram apagar a lembrança do profeta, destruir seus últimos vestígios, e o
fizeram tão bem que, alguns séculos
depois de sua morte, uma parte da Grécia duvidava de sua
existência.
Em vão os iniciados conservaram sua tradição durante mais de mil
anos.
Em vão Pitágoras e Platão falavam dele como de um homem divino. Os sofistas e os
retóricos não viam nele mais do que uma lenda sobre a origem da Música. Ainda hoje os
estudiosos negam decididamente a existência de Orfeu. Apoiam-se principalmente
no fato de que nem Homero nem Hesíodo mencionam seu nome. Mas o silêncio desses
poetas se explica, amplamente, pela proibição a que os governos locais submeteram o nome do
grande iniciador. Os discípulos de Orfeu não perdiam ocasião de atribuir todos os
poderes à autoridade suprema do Templo de Delfos e não cessavam de repetir que
era preciso submeter as desavenças entre os diversos Estados da Grécia ao
conselho dos Anfictiões. Isto incomodava tanto os demagogos quanto os tiranos.
Homero, que provavelmente recebeu sua iniciação no santuário de Tir,
e cuja mitologia é a tradução poética da teologia de Sanconiaton, Homero, o
jônio, pôde muito bem ignorar Orfeu, o dórico, cuja tradição se mantinha tanto mais
secreta quanto mais era perseguida. Quanto a Hesíodo, nascido perto de Parnaso, deve ter conhecido
seu nome e sua doutrina através do santuário de Delfos. Mas seus iniciadores impuseram-lhe
silêncio, e com razão.
Orfeu, porém, vivia em sua obra. Vivia em seus discípulos e naqueles
mesmos que o negavam. Essa obra, qual seria? Essa alma viva, onde procurá-la?
Seria na oligarquia militar e feroz de Esparta, onde a ciência é desprezada, a
ignorância erigida em sistema, a brutalidade exigida como um complemento da
coragem? Seria nas implacáveis guerras de Messênia, onde os espartanos
perseguiram um povo vizinho até seu completo extermínio, ou os romanos da
Grécia se prepararam na rocha tarpéia e nos lauréis sangrentos do Capitólio,
precipitando num abismo o heróico Aristomeno, defensor de sua pátria? Ou seria
talvez na democracia turbulenta de Atenas, sempre pronta a sucumbir na tirania?
Seria na guarda pretoriana de Psístrato ou no punhal de Harmônio
e de
Aristógito, escondido sob um ramo de mirta? Seria nas inúmeras cidades
da Hélade, da Magna Grécia e da Ásia Menor, das quais Atenas e Esparta oferecem
dois exemplos opostos? Seria em todas aquelas democracias e aquelas tiranias
invejosas, ciumentas e sempre prestes a
se entredevorarem? Não. A alma da Grécia não está aí. Ela está em seus
templos, em seus mistérios e em seus iniciados. Ela está no
santuário de Júpiter em Olímpia, de Juno em Argos, de Ceres em Elêusis. Ela
reina em Atenas com Minerva, ela resplandece em Delfos com Apolo, que domina e invade todos os
templos com sua luz. Eis o centro da vida
helênica, o cérebro e o coração da Grécia. Aí vão instruir-se os
poetas que traduzem à multidão as verdades sublimes em imagens vívidas, os sábios
que as propagam em dialética sutil.
O espírito de Orfeu circula por toda a parte onde palpita a
Grécia imortal. Nós o encontramos nas competições de poesia e ginástica, nos jogos
de Delfos e Olímpia, instituições felizes imaginadas pelos sucessores do mestre
para reaproximar e fundir as doze tribos gregas.
Nós o tocamos com o dedo no tribunal dos Anfictiões, nesta assembleia
dos grandes iniciados, corte suprema e arbitral, que se reunia em Delfos, grande
poder de justiça e de concórdia, o único onde a Grécia encontrou sua unidade,
nas horas de heroísmo e de abnegação (1).
(1). O juramento
anfictiônico dos povos associados dá a idéia da grandeza e da força social
dessa instituição: “Juramos jamais
destruir as cidades anfictiônicas, jamais desviar, seja durante a paz, seja
durante a guerra, as fontes necessárias às suas necessidades. Se alguma
potência ousar empreendê-lo, marcharemos contra ela e destruiremos suas
cidades. Se os ímpios roubarem as oferendas do templo de Apolo, juramos
empregar nossos pés, nossos braços, nossa voz, todas as nossas forças, contra
eles e seus cúmplices.”
Entretanto, a Grécia de Orfeu, que tinha como intelecto uma pura
doutrina guardada nos templos, como alma uma religião plástica e como corpo uma
elevada corte de justiça centralizada em Delfos, essa Grécia começara a
periclitar desde o sétimo século. As ordens de Delfos não eram mais respeitadas. Violavam-se os
territórios sagrados. Isso porque a raça dos grandes inspirados havia
desaparecido. O nível intelectual e moral dos templos decaíra. Os sacerdotes se
vendiam aos poderes políticos. Os próprios Mistérios começaram a se corromper. O aspecto geral
da Grécia havia mudado. À antiga realeza sacerdotal e agrícola sucediam, aqui,
a tirania pura e simples, ali, a aristocracia militar, lá ainda, a democracia
anárquica. Os templos tornaram-se impotentes para prevenir a dissolução
ameaçadora. Necessitavam de uma ajuda nova.
Uma vulgarização das doutrinas esotéricas fazia-se necessária.
Para que o pensamento de Orfeu pudesse viver e se propagar com todo brilho, era
preciso que a ciência dos templos passasse às ordens laicas. Ela se insinuou,
pois, sob diversos disfarces, na mente dos legisladores civis, nas escolas dos
poetas, sob o pórtico dos filósofos. Estes sentiram, em seu ensinamento, a
mesma necessidade que Orfeu havia reconhecido para a religião, a necessidade de duas
doutrinas: uma pública, outra secreta, que expusessem a mesma verdade, sob
medidas e formas diferentes, próprias ao desenvolvimento de seus alunos. Esta
evolução deu à Grécia seus três grandes séculos de criação artística e
esplendor intelectual. Ela permitiu ao pensamento órfico, que é ao mesmo tempo o impulso
primeiro e a síntese ideal da Grécia, concentrar toda sua luz e se irradiar por
todo o mundo, antes que seu edifício político, minado pelas dissensões
internas, fosse abalado pelos golpes da Macedônia, para desmoronar, enfim, sob
o punho férreo de Roma.
A evolução de que falamos teve muitos obreiros. Ela suscitou físicos
como Tales, legisladores como Sólon, poetas como Píndaro, heróis como
Epaminondas. Mas teve um chefe
reconhecido como tal, um iniciado de primeira ordem, uma inteligência soberana,
criadora e ordenadora: Pitágoras. Ele é o mestre da Grécia laica, como Orfeu é o mestre da Grécia
sacerdotal. Ele traduz e continua o pensamento religioso de seu predecessor,
aplicando-o aos novos tempos. Essa tradução, porém, é uma criação, visto que
ele coordena as inspirações órficas em um sistema completo; fornece delas a
prova científica em seu ensino e a prova moral em seu instituto de educação, na
ordem pitagórica que a ele sobrevive.
Embora apareça em plena luz da História, Pitágoras permaneceu sempre
um personagem quase legendário. A principal razão disto está na perseguição
obstinada de que foi vítima na Sicília e que custou a vida a tantos
pitagóricos. Uns pereceram sob os escombros de sua escola incendiada, outros
morreram de fome num templo. A lembrança e a doutrina do mestre somente se perpetuaram por meio
de alguns sobreviventes que conseguiram fugir para a Grécia. Platão, com dificuldade
e por um alto preço, obteve por intermédio de Arquitas um manuscrito do mestre,
que, aliás, escrevera toda sua doutrina com sinais secretos e de forma
simbólica. Sua verdadeira ação, como a de todos os reformadores, se
exercia pelo ensinamento oral. Mas a essência do sistema consiste nos Versos Dourados de
Ísis,
no comentário de Hiérocles, nos fragmentos de Filolaus e de Arquitas, assim como no Timeu
de Platão, que contém a cosmogonia de Pitágoras. Enfim, os escritores da Antigüidade
estão repletos do filósofo de Crotona. São inesgotáveis; as historietas que
pintam sua sabedoria, sua beleza e seu poder maravilhoso sobre os homens. Os
neoplatônicos de Alexandria, os gnósticos, e até os primeiros Padres da Igreja
citam-no como uma autoridade. São preciosas testemunhas, nas quais vibra sempre
a poderosa onda de entusiasmo que a grande personalidade de Pitágoras soube
comunicar à Grécia, e cujos derradeiros ecos são ainda perceptíveis oito
séculos após sua morte.
Vista do alto, aberta com as chaves do esoterismo comparado, sua doutrina apresenta um
magnífico conjunto, um todo solidário cujas partes estão ligadas por uma
concepção fundamental. Encontramos nela uma reprodução racional da doutrina esotérica da
Índia e do Egito, à qual deu a clareza e a simplicidade helênicas,
acrescentando-lhes um sentimento mais enérgico, uma idéia mais nítida da liberdade
humana.
Na mesma época e em diversos pontos do globo, grandes reformadores
divulgavam doutrinas análogas. Lao-Tsé saía, na China, do esoterismo de Fo-Hi. O último Buda, Sáquia-Muni,
pregava às margens do Ganges. Na Itália, o sacerdócio etrusco enviava a Roma
um iniciado munido dos livros sibilinos, o rei Numa, que tentou refrear, por meio de sábias instituições, a
ameaçadora ambição do Senado romano.
E não
foi por acaso que esses reformadores apareceram ao mesmo tempo entre povos tão
diversos. Suas diferentes missões concorrem para um objetivo comum. Elas provam que em certas épocas uma mesma corrente espiritual
atravessa misteriosamente toda a humanidade. De onde vem essa corrente? Do mundo
divino que está fora de nossa vista, mas do qual os gênios e os profetas são os
enviados e as testemunhas.
Pitágoras atravessou todo o mundo antigo antes de revelar sua palavra
à Grécia. Ele conheceu a África e a Ásia, Mênfis e Babilônia, sua política e
iniciação. Sua vida agitada assemelha-se a uma nave lançada em plena
tempestade. Soltas as velas, ela demanda o porto, sem se desviar da rota,
imagem da calma e da força no meio dos elementos desencadeados. Sua doutrina é
como uma noite fresca que sucede ao ardor intenso de um dia sangrento. Ela
evoca a beleza do firmamento que pouco a pouco desenrola seus arquipélagos
cintilantes e suas harmonias etéreas sobre a cabeça daquele que vê.
Tentemos separar uma e outra das obscuridades da lenda e dos preconceitos
da escola.
Parte
II
OS
ANOS DE VIAGEM
No começo do sexto século antes de nossa era, Samos era uma das ilhas
mais florescentes da Jônia. A enseada de seu porto abria-se diante
das montanhas cor de violeta da quente Ásia Menor, de onde
vinham todos os luxos e todas as seduções. Numa larga baía, a cidade se estendia
sobre a margem verdejante e se dispunha em anfiteatro sobre a montanha, ao pé
de um promontório coroado pelo templo de Netuno.
As colunatas de um palácio magnífico sobressaíam.
Ali reinava o tirano Polícrates. Este, depois de ter privado
Samos de suas liberdades, dera-lhe o brilho das artes e de um esplendor asiático.
Hetaíras de Lesbos, chamadas por ele, tinham-se estabelecido em um palácio
vizinho ao seu e convidavam os jovens da cidade para festas, onde elas lhes
ensinavam as volúpias mais refinadas, temperadas com música, danças e festins.
Anacreonte, chamado por Polícrates a Samos, para lá se dirigiu sobre um
trirreme com velas cor de púrpura e mastros dourados. E o poeta, com uma taça
de prata cinzelada a mão, fez ouvir diante desta alta corte do prazer suas odes
acariciantes e perfumadas como uma chuva de rosas.
A sorte de Polícrates tornara-se proverbial em toda a Grécia.
Ele era amigo do faraó Amasis, que várias vezes o advertira que desconfiasse de
uma felicidade tão constante e que, sobretudo, dela não se gabasse. Polícrates
respondeu ao aviso do monarca egípcio, atirando seu anel ao mar e dizendo:
“Faço este sacrifício aos Deuses”. No dia seguinte, um pescador levou ao tirano
o anel precioso que encontrara no ventre de um peixe. Quando o faraó soube
disto, declarou que rompia sua amizade com Polícrates, porque uma felicidade
tão insolente atrair-lhe-ia a vingança dos Deuses.
Seja qual for a veracidade desta historieta, o certo é que o fim
de Polícrates foi trágico. Um de seus sátrapas o atraiu a uma província vizinha,
mandou matá-lo sob terríveis tormentos e ordenou que pregassem seu corpo numa
cruz, no monte Micala. Assim os sâmios puderam ver, em um sangrento pôr-de-sol,
o cadáver de seu tirano crucificado num promontório, diante da ilha onde ele
reinara na glória e
nos prazeres.
Mas voltemos ao princípio do reinado de Polícrates. Em noite clara,
um jovem estava sentado numa floresta de agnus-cactus de folhas luzidias, não
longe do templo de Juno, cuja fachada dórica a lua cheia banhava e cuja mística
majestade fazia ressaltar. Há muito tempo um rolo de papiro, contendo um canto
de Homero, estendia-se a seus pés.
Sua meditação, iniciada no crepúsculo, durava ainda e se prolongava no silêncio
da noite. Há muito tempo o sol se pusera, mas seu disco chamejante flutuava
ainda diante do olhar do jovem sonhador como algo irreal. Seu pensamento vagava
longe do mundo invisível.
Pitágoras era filho de um rico joalheiro de Samos e de uma mulher
chamada Partênis. A Pítia de Delfos, consultada durante uma viagem, pelos
jovens recém-casados, prometera-lhes “um
filho que seria útil a todos os homens, em todos os tempos”, e o oráculo
enviara os esposos a Sidon, na Fenícia, para que o filho predestinado fosse concebido,
gerado e nascido longe das influências perturbadoras de sua pátria. Antes mesmo
de seu nascimento, a criança maravilhosa fora dedicada por seus pais à luz de
Apolo, na lua do amor.
O menino nasceu; quando completou um ano, sua mãe, atendendo ao
conselho dos sacerdotes de Delfos, levou-o ao templo de Adonai, num vale do
Líbano. Lá, o pontífice o abençoou. Depois a família voltou a Samos. O filho de Partênis
era muito bonito, meigo, moderado, pleno de senso de justiça. Somente a paixão
intelectual brilhava em seus olhos e imprimia aos seus atos uma energia
secreta. Longe de contrariá-lo, seus pais encorajavam sua inclinação
precoce para o estudo da sabedoria. Assim, ele pôde livremente conferenciar com os sacerdotes de
Samos e com os sábios que começavam a fundar, na Jônia, escolas onde ensinavam
os princípios da Física. Aos dezoito anos, recebia as lições de Hermodamas, de
Samos; aos vinte, as de Ferecides, em Siro. E já conferenciara com Tales e
Anaximandro, em Mileto. Estes mestres tinham-lhe aberto novos horizontes, mas
nenhum satisfizera. Entre seus ensinamentos contraditórios ele procurava interiormente o
liame, a síntese, a unidade do grande Todo. O filho de Partênis chegara, então,
a uma dessas crises em que o espírito, superexcitado pela contradição das coisas,
concentra todas as suas faculdades num esforço supremo para entrever o
objetivo, para encontrar o caminho que leva ao sol da verdade, ao centro da
vida.
Naquela noite quente e esplêndida, o filho de Partênis contemplava
alternadamente a terra, o templo e o céu estrelado. Ela estava lá, sob seus
pés, ao redor dele: Deméter, a terra-mãe, a Natureza que ele queria penetrar.
Ele respirava suas emanações poderosas, sentia a invencível atração que o
acorrentava ao seu seio, ele, o átomo pensante, como uma parte inseparável
dela. Os sábios que ele consultara tinham-lhe dito: “É dela que tudo se origina. Nada vem do nada. A alma vem da água ou do
fogo, ou dos dois. Sutil emanação dos elementos, ela deles escapa apenas para a
eles voltar. Resigna-te à sua lei fatal. Teu único mérito será o de conhecê-la
e a ela te submeteres”.
Depois, ele contemplava o firmamento e as letras de fogo que as constelações
formam na profundeza insondável do espaço. Aquelas letras deviam ter um
significado. Pois se infinitamente pequeno o movimento dos átomos, tem sua
razão de ser, como o infinitamente grande, a dispersão dos astros, cujo
agrupamento representa o corpo do
Universo não o teria também? Sim! Cada um desses mundos tem sua
lei própria, e todos juntos se movem conforme um Número e em harmonia suprema.
Mas quem algum dia decifrará o alfabeto das estrelas? Os sacerdotes de Juno
tinham-lhe dito: “Foi o céu dos Deuses
que existiu antes da Terra. Tua alma vem de lá. Orai para que ela volte para
lá”.
Esta meditação foi interrompida por um canto voluptuoso, que saía
de um jardim às margens do Imbrasus. As vozes lascivas das lésbicas
harmonizavam-se langorosamente com os sons da cítara.
Alguns jovens respondiam entoando árias báquicas. A estas vozes
se misturaram, de repente, outros gritos penetrantes e lúgubres, que partiam do
porto. Eram rebeldes que Polícrates mandava embarcar para
vender como escravos na Ásia. Açoitavam-nos com correias cheias
de pregos, para amontoá-los sob os pontões dos remadores. Seus urros e blasfêmias
se perderam na noite. Depois, tudo voltou ao silêncio.
O jovem sentiu um estremecimento doloroso, que reprimiu para se
recolher em si mesmo. O problema estava diante dele mais pungente, mais agudo.
A Terra dizia: Fatalidade! O Céu dizia: Providência! E a Humanidade, que flutua
entre os dois, respondia: Loucura! Dor! Escravidão! Mas, no fundo de si
mesmo, o futuro adepto ouvia uma voz
irrefutável que respondia às cadeias da Terra e aos clarões do céu
com este grito: Liberdade!
Quem, pois, teria razão? Os sacerdotes, os sábios, os loucos, os
infelizes ou ele mesmo? Todas aquelas vozes diziam a verdade, cada uma delas
triunfava em sua esfera, mas nenhuma lhe revelava sua razão de ser. Os três mundos
existiam imutáveis, como o seio de Deméter, como a luz dos astros e como o
coração humano. Mas somente aquele que soubesse encontrar sua harmonia e a lei de
seu equilíbrio seria um verdadeiro sábio, somente ele possuiria a ciência
divina e poderia auxiliar os homens. Na síntese dos três
mundos está o segredo do Cosmos.
Ao pronunciar esta palavra – que acabara de encontrar –, Pitágoras
se ergueu. Seu olhar fascinado fixou-se na fachada dórica do templo. O severo
edifício parecia transfigurado sob os castos raios de Diana. Ele acreditou ver
ali a imagem ideal do mundo e a procurada solução do problema. Pois, a base, as
colunatas, a arquitrave e o frontão triangular significam para ele,
subitamente, a tríplice natureza do homem e do Universo, do microcosmo e do
macrocosmo coroado pela unidade divina, que é, ela própria, uma trindade. O Cosmos, dominado e penetrado
por Deus, formava:
A Tétrada sagrada, imenso e puro símbolo, Fonte da Natureza e modelo dos Deuses (1).
(1). Versos dourados de
Pitágoras, tradução de Fabre d'Olivet.
A
Tetraktys ou Tétrade
era, segundo seus ensinamentos, o Quatro Sagrado e tem o mesmo sentido do Tetragramaton,
o Nome Divino IHVH . Sua representação é a própria Unidade, apresentada sob
quatro aspectos diferentes, em cujo contexto encontramos o binário, o
ternário, o quaternário e a Década, que simboliza a perfeição.
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Sim, ela estava lá, oculta naquelas linhas geométricas: a chave do Universo,
a ciência dos números, a lei ternária que rege a constituição dos seres, a do
setenário que preside à sua evolução. E, numa visão grandiosa, Pitágoras viu os mundos se moverem
segundo o ritmo e a harmonia dos números sagrados. Viu o equilíbrio da Terra e
do céu, mantido pela liberdade humana. Os três
mundos, natural, humano e divino, se sustentam, determinando-se reciprocamente
e representando o drama universal por meio de um duplo movimento, descendente e
ascendente. Ele adivinhou as esferas do mundo invisível envolvendo o visível
e animando-o sem cessar. Concebeu, enfim, a purificação e a liberação do homem,
já nesta Terra, pela tríplice iniciação. Viu tudo isto, sua vida e sua obra, numa iluminação instantânea
e clara, com a certeza irrecusável do espírito que se sente diante da Verdade.
Foi um relâmpago.
Tratava-se, agora, de provar pela Razão o que sua pura Inteligência
havia apreendido no Absoluto. E para isto era preciso uma vida de Homem, um trabalho de Hércules.
Mas, onde encontrar a ciência necessária para levar a bom termo semelhante
labor? Nem os cantos de Homero, nem os sábios da Jônia, nem os templos da
Grécia seriam suficientes.
O espírito de Pitágoras, que logo encontrara asas, mergulhou em seu
passado, em seu nascimento envolto em véus e no misterioso amor de sua mãe. Uma
lembrança da infância voltou-lhe com uma precisão incisiva. Recordou-se de que
sua mãe o levara, com a idade de um ano, a um vale do Líbano, ao templo de
Adonai. Ele se reviu muito criança, nos braços de Partênis, no meio de
montanhas colossais, de florestas imensas, onde um rio caía em catarata. Ela
estava de pé, num terraço à
sombra de grandes cedros. Diante dela, um sacerdote majestoso, de barba branca, sorria para
eles, pronunciando palavras graves que ele não compreendia. Depois, várias
vezes a mãe repetira-lhe aquelas palavras do hierofante de Adonai: “Mulher de Jônia, teu filho será grande pela sabedoria;
mas lembra-te que, se os gregos possuem ainda a ciência dos Deuses, a ciência
de Deus só se encontra no Egito”.
Aquelas palavras voltavam-lhe agora, juntamente com o sorriso materno,
a bela fisionomia do ancião e o estrépito distante da catarata, dominado pela
voz do sacerdote, em uma paisagem grandiosa como o sonho de outra vida. Pela
primeira vez ele adivinhava o significado do oráculo. Muito ouvira sobre o
saber prodigioso dos sacerdotes egípcios, e seus formidáveis mistérios; mas
acreditara poder abster-se deles.
Agora, entretanto, compreendia que era necessária aquela
“ciência de Deus” para penetrar a fundo na natureza, e que só a encontraria nos
templos do Egito. E foi a doce Partênis, com seu instinto de mãe, que o preparara
para essa obra, e o levara como uma oferenda ao Deus soberano!
Nesse instante tomou a decisão de ir ao Egito e lá receber a iniciação. Polícrates se
gabava de proteger os filósofos tanto quanto os poetas. Apressou-se a dar a
Pitágoras uma carta de recomendação para o faraó Amasis, que o apresentou aos sacerdotes de Mênfis. Estes só o receberam
a contragosto e depois de muitas dificuldades. Os sábios egípcios desconfiavam
dos gregos, que tachavam de levianos e inconstantes. Tudo fizeram para
desencorajar o jovem de Samos.
Contudo, o noviço se submeteu com uma paciência e uma coragem inquebrantáveis
às demoras e às provas que lhe impuseram. Ele sabia, por antecipação, que
somente chegaria ao conhecimento pelo total domínio da vontade em todo o seu
ser. Sua
iniciação durou vinte e dois
anos, sob o pontificado do grande sacerdote de Sonchis. Já narramos,
no livro de Hermes, as provas, as tentações, os pavores e os êxtases do iniciado
de Ísis, até a morte aparente e cataléptica do adepto e sua ressurreição na luz
de Osíris. Pitágoras atravessou todas as fases que permitiam realizar, não como
uma vã teoria, mas como um elemento vivo, a doutrina do Verbo-Luz ou da Palavra
universal e da evolução humana através dos sete ciclos planetários. A cada passo
daquela vertiginosa ascensão as provas se repetiam sempre mais terríveis. Ali, cem
vezes correu risco de vida, sobretudo quando queriam levá-lo ao manejo das
forças ocultas, à perigosa prática da magia e da teurgia.
Como todos os grandes homens, Pitágoras tinha fé em sua estrela.
Nada
que pudesse conduzi-lo à ciência o desanimava, e o medo da morte
não o detinha, porque queria a vida do Além.
Quando os sacerdotes egípcios reconheceram nele uma força de alma
extraordinária e aquela paixão impessoal pela sabedoria, que é a coisa mais rara no mundo,
abriram-lhe os tesouros de sua experiência.
Foi entre eles que Pitágoras se formou e adquiriu sua têmpera.
Foi lá que pôde se aprofundar na matemática sagrada, a ciência dos números ou dos princípios
universais, da qual ele fez o centro de seu sistema, formulando-a de uma
maneira nova. A severidade da disciplina egípcia nos templos fê-lo conhecer,
por outro lado, a força prodigiosa da vontade humana sabiamente exercida e
treinada, suas aplicações infinitas tanto no corpo quanto na alma. “A ciência dos números e a arte da vontade
são as duas chaves da magia”, diziam os sacerdotes de Mênfis; “elas abrem todas as portas do Universo”.
Foi, pois, no Egito, que Pitágoras adquiriu a visão elevada que permite perceber as esferas da
vida e as ciências em uma ordem concêntrica, compreender a involução do
espírito na matéria pela criação universal e sua evolução ou subida para a
unidade por aquela criação individual que se chama o
desenvolvimento de uma consciência.
Pitágoras atingira o ápice do sacerdócio egípcio e sonhava,
talvez, em voltar à Grécia, quando foi desencadeada a guerra na bacia do Nilo, com
todos os seus flagelos e arrastou o iniciado de Osíris em um novo turbilhão. Há
muito tempo os déspotas da Ásia tramavam a derrota do Egito. Durante séculos,
seus repetidos ataques haviam fracassado diante da sabedoria das instituições
egípcias, diante da força do sacerdócio e da energia dos faraós. Mas o imemorial.
reino, asilo da ciência de Hermes, não devia durar eternamente. O filho do
vencedor da Babilônia, Cambises, abateu-se sobre o Egito com seus exércitos
inumeráveis e famintos como nuvens de gafanhotos, e pôs fim à instituição do faraonato,
cuja origem se perdia na noite dos tempos. Aos olhos dos sábios era uma
catástrofe, para o mundo inteiro. Até então, o Egito defendera a Europa da
Ásia. Sua influência protetora se estendia ainda sobre toda a bacia do
Mediterrâneo, sobre templos da Fenícia, da Grécia e da Etrúria, com os quais o
alto sacerdócio egípcio mantinha relações constantes. Uma vez desmoronado esse
baluarte, o Touro iria precipitarse, de cabeça baixa, sobre as margens do mundo
helênico.
Pitágoras viu, pois, Cambises invadir o Egito. Viu o déspota persa,
digno herdeiro das celeradas coroas de Nínive e Babilônia, saquear os templos
de Mênfis e de Tebas e destruir o de Âmon. Viu o faraó Psamenit acorrentado e
conduzido diante de Cambises, colocado numa colina, ao redor da qual foram
enfileirados os sacerdotes, as principais famílias e a corte do rei. Viu a
filha do faraó, vestida de farrapos e acompanhada de todas as suas damas de
honra, nos mesmos trajes, e dois mil jovens ameaçados, com o cabresto ao
pescoço, antes de serem decapitados. Viu o faraó Psamenit reprimindo seus
soluços diante desta cena horrorosa; e o infame Cambises, sentado no trono, se divertia
com a dor de seu adversário abatido.
Cruel, mas instrutiva lição da História, depois das lições da Ciência! Que imagem da
natureza animal desencadeada no homem, resultando neste monstro de despotismo,
que esmaga tudo e impõe à humanidade o reinado do mais implacável destino por
sua hedionda apoteose!
Cambises mandou Pitágoras à Babilônia, com uma parte do sacerdócio
egípcio e ali o manteve confinado (2). Aquela cidade colossal,
que Aristóteles compara a um país cercado de muros, oferecia então um imenso
campo de observação. A antiga Babel, a grande prostituta dos profetas hebreus,
era mais do que nunca, após a conquista persa, um pandemônio de povos, idiomas,
cultos e religiões, em cujo seio o despotismo asiático erigia sua torre
vertiginosa. Segundo as tradições persas, sua fundação remontava à legendária
Semíramis. Fora esta, diziam, quem mandara construir seu recinto colossal, de
oitenta e cinco quilômetros de contorno; o Imgum-Bel, suas muralhas, onde duas carruagens
corriam de frente, seus terraços superpostos, seus palácios maciços com relevos
policrômicos, seus templos sustentados por elefantes de pedra e encimados por
dragões multicores. Lá tinha-se sucedido a série de déspotas que escravizara a
Caldéia, a Assíria, a Pérsia, uma parte da Tartária, a Judéia, a Síria e a Ásia
Menor. Para
lá Nabucodonosor, o assassino dos magos, arrastara em cativeiro o povo judeu, que continuava
a praticar seu culto em um recanto da imensa cidade na qual Londres caberia
quatro vezes. Os judeus tinham até fornecido ao grande rei um ministro
poderoso: o profeta Daniel. Com Baltazar, filho de Nabucodonosor, as muralhas
da velha Babel finalmente desmoronaram, sob os golpes vingadores de Ciro. E Babilônia
ficou por vários séculos sob o domínio persa.
(2). Jamblique lembra
este fato, em sua Vie de Pythagore.
Devido a essa série de acontecimentos anteriores, no momento em que
Pitágoras ali chegou, três religiões diferentes
conviviam no alto do sacerdócio de Babilônia; os antigos padres caldeus, os
sobreviventes do magismo persa e a elite do cativeiro judaico. O que prova que
esses diversos sacerdotes se harmonizavam entre si pelo lado esotérico; é precisamente
o papel de Daniel, que, sempre dando testemunho do Deus de Moisés, permaneceu
primeiro-ministro sob Nabucodonosor, Baltazar e Ciro.
Pitágoras teve de alargar seus horizontes, já tão vastos,
estudando todas aquelas doutrinas, religiões e cultos, cuja síntese alguns
iniciados
ainda conservavam. Ele pôde aprofundar na Babilônia os conhecimentos dos magos,
herdeiros de Zoroastro. Se somente os sacerdotes egípcios possuíam as chaves universais
das ciências sagradas, os magos persas tinham a reputação de terem propagado a prática
de certas artes. Eles se atribuíam o manejo daqueles poderes ocultos da natureza que
se chamam o fogo pantomórfico e a luz astral.
Dizia-se que em seus templos as trevas advinham em pleno dia, as
lâmpadas se acendiam sozinhas, viam-se resplandecer os Deuses e ouvia-se cair o
raio. Os magos chamavam de leão celeste àquele fogo incorpóreo, agente gerador
da eletricidade, que sabiam condensar ou dissipar a sua vontade, e de serpentes
às correntes elétricas da atmosfera, magnéticas da Terra, que pretendiam
dirigir como flechas sobre os homens. Tinham feito também um estudo especial do
poder sugestivo, atrativo e criador do verbo humano. Empregavam, para a evocação
dos espíritos, formulários graduados e copiados dos mais antigos idiomas da
Terra. Eis a razão psíquica que apresentavam para isso: “Não mudai nada nos nomes bárbaros da evocação. Porque eles são os nomes
panteísticos de Deus. São magnetizados pelas adorações de uma multidão e seu
poder é inefável” (3). Essas evocações, praticadas no meio das purificações e das
preces, eram, propriamente falando, o que se chamou mais tarde de magia branca.
(3). Oráculos de
Zoroastro recolhidos na teurgia de Proclus.
Na Babilônia, Pitágoras penetrou nos arcanos da antiga magia. Ao
mesmo tempo, naquele antro do despotismo, viu um grande espetáculo: sobre os
destroços das religiões decadentes do Oriente, acima de seu sacerdócio dizimado
e degenerado, um grupo de iniciados intrépidos, unidos, defendiam sua ciência, sua
fé e, tanto quanto possível, a justiça.
De pé diante dos déspotas, como Daniel na cova dos leões, sempre
preparados para serem devorados, eles fascinavam e domavam a fera do
poder absoluto, por meio de seu poder intelectual, e com ela
disputavam passo a passo o terreno.
Depois de sua iniciação egípcia e caldaica, o filho de Samos sabia muito mais do que seus mestres de
Física e do que qualquer grego, padre ou leigo, de seu tempo. Conhecia os
princípios eternos do Universo e suas aplicações. A natureza descerrara-lhe seus
abismos; os pesados véus da matéria tinham-se dilacerado a seus olhos, para mostrar-lhe as
esferas maravilhosas da natureza e da humanidade espiritualizada. No templo de
Neit-Ísis, em Mênfis no de Bel, na Babilônia, ele apreendera muitos segredos
sobre o passado das religiões, sobre a história dos continentes e das raças. Pudera comparar as vantagens e os inconvenientes do monoteísmo
judeu, do politeísmo grego, do trinitarismo hindu. e do dualismo persa. Sabia que todas religiões
eram raios de uma mesma verdade, filtrados por diversos graus de inteligência e
para diversos estados sociais. Ele possuía a chave,
isto é, a síntese de todas estas doutrinas na ciência esotérica. Seu olhar, abrangendo
o passado, mergulhando no futuro, julgava o presente com uma singular lucidez.
Sua experiência mostrava-lhe a humanidade ameaçada dos maiores flagelos, pela ignorância dos
sacerdotes, pelo materialismo dos sábios e pela indisciplina das democracias. Em meio ao
afrouxamento universal, ele via crescer o despotismo asiático. E daquela nuvem negra
um ciclone formidável iria precipitar-se sobre a Europa indefesa.
Já era tempo de voltar à Grécia, para lá cumprir sua missão, começar
sua obra.
Pitágoras estivera confinado na Babilônia durante doze anos. Para sair de lá
era preciso uma ordem do rei dos persas. Um compatriota, Demócedes, médico do
rei, intercedeu a seu favor e obteve a liberdade do filósofo.
Pitágoras voltou então para Samos, após trinta e quatro anos de ausência.
Encontrou sua pátria esmagada sob o domínio de um sátrapa
do grande rei. Escolas e templos estavam fechados; poetas e sábios tinham fugido,
como um bando de andorinhas diante do cesarismo persa. Pelo menos ele
teve a consolação de recolher o último suspiro de seu primeiro mestre,
Hermodamos, e de reencontrar a mãe, Partênis, a única que não duvidara de seu
regresso. Pois toda a gente acreditava morto o filho aventuroso do joalheiro de
Samos. Ela, porém, jamais duvidara do oráculo de Apolo; e agora compreendia
que, sob
as vestes brancas de sacerdote egípcio, seu filho se preparava para uma elevada
missão. Ela
sabia que do templo de Neit-Ísis sairia o mestre benfeitor, o
profeta luminoso, com o qual havia sonhado no bosque sagrado de Delfos,
e que o
hierofante de Adonai lhe prometera, às sombras dos cedros do Líbano.
Agora sobre as ondas azuladas das Cícladas um barco veloz levava
mãe e filho para um novo exílio. Com todos os seus haveres, eles fugiam de
Samos, oprimida e perdida. Iam para a Grécia. Não eram as coroas olímpicas, nem
louros do poeta que tentavam o filho de Partênis.
Sua
obra era mais misteriosa e maior: despertar a alma adormecida dos Deuses nos santuários;
restituir ao templo de Apolo a força e o prestígio; depois fundar, em alguma
parte, uma escola de ciência e de vida, de onde sairiam, não políticos e sofistas,
mas mulheres e homens iniciados, mães verdadeiras e heróis puros!
Parte
III
O
TEMPLO DE DELFOS. A CIÊNCIA APOLÍNEA.
A
TEORIA DA ADIVINHAÇÃO. A PITONISA TEOCLÉIA
Da planície da Fócida, subia-se por campinas agradáveis que seguem
as margens do Plítios, e entrava-se num vale tortuoso, entre altas montanhas. A
cada passo ele se tornava mais estreito, a paisagem mais grandiosa e mais
desolada. Atingia-se, enfim, um círculo de montanhas abruptas, coroadas de
picos selvagens, verdadeiro funil de eletricidade, castigado por frequentes
tempestades. Bruscamente, no fundo da garganta sombria, aparecia a cidade de Delfos, como um ninho de
águia, sobre seu rochedo cercado de precipícios e dominado pelos dois cumes do
Parnaso. Ao longe viam-se cintilar as Vitórias de bronze, os cavalos também de
bronze e as inúmeras estátuas de ouro dispostas em fila na via sagrada, como
uma guarda de heróis e Deuses ao redor do templo dórico de Fobos Apolo.
Ruínas do Templo de Delfos
Era o local mais santo da Grécia. Lá profetizava a Pítia. Lá se reuniam
os Anfictiões. Lá todos os povos helênicos haviam erguido, em torno do
santuário, capelas que encerravam tesouros de oferendas. Lá, procissões de
homens, mulheres e crianças vindas de longe subiam a via sacra, para saudar o Deus da Luz. A
religião havia consagrado Delfos, desde tempos imemoriais, à veneração dos
povos.
Sua localização central na Hélade, seu rochedo, ao abrigo dos ataques e de
fácil defesa, contribuíram para isto. O Deus estava lá para tocar a imaginação;
uma singularidade lhe deu seu prestígio. Em uma caverna, atrás do templo, abria-se
uma fenda, de onde saíam vapores frios que provocavam, segundo se dizia, a
inspiração e o êxtase. Plutarco narra que em tempos muito remotos um sacerdote,
estando sentado à beira daquela fenda, pôs-se a profetizar. No início
julgavam-no louco. Mas à medida que suas profecias se foram realizando, deram
atenção ao fato.
Os sacerdotes se apoderaram dele e consagraram o local à
divindade.
Daí a instituição da Pítia, que se sentava sobre a fenda, sobre
um tripé.
Os vapores que saíam do abismo provocavam-lhe convulsões, crises
estranhas e aquela segunda visão que se observa nos sonâmbulos notáveis.
Ésquilo – cujas afirmações têm peso, pois era filho de um sacerdote
de Elêusis e ele mesmo um iniciado – nos ensina nas Eumênidas, pela boca da Pítia, que Delfos
tinha sido consagrado primeiro à Terra, em seguida a Têmis (A Justiça), depois
a Febe (a lua mediadora) e, finalmente, a Apolo, o Deus solar. Cada um destes
nomes representa, no simbolismo dos templos, longos períodos e abrange séculos.
Mas a celebridade de Delfos data de Apolo. Júpiter, diziam os poetas, tendo
desejado conhecer o centro da Terra, soltou duas águias, uma do levante e outra
do poente. Elas se encontraram em Delfos.
De onde vem este prestígio, esta autoridade universal e
inconteste, que fez de Apolo o Deus grego por excelência e faz com que tenha conservado,
até para nós, um brilho inexplicável?
A história não nos diz nada sobre este ponto tão importante.
Interrogando-se os oradores, os poetas, os filósofos, eles
apenas darão explicações superficiais. A verdadeira resposta a esta questão permanece
segredo do templo. Procuremos penetrá-lo.
No pensamento órfico, Dionísio e Apolo eram duas revelações diversas
da mesma divindade. Dionísio representava a verdade esotérica, o fundo e o interior das
coisas, aberto somente aos iniciados.
Ele continha os mistérios da vida, as existências passadas e
futuras, as relações da alma e do corpo, do Céu e da Terra. Apolo personificava
a mesma verdade, aplicada à vida terrestre e à ordem social. Inspirador da poesia,
da medicina e das leis, era a ciência através da adivinhação, a beleza através
da arte, a paz dos povos através da justiça, e a harmonia da alma e do corpo
através da purificação. Numa palavra, para o iniciado, Dionísio significava
nada menos do que o espírito divino em evolução no Universo; e Apolo, sua
manifestação ao homem terrestre.
Os sacerdotes tinham feito com que o povo compreendesse isto por
meio de uma lenda. Contavam-lhe que no tempo de Orfeu, Baco e Apolo tinham disputado
o tripé de Delfos. Baco cedera-o de bom grado ao irmão e se retirara para um
dos cumes de Parnaso, onde as mulheres tebanas celebravam seus mistérios. Na realidade, os dois
grandes filhos de Júpiter dividiram entre si o império do mundo. Um reinava
sobre o misterioso além; o outro reinava sobre os seres vivos.
Encontramos em Apolo o Verbo solar, a Palavra universal, o grande
Mediador, o Vishnu dos hindus, o Mitras dos persas, o Hórus dos egípcios. Mas
as velhas idéias do esoterismo asiático se revestiram, na lenda de Apolo, de
uma beleza plástica, de um esplendor incisivo, que lhes permitiu infiltrarem-se
mais profundamente na consciência humana como as flechas do Deus, “serpentes
de asas brancas impelidas de seu arco de ouro”, segundo Ésquilo.
Apolo irrompeu, da grande noite, em Delfos. Todas as deusas saúdam
seu nascimento. Ele anda, toma o arco e a lira. Seus cabelos cacheados esvoaçam no ar, a aljava ressoa em seus
ombros. E o mar palpita e toda a ilha resplandece num banho de fogo e ouro. É a
epifania da luz divina, que por sua augusta presença cria a ordem, o esplendor
e a harmonia, dos quais a poesia é o maravilhoso eco.
Apolo
O Deus segue para Delfos e fere com suas flechas uma serpente monstruosa
que assolava a região, saneia o país e funda o templo, imagem da vitória
daquela luz divina sobre as trevas e o mal. Nas religiões antigas, a serpente
simbolizava ao mesmo tempo o círculo fatal da vida e o mal que dele resulta. Dessa compreensão advém o seu conhecimento.
Apolo, matador da serpente, é o símbolo do iniciado que traspassa a natureza com a ciência, domina-a com sua
vontade e, rompendo o círculo fatídico da carne, eleva-se no esplendor do
espírito, enquanto os destroços da animalidade humana se contorcem na areia.
Eis por que Apolo é o mestre das expiações, das purificações da alma
e do corpo. Salpicado com o sangue do monstro, ele expiou, purificou-se
num exílio de oito anos, sob os loureiros amargos e salubres do
vale de
Tempe.
Apolo, educador dos homens, gosta de estar entre eles; sente-se bem nas cidades, entre a
juventude masculina, nos concursos de poesia e oratória, mas ele aí fica só
temporariamente. No outono, volta à sua pátria, ao país dos hiperbóreos. É o
povo misterioso das almas luminosas e transparentes que vivem na eterna aurora
de uma felicidade perfeita. Lá estão seus verdadeiros mestres e suas amadas
sacerdotisas.
Com eles vive numa comunidade íntima e profunda: e, quando quer fazer
aos homens um dom real, envia-lhes do país dos hiperbóreos uma das grandes almas luminosas e
a faz nascer na Terra, para ensinar e encantar os mortais. Ele mesmo volta a Delfos
em todas as primaveras, quando se entoam peãs e hinos. Chega, visível somente para
os iniciados, em sua brancura hiperbórea, num carro puxado por cisnes melodiosos.
Volta a habitar o santuário onde a Pítia transmite seus oráculos e os sábios e
os poetas a escutam. Então os rouxinóis cantam, a fonte de Castália borbulha em
ondas prateadas, os eflúvios de uma luz ofuscante e de uma música celeste
penetram no coração do homem e nas veias da natureza.
Nesta lenda dos hiperbóreos manifesta-se em raios brilhantes o fundo
esotérico do mito de Apolo. O país dos hiperbóreos é o Além, o empírico das almas
vitoriosas, cujas auroras astrais iluminam as zonas multicores. O próprio Apolo
personifica a luz imaterial e inteligível, na qual o Sol é apenas a imagem
física e de onde decorre toda a verdade.
Os cisnes maravilhosos que o conduzem são os poetas, os divinos gênios,
mensageiros de sua grande alma solar, que deixam atrás de si estremecimentos de
luz e de melodia. Apolo hiperbóreo personifica, pois, a descida do Céu sobre a Terra,
a encarnação da beleza espiritual no sangue e na carne, o afluxo da verdade
transcendente por meio da inspiração e da adivinhação.
Mas é tempo de soerguer o véu dourado das lendas e penetrar no próprio
templo. Como
se praticava a adivinhação? Tocamos aqui os arcanos da ciência apolínea e dos
mistérios de Delfos.
Um laço profundo unia, na Antigüidade, a adivinhação e os cultos
solares. O culto do sol é a chave de ouro de todos os mistérios considerados
mágicos.
A adoração do homem ariano dirigiu-se, desde a origem da civilização,
ao Sol como fonte de luz, calor e vida. Mas quando o pensamento dos sábios se elevou do fenômeno à
causa, eles conceberam, para além deste fogo sensível e desta luz visível, um fogo imaterial e
uma luz inteligível. Identificaram o primeiro com o princípio masculino, com o
espírito criador e a essência intelectual do Universo, e a segunda com seu
princípio feminino, sua alma formadora, sua substância plástica. Esta instituição
remonta a um tempo imemorial. A concepção que menciono mistura-se com as mais velhas
mitologias. Ela circula nos hinos védicos sob a forma de Agni, o fogo universal
que penetra todas as coisas. Desabrocha na religião de Zoroastro, cujo culto de Mitras representa
a parte esotérica. Mitras é o fogo masculino e Mitra, a luz feminina. Zoroastro diz,
formalmente, que o Eterno criou, por meio do Verbo vivo, a luz celeste, semente
de Ormuz, princípio da luz material e do fogo material. Para o iniciado de
Mitras, o Sol é apenas um reflexo grosseiro daquela luz. Em sua gruta escura,
com a abóbada pintada de estrelas, ele invoca o sol da graça, o fogo do amor, vencedor
do mal, reconciliador de Ormuz e de Arimã, purificador e mediador, que habita a
alma dos santos profetas. Nas criptas do Egito, os iniciados procuram este mesmo Sol, sob
o nome de Osíris. Quando Hermes pede para contemplar a origem das coisas, inicialmente
sente-se mergulhado nas ondas etéreas de uma luz deliciosa, onde se movem todas
as formas vivas. Depois, imerso nas trevas da matéria espessa, ouve uma voz e
nela reconhece a voz da luz. Ao mesmo tempo, um fogo irrompe das profundezas.
Logo o caos se organiza e se ilumina. No livro dos mortos dos egípcios, as
almas vagam penosamente em direção àquela luz na barca de Ísis. Moisés adotou
plenamente esta doutrina, no Gênese:
“Eloim disse: faça-se a luz; e a luz se fez”.
Ora, a criação dessa luz precede a do Sol e das estrelas. Isto
quer dizer que na ordem dos princípios e da cosmogonia, a luz inteligível
precede a luz material. Os gregos, que dramatizaram e vazaram na forma humana
as idéias mais abstratas, exprimiram a mesma doutrina no mito de Apolo
hiperbóreo.
O espírito humano chegou pois, pela contemplação interna do Universo,
do ponto de vista da alma e da inteligência, a conceber uma luz inteligível, um
elemento imponderável que servia de intermediário entre a matéria e o espírito.
Seria fácil mostrar que os físicos modernos se aproximaram insensivelmente da
mesma conclusão, por um caminho oposto, isto é, buscando a constituição da
matéria e vendo a impossibilidade de explicá-la por si mesma. Já no século XVI,
Paracelso,
estudando as combinações químicas e as metamorfoses dos corpos, chegara a
admitir um agente universal e oculto, mediante o qual elas operam. Os físicos dos
séculos XVII e XVIII, que conceberam o Universo como uma máquina morta,
acreditaram no vazio absoluto dos espaços celestes. Entretanto, quando se
reconheceu que a luz não é a emissão de uma matéria radiante, mas a vibração de
um elemento imponderável, teve-se de admitir que todo o espaço está repleto de
um fluido infinitamente sutil, que penetra todos os corpos e pelo qual se transmitem
as ondas de calor e luz. Voltava-se assim às idéias da Física e da teosofia grega.
Newton, que havia passado a vida inteira estudando os movimentos
dos corpos celestes, foi mais longe. Chamou a esse éter sensorium Dei, ou o cérebro de Deus, isto é, o órgão pelo qual o pensamento
divino age no infinitamente grande e no infinitamente pequeno. Externando esta
idéia, que lhe parecia necessária para explicar a simples rotação dos astros, o grande físico
vogava em plena filosofia esotérica. O éter que o pensamento de Newton encontrava nos espaços, Paracelso havia
encontrado no fundo de seus alambiques e denominara luz astral.
Ora, este fluido imponderável, mas presente por toda a parte,
que penetra em tudo, este agente sutil, mas indispensável, esta luz invisível a
nossos olhos, mas que está no fundo de todas as cintilações e de todas as
fosforescências, um físico alemão constatou-os todos, numa série de experiências
sabiamente ordenadas. Reichenbach notara que indivíduos de constituição nervosa muito
sensível, colocados numa câmara completamente escura, diante de um ímã, viam,
nas duas extremidades, fortes raios de luz vermelha, amarela e azul. Às vezes,
estes raios vibravam, num movimento ondulatório. Continuou suas experiências com
todas as espécies de corpos, principalmente com cristais. Ao redor de todos
esses corpos, os indivíduos viram emanações luminosas. E em torno da cabeça dos
homens colocados na câmara escura, viram raios brancos; e de seus dedos saíam
pequenas chamas. Na primeira fase do sono, os sonâmbulos algumas vezes viam o
seu magnetizador com aqueles mesmos sinais. A pura luz astral só aparece no
alto êxtase, mas se polariza em todos os corpos, combina-se com todos os
fluidos terrestres e desempenha funções diversas na eletricidade, no magnetismo
terrestre e no magnetismo animal (1). O interesse nas
experiências de Reichenbach está em ter chegado aos limites e à transição da
visão física para a visão astral, que pode conduzir à visão espiritual. Fazem
entrever também as sutilezas infinitas da matéria ponderável. Neste caminho,
nada nos impede de concebê-la tão fluida, tão sutil e penetrante que se torne
de certa maneira homogênea ao espírito e lhe sirva de vestimenta perfeita.
(1). Reichenbach chamou
este fluido de odylo. Sua
obra foi traduzida para o inglês por Gregory: Researches on magnetism,
electricity, heat, light, cristallization and chemical attraction. – Londres,
1850.
Acabamos de ver que a Física moderna teve de reconhecer um agente
universal imponderável para explicar o mundo, cuja presença constatou mesmo,
voltando assim, sem o saber, para as idéias das teosofias antigas. Procuremos agora definir a
natureza e a função do fluido cósmico, segundo a filosofia do oculto em todos
os tempos.
Sobre este período capital da cosmogonia, estão de acordo Zoroastro e Heráclito, Pitágoras e São Paulo, os cabalistas e Paracelso.
Ela reina em toda a parte, Cibele-Maia, a grande alma do mundo, a substância vibrante e plástica
que manipula à sua vontade o sopro do Espírito criador. Seus oceanos etéreos
servem de argamassa entre todos
os mundos. Ela é a grande mediadora entre o invisível e o visível, entre o
espírito e a matéria, entre o interior e o exterior no Universo.
Condensada em massas enormes na atmosfera, sob a ação do Sol,
ela aí
eclode em forma de raio. Bebida pela Terra, circula em correntes
magnéticas. Sutilizada no sistema nervoso do animal, transmite sua vontade aos
membros, suas sensações ao cérebro. Ainda mais: esse fluido sutil forma
organismos vivos semelhantes aos corpos materiais.
Pois serve de substância ao corpo astral da alma, vestimenta
luminosa que o espírito tece sem cessar para si mesmo. Conforme as almas que reveste,
conforme os mundos que envolve, este fluido se transforma, afina-se ou se
condensa. Não somente ele corporifica o espírito e espiritualiza a matéria, mas
também reflete, em seu seio animado, as coisas, as vontades e os pensamentos humanos em
uma perpétua miragem. A força e a duração dessas imagens é proporcional à intensidade da
vontade que as produz. Na verdade, não há outro meio de se explicar a sugestão e a
transmissão do pensamento à distância, este princípio da magia hoje constatado
e reconhecido pela ciência (2).
(2). Ver o Boletim da
Sociedade de psicologia fisiológica, presidida por M. Charcot, 1885. Ver,
sobretudo, o belo livro de M. Ochorowicz, De La Suggestion Mentale, Paris,
1887.
Assim o passado dos mundos tremula na luz astral em imagens
incertas, e o futuro aí perambula com as almas vivas que o inelutável destino força
a descer à carne. Eis o sentido do véu
de Ísis e do manto de Cibele, em que são tecidos todos os seres.
Vê-se agora que a doutrina
teosófica da luz astral é idêntica à doutrina secreta do verbo solar
nas religiões do Oriente e da Grécia. Vê-se também como essa doutrina se liga à da adivinhação. A luz
astral aí se revela como o médium universal dos fenômenos de visão e de êxtase,
e os explica. E ao mesmo tempo o veículo que transmite os movimentos do
pensamento, e o espelho vivo onde a alma contempla as imagens do mundo material
e espiritual. Uma vez transportado para este elemento, o espírito do vidente
deixa as condições corporais. A medida do espaço e
do tempo mudam para ele, que participa, de algum modo, da ubiquidade
do fluido universal. A matéria opaca torna-se-lhe transparente. E a alma, separando-se
do corpo, elevando-se em sua própria luz, chega através do êxtase a penetrar no
mundo espiritual, a ver as almas revestidas, de seus corpos etéreos e a se
comunicar com elas. Todos os antigos iniciados tinham uma idéia nítida dessa segunda
visão ou visão direta do espírito. Temos o testemunho de Ésquilo, que atribui à sombra de Clitemnestra
esta frase: “Olha estas feridas, teu
espírito pode vê-las; quando se dorme, o espírito tem olhos mais penetrantes; à
luz do dia, os mortais não abrangem um vasto campo com sua visão”.
Acrescentamos ainda que esta teoria da clarividência e do êxtase
harmoniza-se maravilhosamente com as numerosas experiências cientificamente
praticadas pelos sábios e médicos deste século com sonâmbulos lúcidos e
clarividentes de todo tipo (3). Em conformidade com estes fatos
contemporâneos, tentaremos caracterizar brevemente a sucessão de estados
psíquicos, desde a clarividência simples até o êxtase cataléptico.
(3). Sobre esta matéria
existe uma literatura abundante, de valor bastante desigual, tanto na França
quanto na Alemanha e na Inglaterra.
Citaremos aqui duas
obras em que essas questões são tratadas cientificamente por homens dignos de
fé:
O estado de clarividência, conforme demonstram milhares de fatos
constatados, é um estado psíquico que difere tanto do sono quanto da vigília. Longe de
embotarem, as faculdades intelectuais do clarividente aumentam de maneira
surpreendente. Sua memória é mais exata, sua imaginação mais viva, sua
inteligência mais desperta. Enfim, este é o fato essencial, desenvolve-se um
sentido novo, que não é mais um sentido corporal, mas da alma. Não somente os
pensamentos do magnetizador se transmitem a ele como no simples fenômeno da sugestão,
o qual já sai do plano físico, mas o clarividente lê no pensamento dos
assistentes, vê através dos muros, penetra em interiores a centenas de léguas,
onde jamais esteve, e também na vida íntima de pessoas que não conhece. Seus olhos estão
fechados e nada podem ver, mas seu espírito vê mais longe e melhor do que se os
olhos estivessem abertos, parece viajar livremente pelo espaço(4)
.
(4). Exemplos numerosos
em Gregory: Letters, XVI, XVII e XVIII.
Em sua palavra, se a clarividência é um estado anormal do ponto de vista do corpo, é um estado
normal e superior do ponto de vista do espírito. Pois sua consciência tornou-se
mais profunda, sua visão mais larga. O eu permanece o mesmo, mas ele passou a
um plano superior, onde seu olhar, liberto dos órgãos grosseiros do corpo,
abrange e penetra um horizonte mais vasto(5). Deve-se notar que
alguns sonâmbulos, ao receberem os passes do magnetizador, sentem-se inundados
por uma luz cada vez mais brilhante, e que o despertar lhes parece um penoso
retomo às trevas.
(5). O filósofo alemão
Schelling reconheceu a importância capital do sonambulismo na questão da
imortalidade da alma. Ele observa que, no sono lúcido, produz-se uma elevação e
uma liberação relativa da alma em relação ao corpo, como jamais acontece no
estado normal. Nos sonâmbulos tudo demonstra a mais intensa consciência, como
se todo o ser estivesse concentrado num foco luminoso que reúne o passado, o
presente e o futuro. Longe de perderem a memória, o passado se esclarece para
eles, o próprio futuro mesmo se revela às vezes num clarão intenso. Se isto é
possível na vida terrestre – pergunta Schelling – não é certo que nossa
personalidade espiritual que nos acompanha na morte, já está presente em nós
atualmente, que ela não nasce nesta ocasião, que ela simplesmente é libertada e
se revela assim que não está mais ligada ao mundo exterior pelos sentidos? O
estado depois da
morte é, pois, mais real
do que o estado terrestre. Nesta existência, o acidental, se imiscuindo em
tudo, paralisa em nós o essencial. Schelling muito simplesmente chama de
clarividência o estado futuro. O espírito,
desembaraçado de tudo
que existe de acidental na vida terrestre, torna-se mais vivo e mais forte. O
mau torna-se pior e o bom, melhor.
Muito recentemente, M.
Charles Du Prel sustentou a mesma tese, com uma grande riqueza de fatos e de
observações, num belo livro: Philosophie der Mystik (1886). Ele parte do
seguinte fato: “A consciência do eu não esgota seu objeto. A alma e a
consciência não são termos adequados. Não se ajustam, pois não têm uma extensão
igual. A esfera da alma ultrapassa em muito a da consciência”. Há, então, em
nós um eu latente. Este eu latente, que se manifesta rio sono e no sonho, é o
verdadeiro eu supraterrestre e transcendente, cuja existência precedeu nosso eu
terrestre, ligado ao corpo. O eu terrestre é perecível; o eu transcendente é
imortal.
Eis por que São Paulo
disse: “Já nesta terra caminhamos para o
céu.”
A sugestão, a leitura do pensamento e a visão à distância são fatos que
já provam a existência independente da alma e nos transportam acima do plano
físico do Universo, sem dele nos desligar completamente. Mas a clarividência
tem variedades infinitas e uma escala de estados diversos, muito mais
extensa do que a da vigília. À medida que nela se avança, os fenômenos se tornam
mais raros e mais extraordinários. Citemos apenas as etapas principais. A retrospecção é uma visão dos acontecimentos passados conservados na luz
astral e reavivados pela simpatia do vidente. A adivinhação propriamente
dita é uma visão problemática das coisas do futuro, seja por uma introspecção
do pensamento dos seres vivos, que contém em germe as ações futuras, seja pela
influência oculta de espíritos superiores que mostram o futuro em imagens vivas
diante da alma do clarividente. Os dois casos são projeções de pensamento na luz astral. Enfim, o êxtase se define como uma visão do mundo espiritual, onde espíritos bons
ou maus aparecem ao vidente sob forma humana e comunicam-se com ele. A alma parece
realmente transportada para fora do corpo; parece que a vida quase o deixou e
que se enrijece numa catalepsia vizinha da morte. Nada pode exprimir, segundo
as narrativas dos grandes extáticos, a beleza e o esplendor dessas visões e nem
o sentimento de inefável fusão com a essência divina, a que eles se referem
como uma embriaguez de luz e de música. Pode-se duvidar da realidade destas
visões, mas é preciso acrescentar que, se no estado médio da clarividência a
alma tem uma percepção exata dos lugares distantes e dos ausentes, é lógico
admitir-se que, em sua mais alta exaltação, ela possa ter a visão de uma
realidade superior e imaterial.
Esta será, segundo nosso pensamento, uma tarefa para o futuro: restituir
às faculdades transcendentes da alma humana a sua dignidade e sua função
social, reorganizando-as sob o controle da ciência e sobre as bases de
uma religião verdadeiramente universal, aberta a todas as verdades. Então a ciência,
regenerada pela verdadeira fé e pelo espírito de caridade, atingirá de olhos
abertos as esferas onde a filosofia especulativa vagueia, tateando de olhos
vendados. Sim, a ciência tornar-se-á vidente e redentora, à medida que nela
aumentar a consciência e o amor à humanidade. E talvez, pela “porta do sono e dos
sonhos” – como dizia o velho Homero – a divina Psiquê, banida de nossa civilização
e que chora em silêncio, sob seu véu, retomará a posse de seus altares.
Seja como for, os fenômenos de clarividência, observados em todas
as suas fases por sábios e médicos do século XIX, lançam nova luz sobre o papel
da adivinhação da Antigüidade e sobre uma imensidade de fenômenos aparentemente
sobrenaturais, de que estão repletos os anais de todos os povos. Certamente, é
indispensável distinguir o que pertence à lenda e à História, à alucinação e à
visão verdadeira. Mas a psicologia experimental de nossos dias nos ensina a não
rejeitarmos sumariamente os fatos que estão na possibilidade da natureza
humana, e a estudá-los do ponto de vista das leis constatadas.
Se a clarividência é uma faculdade da alma, já não se pode
atirar pura e
simplesmente os profetas, os oráculos e as sibilas para o
domínio da superstição. A adivinhação pôde ser conhecida e praticada pelos
templos antigos, com princípios fixos, para um fim social e religioso. O estudo
comparado das religiões e das tradições esotéricas mostra que esses princípios
foram os mesmos por toda a parte, ainda que sua aplicação tenha variado
infinitamente. O que desacreditou a arte da adivinhação é que sua corrupção deu
margem aos piores abusos, e suas
belas manifestações só foram possíveis em seres de grandeza e pureza
excepcionais.
A adivinhação, tal como exercida em Delfos, estava fundada nos princípios
que acabamos de expor, e a organização interior do templo também correspondia a
eles. Como nos grandes templos do Egito, compunha-se de uma arte e de uma
ciência. A arte consistia em penetrar o longínquo, o passado e o futuro, pela
clarividência ou pelo êxtase profético; as ciências, em calcular o futuro
segundo as leis da evolução universal. Arte e ciência controlavam-se reciprocamente.
Nada diremos desta ciência, chamada genetliologia pelos antigos, e da qual a astrologia da Idade Média é apenas um fragmento
mal compreendido, a não ser que ela supunha a enciclopédia esotérica aplicada
ao futuro dos povos e dos indivíduos. Muito útil como orientação, sua aplicação
permaneceu sempre bastante problemática.
Só os espíritos de primeira grandeza souberam dela fazer uso.
Pitágoras aprofundou-a no Egito. Na Grécia, era exercida com dados menos completos
e menos precisos. Ao contrário, a clarividência e a profecia tinham avançado
bastante.
Sabe-se que esta se exercia em Delfos por intermédio de mulheres jovens
e velhas, chamadas pítias ou pitonisas, que desempenhavam papel passivo, de sonâmbulas clarividentes.
Os sacerdotes interpretavam, traduziam e ordenavam segundo uma interpretação pessoal
esses oráculos, frequentemente confusos. Os historiadores modernos viram na
instituição de Delfos somente a exploração da superstição, por um charlatanismo
inteligente. Mas, além da adesão de toda a Antiguidade filosófica à ciência
divinatória de Delfos, vários oráculos referidos por Heródoto, como aqueles
sobre Creso e sobre a batalha de Salamina, depõem a seu favor. Sem dúvida, esta arte
teve seu começo, sua florescência e sua decadência. O charlatanismo e a corrupção
acabaram por se imiscuir. Testemunha disto foi o rei Cleômenes, que corrompeu a superiora
das sacerdotisas de Delfos para despojar Demarates da realeza. Plutarco escreveu um
tratado onde pesquisou as razões da extinção dos oráculos; e toda esta degenerescência
foi sentida como uma infelicidade por toda a sociedade
antiga. Na época precedente, a adivinhação fora cultivada com uma sinceridade
religiosa e uma profundidade científica que a elevaram às alturas de um
verdadeiro sacerdócio. No frontão do templo, lia-se a seguinte inscrição: “Conhece-te a ti mesmo”. E esta outra,
acima da porta de entrada: “Que não se aproxime
quem não tiver as mãos puras”.
Estas palavras diziam ao visitante que as paixões, as mentiras, as hipocrisias terrestres não deviam ultrapassar
os umbrais do santuário, e que no interior a verdade divina reinava com uma seriedade terrível.
Pitágoras só foi a Delfos depois de ter passado por todos os templos
da Grécia. Estivera com Epimênides, no santuário de Júpiter Idéon; assistira
aos jogos olímpicos; presidira aos mistérios de Elêusis, onde o hierofante lhe cedera o
lugar. Por toda a parte fora recebido como um mestre. Esperavam-no em Delfos. A arte divinatória definhava e Pitágoras queria devolver-lhe sua
profundidade, força e prestígio. Vinha, portanto, menos para consultar Apolo do que para esclarecer
seus intérpretes, reanimar seu entusiasmo e despertar sua energia. Agir sobre
eles seria agir sobre a alma da Grécia e preparar seu futuro.
Felizmente, ele encontrou no templo um instrumento maravilhoso, que
um desígnio providencial parecia ter-lhe reservado.
A jovem Teocléia pertencia ao colégio das sacerdotisas de Apolo.
Originava-se de uma das famílias nas quais a dignidade
sacerdotal é hereditária. A atmosfera do santuário, as cerimônias do culto, os
peãs, as festas de Apolo pítio e hiperbóreo tinham alimentado sua infância.
Era daquelas jovens que têm aversão inata e instintiva por tudo
o que seduz as outras, e por isso não gostam de Ceres e temem Vênus. A pesada atmosfera
terrestre as inquieta e o amor físico, vagamente entrevisto, parece-lhes uma
violação da alma, uma quebra de seu ser intacto e virginal. Ao contrário, são
estranhamente sensíveis a correntes misteriosas, a influências astrais. Quando
a Lua incidia sobre os sombrios bosques da fonte de Castália, Teocléia via
deslizarem formas brancas. Em pleno dia, ouvia vozes. Quando se expunha aos
raios do Sol levante, sua vibração mergulhava-a em uma espécie de êxtase, em que
ouvia coros invisíveis. No entanto, era insensível às superstições e às idolatrias populares
do culto. As estátuas deixavam-na indiferente e tinha horror aos sacrifícios animais. Não falava a ninguém das aparições que
perturbavam seu sono. Sentia, com o instinto das clarividentes, que os
sacerdotes de Apolo não possuíam a suprema luz de que ela necessitava. Estes,
contudo, não descuidavam dela para convencê-la a tornar-se Pitonisa. Ela sentia-se atraída
por um mundo superior, do qual não tinha a chave. Que deuses seriam aqueles que se
apoderavam dela mediante sopros e calafrios? Gostaria de sabê-lo, antes de
consagrar-se a eles. Pois as grandes almas têm necessidade de ver claramente, mesmo quando
se abandonam às potências divinas.
De que profunda comoção, de que pressentimento misterioso deverá
ter-se agitado a alma de Teocléia, quando viu Pitágoras pela primeira vez e
ouviu sua voz eloquente repercutir entre as colunas do santuário apolíneo! Sentiu a presença do iniciador que esperava e reconheceu seu mestre. Ela queria saber.
Ela saberia por ele; e este mundo interior, este mundo que ela carregava
consigo ele iria revelá-lo!
– Ele, por seu lado, com seu olhar seguro e penetrante, deve ter
reconhecido nela a alma viva e vibrante que procurava para tornar-se intérprete
de seu pensamento no templo e nele infundir um novo espírito. Desde o primeiro
olhar, desde a primeira palavra, uma corrente invisível ligou o sábio de Samos à jovem sacerdotisa, que o escutava
sem nada dizer, bebendo suas palavras, fitando-o com os grandes olhos
atentos. Não sei quem disse que o poeta e a lira se reconhecem em uma
vibração profunda, aproximando-se um do outro. Assim se reconheceram
Pitágoras e Teocléia.
Desde o nascer do sol, Pitágoras mantinha longas conversas com os
sacerdotes de Apolo, chamados santos e profetas. Ele pediu que a jovem
sacerdotisa ali fosse admitida, a fim de iniciá-la em seu ensinamento secreto e prepará-la para
desempenhar sua missão. Ela pôde então acompanhar as lições que o mestre dava todos os
dias no santuário. Pitágoras estava no vigor da idade. Trazia a veste branca disposta
à maneira egípcia; uma faixa púrpura cingia-lhe a larga fronte.
Quando falava, seus olhos graves e lentos pousavam no interlocutor e
o envolviam numa luz tépida. Em torno dele, a atmosfera parecia tornar-se mais
leve e inteiramente intelectual.
As conversações do sábio de Samos com os mais altos representantes
da religião grega foram da maior importância. Não se tratava somente de
adivinhação e de inspiração, mas do futuro da Grécia e dos destinos do mundo inteiro. Os conhecimentos,
os títulos e os poderes que ele adquirira nos templos de Mênfis e da Babilônia conferiam-lhe
a maior autoridade. Tinha o direito de falar como superior e como guia aos
inspiradores da Grécia. Fê-lo com a eloquência de seu gênio, com o entusiasmo de sua missão. Para que melhor
compreendessem, começou por narrar sua juventude, suas lutas, sua iniciação egípcia. Falou-lhes do
Egito, mãe da Grécia, velho como o mundo, imutável como uma múmia coberta de
hieróglifos, no fundo de suas pirâmides, que possuía em sua tumba o segredo dos
povos, dos idiomas, das religiões. Desenrolou diante de seus olhos os mistérios
da grande Ísis, terrestre e celeste, mãe dos Deuses e dos homens; e, fazendo-os
passar por suas provas, mergulhou-os com ele na luz de Osíris. Depois foi a vez
da Babilônia, dos magos caldeus, de suas ciências ocultas, de seus templos
profundos e maciços, onde evocam o fogo vivo onde se movem os demônios e os
Deuses.
Ao escutar Pitágoras, Teocléia experimentava sensações surpreendentes. Tudo o que ele dizia
ficava gravado com letras de fogo em seu espírito. Aquelas coisas pareciam-lhe
ao mesmo tempo maravilhosas e conhecidas. Aprendendo-as, acreditava recordar. As palavras do mestre faziam-na
folhear as páginas do Universo como em um livro. Ela não via mais os Deuses sob suas
efígies humanas, mas em suas essências, que formam as coisas e os espíritos.
Flutuava, subia, descia com eles nos espaços. Às vezes, tinha a ilusão de não
mais sentir os limites de seu corpo e de se dissolver no infinito. Assim, sua imaginação
entrava pouco a pouco no mundo invisível; e as marcas antigas que encontrava em
sua própria alma diziam-lhe que era esta a verdade, a única realidade. O resto
era apenas aparência. Ela sentia que em breve seus olhos interiores
abrir-se-iam para contemplá-la diretamente.
Daquelas alturas o mestre a trouxe bruscamente de volta à terra,
narrando as infelicidades do Egito. Depois de ter discorrido sobre a grandeza
da ciência egípcia, ele mostrou-a sucumbindo sob a invasão persa. Narrou os
horrores de Cambises, os templos saqueados, os livros
sagrados jogados à fogueira, os sacerdotes de Osíris mortos ou dispersos,
o monstro do despotismo persa concentrando sob sua mão de ferro toda a velha
barbárie asiática; as raças errantes semi-selvagens do centro da Ásia e do
fundo da Índia esperando somente uma ocasião para precipitar-se sobre a Europa.
Sim, esse ciclone que aumentava devia um dia eclodir sobre a Grécia, tão
seguramente quanto o raio deve sair de uma nuvem que se condensa no ar. A
Grécia dividida estaria preparada para resistir a esse choque terrível? Ela nem
sequer suspeitava disso. Os povos não evitam seus destinos, e, se não vigiarem
incessantemente, os Deuses os precipitam. A sábia nação de Hermes, o Egito, não
desmoronara após seis mil anos de prosperidade? E a Grécia, a bela Jônia,
passaria mais depressa ainda! Chegará o tempo em que o Deus solar abandonará
este templo, cujas pedras os bárbaros derrubarão, enquanto os pastores
apascentarão seus rebanhos nas ruínas de Delfos...
Ante estas sinistras profecias, a fisionomia de Teocléia transformou-se,
exibindo uma expressão de pavor. Ela se deixou cair por terra e, abraçada a uma
coluna, olhos fixos, abismada em seus pensamentos, parecia o gênio da Dor
chorando sobre o túmulo da Grécia.
“Mas estes, continuou
Pitágoras, são segredos que devem ficar sepultados no fundo dos templos. O iniciado atrai a morte ou a repele à sua vontade. Formando a
cadeia mágica das vontades, os iniciados prolongam também a vida dos povos. Cabe a vós retardar a hora fatal, cabe a vós fazer brilhar a
Grécia, cabe a vós fazer resplandecer nela o verbo de Apolo. Os povos são o que
deles fazem os seus Deuses. Mas os Deuses só se revelam àqueles que os invocam.
O que é Apolo? O Verbo do Deus único que se manifesta eternamente no mundo. A verdade
é a alma de Deus, seu corpo é a luz. Os
sábios, os videntes, os profetas são os únicos que a veem. Os homens só veem sua sombra. Os espíritos glorificados, que
denominamos heróis e semideuses, habitam esta luz, em legiões, em esferas inumeráveis. Eis o verdadeiro corpo de Apolo, o sol dos iniciados, e sem
seus raios nada de grande se faz sobre a Terra. Como o ímã atrai o ferro, com nossos pensamentos, com nossas preces,
com nossas ações, atraímos a inspiração divina. A vós cabe transmitir à Grécia o verbo de Apolo; e a Grécia
brilhará com uma luz imortal!”
Foi com discursos semelhantes que Pitágoras conseguiu devolver aos
sacerdotes de Delfos a consciência de sua missão. Teocléia absorvia-os com uma paixão
silenciosa e concentrada. Transformava-se a olhos vistos, sob a influência do
pensamento e da vontade do mestre, como sob um lento encantamento. De pé, em
meio aos anciãos espantados, ela desfazia sua cabeleira negra e a afastava da
testa, como se ali sentisse correr fogo. Já seus
olhos, muito abertos e transfigurados, pareciam contemplar os gênios solares e
planetários, em suas órbitas esplêndidas e intensa irradiação.
Um dia ela caiu espontaneamente num sono profundo e lúcido. Os cinco
profetas cercaram-na; ela permaneceu insensível à sua voz e ao seu toque.
Pitágoras aproximou-se e disse: “Levanta-te e vai
onde meu pensamento te enviar. Pois de agora em diante és Pitonisa!”
À voz do mestre, um tremor percorreu-lhe todo o corpo e a soergueu
numa longa vibração. Seus olhos estavam fechados; mas ela via interiormente.
Pitágoras perguntou-lhe:
–
Onde estás?
–
Eu subo... subo cada vez mais.
– E
agora?
–
Nado na luz de Orfeu...
– O
que vês no futuro?
–
Grandes guerras... homens de bronze... brancas vitórias... Apolo volta para
habitar seu santuário e eu serei sua voz!... Mas, tu, seu mensageiro... Ai! Ai!
tu vais deixar-me... e levarás sua luz para a Itália.
A vidente, de olhos fechados, falou durante longo tempo com sua voz
musical, ofegante, ritmada. Depois, com um soluço, caiu como morta.
Assim Pitágoras, vertia os puros ensinamentos no seio de
Teocléia e afinava-a como uma lira para o sopro dos Deuses. Uma vez exaltada a esta
altura de inspiração, ela tornou-se uma chama, graças à qual ele pôde sondar
seu próprio destino, desvendar o possível futuro, dirigindo-se às plagas sem
margem do invisível. Esta contraprova palpitante das verdades que ele ensinava encheu os
sacerdotes de admiração, despertou seu entusiasmo e reanimou sua fé. O templo tinha agora uma pitonisa inspirada, sacerdotes iniciados
nas ciências e nas artes divinas. Delfos poderia transformar-se num centro de
vida e de ação.
Pitágoras permaneceu ali um ano inteiro. Foi só depois de ter instruído
os sacerdotes em todos os segredos de sua doutrina e de ter formado Teocléia
para o seu ministério que ele partiu para a Magna Grécia.
1º Letters on animal
magnetism, de William Gregory, Londres, 1850. – Gregory era professor de
Química na Universidade de Edimburgo. Seu livro é um estudo aprofundado dos
fenômenos do magnetismo animal, desde a sugestão até a visão à distância e
clarividência lúcida, em indivíduos observados por ele mesmo, de acordo com
métodos científicos e com minuciosa exatidão.
2º Die Mystischen Erscheinungen der menschlichen
Natur, von Maximilian Perty, Leipzig, 1872. – M. Perty foi professor de
Filosofia e de
Medicina na Universidade
de Berna. Seu livro oferece um imenso repertório de todos os fenômenos ocultos
que têm algum valor histórico. O capítulo bastante notável sobre a
clarividência (Schlafwachen), volume I, encerra vinte histórias de mulheres
sonâmbulas e cinco de homens sonâmbulos, narradas pelos médicos que os
trataram. A história da clarividente Weiner, tratada pelo autor, é das mais
curiosas. – Ver também os tratados de magnetismo de Dupotet, Deleuze e o livro
extremamente curioso: Die Sherin von Prévorst, de Justinis Kerner.
IV
A
ORDEM E A DOUTRINA
A cidade de Crotona ocupava a extremidade do golfo de Tarento, perto
do promontório Laciniano, diante do alto mar. Era, com Síbaris, a cidade mais
florescente da Itália meridional. Era admirada por sua constituição dórica,
seus atletas vencedores nos jogos olímpicos, seus médicos rivais dos
asclepíades. Os sibaritas devem sua imortalidade ao luxo e à indolência. Os
crotoniatas seriam talvez esquecidos, apesar de suas virtudes, se não tivessem
tido a glória de oferecer asilo à grande escola de filosofia esotérica,
conhecida pelo nome de seita pitagórica, que se pode considerar mãe da escola
platônica e avó de todas as escolas idealistas. Por mais nobres que sejam as
descendentes, a avó as
supera em muito. A escola platônica procede de uma iniciação incompleta;
a escola estóica perdeu a verdadeira tradição. Os outros sistemas de filosofia
antiga e moderna são especulações mais ou menos felizes, enquanto que a
doutrina de Pitágoras estava baseada em uma ciência experimental e acompanhada
de uma organização completa da vida.
Como as ruínas da cidade desaparecida, os segredos da ordem e o pensamento
do mestre estão hoje profundamente enterrados.
Procuraremos, contudo, fazê-los reviver. Será para nós ocasião de penetrar
no coração da doutrina teosófica, arcano das religiões e das filosofias, e
erguer uma ponta do véu de Ísis, com a clareza do gênio grego.
Várias razões levaram Pitágoras a escolher esta colônia dórica para
centro da ação. Seu fim não era unicamente ensinar a doutrina esotérica a um
círculo de discípulos escolhidos, mas ainda aplicar seus princípios à educação
da juventude e à vida do Estado. Esse plano comportava a fundação de um instituto
para a iniciação laica, com a intenção oculta de transformar, pouco a pouco, a
organização política das cidades, à imagem daquele ideal filosófico e
religioso. É certo que nenhuma das repúblicas da Hélade ou do Peloponeso teria
tolerado esta inovação. O filósofo foi acusado de conspirar contra o Estado. As
cidades gregas do golfo de Tarento, menos minadas pela demagogia, eram mais
liberais. Pitágoras não se enganou contando ali encontrar um acolhimento
favorável para suas reformas, por parte do Senado de Crotona. Devemos
acrescentar que suas pretensões se estendiam para além da Grécia. Adivinhando a
evolução das idéias, ele previa a queda do helenismo e sonhava em depositar no
espírito humano os princípios de uma religião científica. Fundando sua escola
no golfo de Tarento, disseminava as idéias esotéricas na Itália e conservava, no vaso
precioso de sua doutrina, a essência purificada da sabedoria oriental para os povos
do Ocidente.
Ao chegar a Crotona, que tendia então à vida voluptuosa de sua vizinha,
Síbaris, Pitágoras promoveu uma verdadeira revolução. Porfírio e Jamblico nos
pintam suas apresentações iniciais mais como as de um
mágico do que de um filósofo. Reuniu os jovens no templo de
Apolo e conseguiu, com sua eloquência, arrancá-los do deboche. Reuniu as mulheres
no templo de Juno e as persuadiu a levarem suas roupas douradas e seus
ornamentos a este mesmo templo, como troféus à derrota da vaidade e do luxo.
Cercava de graça a austeridade de seus ensinamentos. De sua sabedoria emanava
uma chama comunicativa. A beleza de sua fisionomia, a nobreza de sua pessoa, o
encanto de seu rosto e de sua voz completavam sua sedução. As mulheres comparavam-no
a Júpiter, os jovens, a Apolo hiperbóreo. Ele cativava, arrebatava a multidão
pasmada que o ouvia, fazendo-a apaixonar-se pela virtude e pela verdade.
O Senado de Crotona ou Conselho dos mil inquietou-se com esta ascendência.
Intimou Pitágoras a explicar diante dele sua conduta e os meios que empregava
para dominar os espíritos. Para Pitágoras, esta foi
uma oportunidade para desenvolver suas idéias sobre a educação e
demonstrar que, longe de ameaçar a constituição dórica de Crotona, elas não
fariam mais que fortalecê-la.
Quando conquistou para seu projeto os cidadãos mais ricos e a maioria
do Senado, propôs-lhes a criação de um instituto, para si e seus discípulos.
Essa confraria de iniciados leigos levaria vida comunitária, em um edifício
construído especialmente com esse objetivo, mas sem abandonar a vida civil.
Entre eles, aqueles que já mereciam o nome de mestres podiam ensinar as
ciências físicas, psíquicas e religiosas.
Quanto aos jovens, seriam admitidos nas lições dos mestres e nos
diversos graus de iniciação, segundo sua inteligência e boa vontade, sob
o controle do chefe da ordem. Para começar, deviam submeter-se
às regras da vida comunitária e passar todo o dia no instituto, sob a supervisão
dos mestres. Aqueles que quisessem entrar formalmente na ordem entregariam sua
fortuna a um curador, com a liberdade de retomá-la quando lhes aprouvesse. Haveria no Instituto
uma fala para as mulheres, com iniciação paralela, mas diferenciada e adaptada
aos deveres de seu sexo.
O projeto foi adotado com entusiasmo pelo Senado de Crotona. Alguns
anos depois, erguia-se nos arredores da cidade um edifício cercado de imensos
pórticos e belos jardins. Os habitantes de Crotona chamaram-no de Templo das
Musas, E na realidade havia, no centro da construção, junto à modesta habitação
do mestre, um templo dedicado àquelas divindades.
Assim nasceu o instituto pitagórico, que se tornou ao mesmo tempo
um colégio de educação, uma academia de ciências e uma pequena cidade-modelo,
sob a direção de um grande iniciado, Pela teoria e pela prática, pelas ciências
e pelas artes reunidas, chegava-se lentamente à ciência das ciências, à
harmonia mágica da alma e do intelecto com o Universo, que os pitagóricos
consideravam como o arcano da filosofia e da religião. A escola pitágorica
tem para nós um interesse supremo, porque foi a mais notável tentativa de
iniciação leiga. Síntese antecipada do helenismo e do cristianismo, ela
enxertou o fruto da ciência na árvore da vida; conheceu a realização interna e
viva da verdade, que somente a fé profunda pode proporcionar. Realização efêmera,
mas de uma importância capital, revelou-se exemplo fecundo.
Para fazermos uma idéia do que foi, penetremos no instituto pitagórico
com um noviço e acompanhemos, passo a passo, sua iniciação.
AS
PROVAS
Brilhava sobre uma colina, entre ciprestes e oliveiras, a alva morada
dos irmãos
iniciados. Quem viesse de baixo, ladeando a costa, veria seus pórticos,
seus jardins, seu ginásio. O templo das Musas ultrapassava as duas alas do
edifício com sua colunata circular, de uma
elegância etérea. Do terraço dos jardins exteriores dominava-se
a cidade, o Pritaneu, o porto, o local das assembléias. Ao longe, o golfo estendia-se
entre as cotas pontiagudas como uma taça de ágata, e o mar Jônio arrematava o
horizonte com sua Unha azulada. Algumas vezes viam-se mulheres vestidas de cores diversas saírem da
ala esquerda e desceram para o mar, em longas filas, pela alameda dos
ciprestes. Iam cumprir seus ritos no templo de Ceres. Frequentemente,
também da ala direita viam-se homens, em vestes brancas, subirem para o templo
de Apolo. Não era o menor atrativo para a imaginação investigadora da juventude
pensar que a escola dos iniciados estava colocada sob a proteção daquelas duas
divindades, das quais uma, a Grande Deusa, era possuidora dos mistérios profundos da Mulher e da
Terra, e a outra, o Deus solar, revelava os do Homem e do Céu.
Sorria pois acima da cidade populosa a pequena cidade dos eleitos.
Sua tranquila serenidade atraía os nobres instintos na juventude, mas nada se
via do que se passava no interior, e sabia-se que não era fácil fazer-se
admitir ali, Uma simples cerca viva servia como defesa aos jardins pertencentes
ao instituto de Pitágoras e a porta de entrada permanecia aberta durante o dia.
Porém havia lá uma estátua de Hermes em cujo pedestal se lia: Eskato bébéloi: Para trás os
profanos! Todo mundo respeitava esta ordem dos Mistérios.
Pitágoras era muito exigente na admissão dos noviços, dizendo que
“nem toda a madeira era própria para
fazer um Mercúrio”. Os jovens que quisessem entrar para a associação deviam
submeter-se a um período de prova e de ensaio. Apresentados por seus pais ou
por um dos mestres, era-lhes permitido, no início, entrar no ginásio
pitagórico, onde os noviços entregavam-se aos jogos próprios de sua idade. O
jovem notava, ao primeiro olhar, que esse ginásio não se assemelhava ao da cidade.
Nada de gritos violentos, nada de grupos brigões, nada da fanfarronice ridícula
ou da vã exibição da força dos atletas imaturos, desafiando-se entre si ou
mostrando seus músculos. Havia grupos de jovens afáveis e distintos, passeando
aos pares sob os pórticos ou jogando na arena. Eles o convidavam com graça e
simplicidade a tomar parte em sua conversação, como se fosse um dos seus, sem
tolhê-lo com um olhar desconfiado ou um sorriso malicioso. Na arena,
exercitava-se a corrida, o arremesso do dardo e do disco. Executavam-se também combates
simulados sob forma de danças dóricas; mas Pitágoras. Havia severamente
banido de seu instituto a luta corporal, dizendo que era supérfluo e mesmo
perigoso desenvolver o orgulho e o ódio com a força e a agilidade; que os
homens destinados a praticar as virtudes da amizade não deviam começar por se
lançarem por terra, rolando na areia como animais selvagens; que um
verdadeiro herói sabia combater com coragem, sem furor; que o ódio nos torna
inferiores a qualquer adversário.
O novato ouvia estas máximas do mestre repetidas pelos noviços, muito
orgulhosos de lhe comunicarem sua sabedoria precoce. Ao mesmo tempo, eles o
exortavam a manifestar suas opiniões, a contradizê-los livremente. Dessa forma
estimulado, o pretendente ingênuo mostrava logo, abertamente, sua verdadeira
natureza. Feliz por estar sendo ouvido e admirado, ele perorava e se desoprimia
à vontade.
Durante todo esse tempo, os mestres observavam-no de perto, sem repreendê-lo.
Pitágoras
vinha de improviso estudar seus gestos e suas palavras. Dava particular
atenção ao modo de andar e ao riso dos jovens. O riso, segundo ele, manifesta o
caráter de uma maneira indubitável; nenhuma dissimulação pode embelezar o riso
do Homem mau. Ele realizara um estudo tão profundo da fisionomia humana que podia
ler no fundo da alma (1).
(1). Orígenes acredita
que Pitágoras tenha sido o inventor da fisiognomonia.
Mediante estas observações minuciosas, o mestre fazia uma avaliação
precisa de seus futuros discípulos. Após alguns meses vinham as provas decisivas. Imitavam as provas da iniciação
egípcia,
porém bastante suavizadas e adaptadas à natureza grega, cuja
impressionabilidade não suportaria os pavores mortais das criptas de Mênfis e
Tebas. Faziam o aspirante pitagórico passar a noite numa caverna, nos arredores
da cidade, onde se dizia que havia monstros e aparições. Os que não tinham
força para suportar as impressões fúnebres da solidão e da noite, os que
recusavam entrar ou fugiam antes da manhã, eram considerados fracos para a
iniciação e despedidos.
A prova moral era mais séria. Numa bela manhã, bruscamente, sem
nenhuma preparação, encerrava-se o candidato a discípulo numa cela triste e
nua. Deixavam-lhe uma ardósia e ordenavam-lhe friamente que encontrasse o
significado de um dos símbolos pitagóricos, por exemplo: “O que significa o triângulo inscrito no círculo?” ou “por que o dodecaedro compreendido na esfera
é o algarismo do Universo?” Ele passava doze horas na cela. com sua ardósia
e seu problema, sem nenhuma outra companhia além de pão seco e um jarro de
água.
Depois levavam-no para uma sala, diante dos noviços reunidos.
Nessa circunstância, estes tinham ordem de escarnecer sem piedade do infeliz
que, aborrecido e faminto, parecia um culpado. “– Eis, diziam eles, o novo filósofo. Seu
semblante parece inspirado! Ele vai nos contar suas meditações. Não nos
escondas o que descobriste. Vais passar por todos os símbolos. Com mais um mês
deste regime, tu te tornarás um grande sábio!”
Nesse momento o mestre observava com profunda atenção as atitudes
e a fisionomia do jovem. Irritado pelo jejum, coberto de sarcasmos, humilhado
por não ter resolvido um enigma incompreensível, ele precisava fazer um esforço
enorme para se dominar. Alguns choravam de raiva, outros respondiam com
palavras cínicas; e outros, fora de si, quebravam a ardósia com furor, cobrindo
de injúrias a escola, o mestre e seus discípulos. Pitágoras aparecia então e dizia
com calma que, tendo suportado tão mal a prova do amor-próprio, pedia-lhe para
não mais voltar a uma escola da qual tinha tão mau conceito e cujas virtudes
elementares eram a amizade e o respeito aos mestres. O candidato recusado ia
embora envergonhado, e algumas vezes tornava-se inimigo terrível da ordem, como
o famoso Cilon, que depois amotinou o
povo contra os Pitagóricos e contribuiu para a catástrofe da ordem. Aqueles
que, ao contrário, suportavam com firmeza os ataques, que respondiam às
provocações por meio de reflexões justas e espirituais, e declaravam estar
dispostos a recomeçar cem vezes a prova para obterem uma única parcela da
sabedoria, estes eram solenemente admitidos no noviciado e recebiam as
felicitações entusiastas de seus novos condiscípulos.
PRIMEIRO
GRAU – PREPARAÇÃO
O noviciado e a
vida pitagórica
Somente então começava o noviciado chamado Preparação (paraskéié),
que durava pelo menos dois anos e podia prolongar-se até cinco. Os noviços ou
ouvintes (akusikoi) eram submetidos,
durante as lições, à regra do absoluto silêncio. Não tinham nem o direito de
fazer uma objeção aos mestres, nem de discutir seus ensinamentos. Deviam recebê-los
com respeito, e depois meditar longamente sobre eles. Para gravar esta regra no
espírito do ouvinte novato, mostravam-lhe uma estátua de mulher envolta num
longo véu, com um dedo pousado nos lábios: a Musa
do silêncio.
Pitágoras não acreditava que a mocidade fosse capaz de compreender
a origem e o fim das coisas. Pensava que exercitá-la na dialética e no
raciocínio, antes de ter-lhe dado o sentido da verdade, formaria cabeças vazias
e sofistas pretensiosos. Sonhava em desenvolver em seus alunos, antes de tudo, a faculdade
primordial e superior do homem: a
intuição. E para isso não ensinava coisas misteriosas ou difíceis. Falava
dos sentimentos naturais, dos primeiros deveres do homem em sua entrada na
vida, e mostrava sua relação com as leis universais. Como inculcava
primordialmente nos jovens o amor pelos pais, exaltava este sentimento
assimilando a idéia de pai à de Deus, o grande criador do Universo. “Não há nada de mais venerável, dizia, do que
a qualidade de pai”. Homero denominou Júpiter rei dos Deuses, mas, para
mostrar toda a sua grandeza, denominou-o “pai dos Deuses e dos homens”.
Comparava a mãe à natureza generosa e benfeitora. Como Cibele celeste produz os astros, como
Deméter gera os frutos e as flores da Terra, assim a mãe nutre a criança com
todas as alegrias. O filho devia, pois, honrar em seu pai e em sua mãe os representantes,
as imagens terrestres daquelas grandes divindades.
Mostrava ainda que o amor pela pátria vem do amor que se sentiu
na infância pela mãe. Os pais não nos são
dados por acaso, como acredita o vulgo, mas por uma ordem antecedente e
superior, chamada fortuna ou necessidade. É preciso honrá-los, mas deve-se
escolher seu amigo.
Os noviços eram convidados a se reunirem dois a dois conforme
suas afinidades. O mais jovem devia procurar no mais velho as virtudes que desejava
para si e os dois companheiros deviam exercitar-se para uma vida melhor. Dizia
o mestre: “O amigo é um outro eu.
Deve-se honrá-lo como a um Deus”. Se a regra pitagórica impunha ao noviço ouvinte uma submissão
absoluta em face dos mestres, devolvia-lhe sua plena liberdade no encanto da amizade, dela fazendo
o estimulante de todas as virtudes, a poesia da vida, o caminho do ideal.
As energias individuais eram assim despertadas; a moral tornava-se
viva e poética; a regra, aceita com amor, deixava de ser uma violência e
tornava-se a própria afirmação da individualidade. Pitágoras queria que a
obediência fosse uma aceitação. Além do mais, o ensino moral preparava o ensino filosófico. Pois as relações
que se estabeleciam entre os deveres sociais e as harmonias do Cosmos deixavam entrever
a lei das analogias e das concordâncias universais. Nesta lei reside
o princípio dos Mistérios, da doutrina oculta e de toda a filosofia. O espírito do
aluno habituava-se assim a encontrar a marca de uma ordem invisível na
realidade visível. Máximas gerais, prescrições sucintas abriam perspectivas
sobre este mundo superior. De manhã e à
noite soavam versos dourados aos ouvidos do aluno, com os acordes da
lira: Dedica aos Deuses imortais o culto consagrado, e conserva tua
fé.
Comentando-se esta máxima, mostrava-se que os Deuses, diversos
na aparência, eram na realidade os mesmos entre todos os povos, pois correspondiam às
mesmas forças intelectuais e anímicas, atuantes em todo o Universo. O sábio podia,
portanto, honrar os Deuses de sua pátria tendo, de sua essência, uma concepção
diferente da do vulgo. Tolerância para com
todos os cultos; unidade dos povos na humanidade; unidade das religiões na
ciência esotérica. . . Estas idéias
novas se desenhavam vagamente no espírito do noviço, como divindades
grandiosas entrevistas no esplendor do poente. E a lira de ouro continuava seus
graves ensinamentos: Reverencia a memória, dos heróis-benfeitores, dos
espíritos semideuses.
Por trás destes versos, o noviço via reluzir, como que através
de um véu, a divina Psiquê, a alma humana. A rota celeste brilhava como um foguete de luz. No culto dos heróis e
dos semideuses, o iniciado contemplava a doutrina da vida futura e o mistério
da evolução universal. Não se revelava este grande segredo ao noviço. Mas ele era preparado
para compreendê-lo, ouvindo falar de uma hierarquia de seres superiores à humanidade, chamados heróis
e semideuses, que são seus guias e seus protetores. Acrescentava-se que eles
serviam de intermediários entre o homem e a divindade, que por meio deles ele poderia,
gradativamente, se aproximar dela, praticando as virtudes heróicas e divinas. “Mas, como se comunicar com estes gênios invisíveis? De onde vem a
alma? Para onde vai ela? E por que este sombrio mistério da morte?” O noviço não
ousava formular estas questões, mas elas transpareciam em seus olhares. E como
única resposta seus mestres mostravam-lhe combatentes na Terra, estátuas nos templos,
e almas glorificadas no céu, “na cidadela ígnea dos
Deuses”, onde Hércules chegara.
No fundo dos mistérios antigos, todos os Deuses conduziam ao Deus
único e supremo. Essa revelação, com todas as suas consequências, era a chave do
Cosmos.
Por isso ela era inteiramente reservada à iniciação propriamente dita. O noviço
nada sabia dela. Só o deixavam entrever esta verdade através do que lhe
diziam sobre as potências da Música e do Número. Os
números, ensinava o mestre, contêm o segredo das coisas, e Deus é a harmonia
universal. Os sete modos sagrados, construídos sobre as sete notas do heptacórdio, correspondem
às sete cores da luz, aos sete planetas e aos sete modos de existência que se
reproduzem em todas as esferas da vida material e espiritual, desde a menor até
a maior. As melodias destes modos, sabiamente infundidas, deviam afinar a
alma e torná-la suficientemente harmoniosa para vibrar ao sopro da verdade.
À purificação da alma correspondia necessariamente a do corpo, alcançada
pela higiene e pela severa disciplina dos costumes. Vencer as
paixões era o primeiro dever do iniciado. Quem não fez de seu
próprio ser uma harmonia não pode refletir a harmonia divina. Entretanto, o ideal
da vida pitagórica nada tinha da vida ascética, uma vez que o casamento era
considerado uma coisa santa. Porém recomendava-se a castidade aos noviços e a moderação aos
iniciados, como um elemento de força e perfeição. “Não cedas à volúpia senão quando consentires
em ser inferior a ti mesmo”, dizia o mestre. E acrescentava que a volúpia não
existe espontaneamente, comparando-a “ao canto das sereias, que desaparecem
quando alguém delas se aproxima, deixando no local apenas ossos partidos e
carnes ensanguentadas, sobre um recife gasto pelas ondas, ao passo que a
verdadeira alegria é semelhante ao concerto das musas, que deixa na alma uma
celeste harmonia”.
Pitágoras
acreditava nas virtudes da mulher iniciada, mas não confiava na mulher natural.
A um discípulo que lhe perguntou quando lhe seria permitido aproximar-se de uma
mulher, ele respondeu ironicamente: “Quando
estiveres cansado de teu repouso.”
O dia pitagórico ordenava-se da seguinte maneira: assim que o disco
ardente do sol saía das ondas azuis do mar Jônio e dourava as colunas do templo
das Musas, acima da morada dos iniciados, os jovens pitagóricos, cantavam um
hino a Apolo, executando uma dança dórica de caráter másculo e sagrado. Após as
abluções de rigor, faziam um passeio ao templo, guardando silêncio. Cada despertar é uma
ressurreição, que tem sua flor de inocência. A alma devia recolher-se no começo
do dia e permanecer virgem para a lição da manhã. No bosque sagrado,
agrupavam-se em torno do mestre ou de seus intérpretes, e a lição decorria sob
a frescura das grandes árvores ou à sombra dos pórticos. Ao meio-dia faziam
uma prece aos heróis, aos gênios benfazejos. A tradição esotérica supunha que os
bons espíritos preferem se aproximar da terra com os raios do sol, enquanto os
maus espíritos procuram a sombra e se espalham na atmosfera quando vem a noite.
A refeição
frugal do meio-dia compunha-se geralmente de pão, mel e azeitonas. A tarde era
consagrada aos exercícios de ginástica, depois ao estudo, à meditação e a um
trabalho mental sobre a lição da manhã.
Após o pôr-do-sol faziam uma oração coletiva, cantavam um hino
aos Deuses cosmogônicos, a Júpiter celeste, a Minerva Providência, a Diana protetora
dos mortos. Durante esse tempo, o estirax, o maná ou o incenso queimavam no
altar ao ar livre, e o hino, misturado ao perfume
que dali exalava, subia docemente ao crepúsculo, enquanto as
primeiras estrelas varavam o pálido firmamento. O dia terminava com a refeição da
noite, depois da qual o mais jovem fazia uma leitura comentada pelo mais velho.
Assim decorria o dia pitagórico, límpido com uma fonte, claro como
uma manhã sem nuvens. O ano se ritmava segundo as grandes festas astronômicas.
Assim a volta de Apolo hiperbóreo e a celebração dos mistérios de Ceres reuniam
os noviços e os iniciados de todos os graus, homens e mulheres. Viam-se ali
moças tocando liras de marfim, mulheres casadas em peplos púrpura e açafrão
executando coros alternados, acompanhados de cantos, com movimentos harmoniosos
da estrofe e da ante-estrofe, que mais tarde foram imitados pela tragédia.
Em meio destas grandes festas, em que a divindade parecia
presente na graça das formas e dos movimentos, na melodia incisiva dos coros, o
noviço tinha como que um pressentimento das forças ocultas, das leis todo-poderosas
do Universo animado, do céu profundo e transparente.
Os casamentos, os ritos fúnebres tinham um caráter mais íntimo,
não menos solene. Uma cerimônia original era realizada para impressionar a
imaginação. Quando um noviço saía voluntariamente do instituto
para retomar a vida vulgar, ou quando um discípulo havia traído um segredo da
doutrina, o que aconteceu somente uma vez, os iniciados erguiam-lhe um túmulo
no recinto consagrado, como se ele tivesse morrido. O mestre dizia: “Ele está mais morto do que os mortos, pois
voltou para a vida má; seu corpo passeia entre os homens, mas sua alma está
morta. Choremos por ela”. E este túmulo, erguido para um ser vivo,
perseguia-o como seu próprio fantasma e como um sinistro augúrio.
SEGUNDO
GRAU – PURIFICAÇÃO (2)
Os Números. - A
Teogonia.
(2). Katharsis (Catarse) em grego.
Era um dia feliz, “um dia de ouro”, como diziam os antigos, aquele
em que Pitágoras recebia o noviço em sua morada e o aceitava solenemente nas
fileiras de seus discípulos. O noviço entrava primeiro em contatos seguidos e
diretos com o mestre. Penetrava no pátio interno de sua habitação, reservado a
seus fiéis. Daí o nome de
esotéricos (os de dentro) oposto ao de exotéricos (os de fora). A verdadeira
iniciação começava.
Essa revelação consistia numa exposição completa e racional da doutrina
oculta, desde seus princípios contidos na ciência misteriosa dos números até às
últimas consequências da evolução universal, os destinos e os fins supremos da
divina Psiquê, da alma humana. Esta ciência dos números era conhecida sob
diversos nomes nos templos do Egito e da Ásia. Como ela fornecia a chave de toda a
doutrina, escondiam-se cuidadosamente do vulgo. As cifras, as letras, as figuras geométricas
ou as representações humanas que serviam de sinais àquela álgebra do mundo
oculto só eram entendidas pelo iniciado. Este somente revelava o seu significado ao adepto depois do
juramento do silêncio.
Pitágoras formulou esta ciência em um livro escrito pessoalmente
chamado hiéros logos, a palavra
sagrada. Este livro não chegou até nós.
Mas os escritos posteriores dos pitagóricos, Filolaus, Arquitas
e Hiérocles, os diálogos de Platão, os tratados de Aristóteles, de Porfírio e de
Jamblico, dão-nos a conhecer seus princípios. Se eles permaneceram ocultos,
para os filósofos modernos, é porque só se pode compreender seu significado e seu alcance pela
comparação de todas as doutrinas esotéricas do Oriente.
Pitágoras
chamava seus discípulos de matemáticos, porque seu ensinamento superior
começava pela doutrina dos números. Esta matemática sagrada, ou ciência dos princípios, era ao
mesmo tempo mais transcendente e mais viva do que a matemática profana, a única
conhecida por nossos sábios e filósofos. Nela, o número não era considerado uma
quantidade abstrata, mas a virtude intrínseca e ativa do uno supremo, de Deus,
fonte da harmonia universal. A ciência dos números era a das forças vivas, das
faculdades divinas em ação nos mundos e no homem, no macrocosmo e no
microcosmo...
Penetrando-as, distinguindo-as e explicando seu jogo, Pitágoras elaborava nada menos
do que uma teogonia ou urna teologia racional.
Uma teologia verdadeira deveria fornecer os princípios de todas
as ciências. Ela só será a ciência de Deus se mostrar a unidade e o encadeamento
das ciências da natureza. Só merece este nome sob a condição de constituir o
órgão e a síntese de todas as outras. Ora, era justamente esta a função que
desempenhava nos templos egípcios a ciência do verbo sagrado, formulada e
aperfeiçoada por Pitágoras, sob o nome de ciência dos números. Ela acreditava
poder fornecer a chave do ser, da ciência e da vida. O adepto, guiado pelo
mestre, devia começar por contemplar-lhe os princípios com sua própria
inteligência, antes de seguir suas múltiplas aplicações na imensidade
concêntrica das esferas da evolução.
Um poeta moderno pressentiu esta verdade, quando fez Fausto descer
até as Mães, para dar vida ao fantasma de Helena. Fausto toma a chave mágica, a
Terra abre-se a seus pés, a vertigem dele se apodera, e ele mergulha na vida
dos espaços. Finalmente, chega ao reino das Mães, que vigiam as formas
originárias do grande Todo e fazem brotar os seres do molde dos arquétipos. Estas Mães são os Números de Pitágoras, as forças divinas do mundo. O poeta
transmitiu-nos a comoção de seu próprio pensamento diante deste mergulho nos
abismos do Insondável. Para o iniciado antigo, em que a visão direta da inteligência
despertava pouco a pouco como um novo sentido, esta revelação interior parecia
antes uma ascensão ao grande sol incandescente da Verdade, de onde ele
contemplava, na plenitude da Luz, os seres e as formas, projetados no turbilhão
das vidas por uma irradiação vertiginosa.
Não se chegava em um só dia a esta posse interna da verdade, em que
o homem realiza a vida universal pela concentração de suas faculdades. Eram
necessários anos de exercício, e a concordância tão difícil da inteligência e
da vontade. Antes de manipular a palavra criadora – e quão poucos ali chegam! –
é preciso soletrar o verbo sagrado, letra por letra, sílaba por sílaba Pitágoras tinha o
hábito de ministrar estes ensinamentos no templo das Musas. Os magistrados
de Crotona mandaram-no construir, atendendo a seu pedido expresso e conforme
suas indicações, muito perto de sua morada, em um jardim fechado. Os discípulos
do segundo grau ali penetravam sozinhos com o mestre. No interior do templo circular
viam-se as nove Musas em mármore. De pé, no centro, velava Héstia, envolta num
véu, solene e misteriosa. Com a mão esquerda ela protegia a chama de um lume,
com a mão direita mostrava o céu. Para os gregos como para os romanos, Héstia ou Vesta é a guardiã do princípio divino presente em todas as coisas. Consciência do fogo sagrado,
ela tem seu altar no templo de Delfos, no Pritaneu de Atenas, no lume menor. No
santuário de Pitágoras, ela simbolizava a Ciência divina e central ou Teogonia.
Ao
redor dela, as Musas esotéricas traziam, além de seus nomes tradicionais e
mitológicos, o nome das ciências ocultas e das artes sagradas, que elas
guardavam. Urânia representava a astronomia e a astrologia; Polínia, a ciência
das almas da outra vida e a arte da adivinhação; Melpômene, com sua máscara trágica,
a ciência da vida e da morte, transformações e renascimentos.
Estas três Musas superiores reunidas constituíam a
cosmogonia ou física celeste. Calíope, Clio e Euterpe presidiam à ciência do
homem ou psicologia, com as artes correspondentes: Medicina, Magia, Moral. O
último grupo, Terpsícore, Erato e Tália, abrangia a física terrestre, a ciência
dos elementos, das pedras, das plantas e dos animais. Assim, num
primeiro estágio, o organismo das ciências, calcado sobre o organismo do
Universo, aparecia ao discípulo no círculo vivo das Musas iluminadas pela chama
divina.
Depois de ter conduzido seus discípulos àquele pequeno santuário,
Pitágoras abria o livro do Verbo e começava seu ensinamento esotérico. “As Musas, dizia ele, são apenas as efígies terrestres dos poderes
divinos, cuja beleza imaterial e sublime ides agora contemplar em vós mesmos.
Assim como elas vêem o Fogo de Héstia, do qual emanam e que lhes dá o
movimento, o ritmo e a melodia, assim também deveis mergulhar no Fogo central
do Universo, no Espírito divino, para expandir-vos com ele nas suas
manifestações visíveis”. Então, com mão forte e audaciosa, Pitágoras arrancava seus
discípulos ao mundo das formas e das realidades. Apagava o tempo e o espaço e
os fazia descer com ele até a grande Mônada, a essência do Ser incriado.
Pitágoras denominava o Uno primeiro, composto de harmonia, o Fogo
masculino que atravessa tudo, o Espírito que se move por si, o Indivisível e o
grande Não-Manifesto, cujos mundos efêmeros manifestam o pensamento criador, o único,
o Eterno, o Imutável, oculto sob as coisas múltiplas que passam e que mudam. “A essência em si mesma
escapa ao homem, diz o pitagórico Filolaus. Ele somente conhece as coisas deste
mundo, onde o finito se combina com o infinito.
E como pode conhecê-las? Porque há entre ele e as coisas uma harmonia,
uma relação, um princípio comum. Esse princípio lhe é dado pelo Uno, o qual lhe
dá, com sua essência, a medida e a inteligibilidade.
Ele é a medida comum entre o objeto e o sujeito, a razão das
coisas pela qual a alma participa da razão última do Uno (3)”. Mas,
como se aproximar d’Ele, do Ser que não se pode apreender? Alguém já viu o mestre
do tempo, a alma dos sóis, a fonte das inteligências? Não. E somente
confundindo-se com ele é que se penetra em sua essência. Ele é semelhante a um
fogo invisível colocado no centro do Universo, cuja chama ágil circula em todos
os mundos e movimenta a circunferência.
(3). Na matemática
transcendental, demonstra-se algebricamente que zero multiplicado pelo infinito
é igual a Um. Zero, na ordem das idéias absolutas, significa o Ser
indeterminado. O Infinito, o Eterno, na linguagem dos templos, marcava-se por
um círculo ou por uma serpente a morder a cauda. Isto significava o Infinito
movendo-se por si mesmo. Ora, no momento em que Infinito se determina, ele
produz todos os números que contém em sua grande unidade e que governa numa
harmonia perfeita.
Este é o sentido
transcendente do primeiro problema da teogonia pitagórica, a razão pela qual a
grande Mônada contém todas as pequenas e todos os números brotam da grande
unidade em movimento.
Acrescentava que a obra da iniciação consistia em aproximar-se do
grande Ser, assemelhando-se a ele, tornando-se tão perfeito quanto possível,
dominando as coisas pela inteligência, chegando a ser ativo como ele e não
passivo como elas. “Vosso próprio Ser, vossa alma, não é um microcosmo, um pequeno
Universo? Mas ela está repleta de tempestades e discórdias. Pois bem, trata-se
de realizar a unidade da harmonia. Então, somente então, Deus descerá em vossa
consciência e participareis de seu poder, e fareis de vossa vontade a pedra do
lar, o altar de Héstia, o trono de Júpiter!”
Portanto, Deus, a substância indivisível, tem por número a Unidade
que contém o Infinito, por nome o de Pai, de Criador ou de Eterno-Masculino,
por sinal o Fogo vivo, símbolo do Espírito, essência do Todo. Eis o primeiro dos
princípios.
Mas as faculdades divinas são semelhantes ao lótus místico que o
iniciado egípcio, deitado em seu sepulcro, vê surgir na negra noite. A princípio
não passa de um ponto brilhante, depois abre-se como uma flor e o centro
incandescente desabrocha como uma rosa de luz com mil
pétalas.
Pitágoras
dizia que a grande Mônada age como Díada criadora.
No momento em que se manifesta, Deus é duplo, essência indivisível e
substância divisível; princípio masculino ativo, animador, e princípio feminino
passivo ou matéria plástica animada. A Díada representava, pois, a união do
Eterno-Masculino e do Eterno-Feminino em Deus, as duas faculdades divinas
essenciais e correspondentes. Orfeu exprimira profeticamente essa idéia no
seguinte verso:
Júpiter é o Esposo e a Esposa divina.
Intuitivamente, todos os politeísmos tiveram consciência desta idéia,
representando a Divindade ora sob a forma masculina, ora sob a forma feminina.
E esta Natureza viva, eterna, esta grande Esposa de Deus, não é somente
a natureza terrestre, mas a natureza celeste invisível a nossos olhos carnais,
a Alma do mundo, a Luz primordial, alternadamente Maia, Ísis. e Cibele, que,
vibrando sob o impulso divino, encerra as essências de todas as almas, os tipos
espirituais de todos os seres. Em seguida é Deméter, a terra viva e todas as
terras com os corpos que encerram, em que aquelas almas vêm se encarnar. É depois a
Mulher, companheira do Homem. Na humanidade a Mulher representa a Natureza; e a
imagem perfeita de Deus não é só o Homem, mas o Homem e a Mulher. Daí sua
invencível, sedutora e fatal atração; daí a embriaguez e o Amor, onde se
representa o sonho das criações infinitas e o obscuro pressentimento de que o
Eterno-Masculino e o Eterno-Feminino gozam de uma união perfeita no seio de
Deus. “Honra, portanto, à Mulher, sobre a
terra e no céu”, dizia Pitágoras com todos os
iniciados antigos; “ela nos faz
compreender a grande Mulher, a Natureza. Que ela seja sua imagem santificada e
que nos ajude a galgar os degraus que nos levam até a grande Alma do Mundo, que
gera, conserva e renova, até a divina Cibele, que arrasta a multidão das almas em
seu manto de luz.”
A Mônada representa a essência de Deus; a Díada, sua faculdade geradora
e reprodutora. Esta gera o mundo, manifestação visível de Deus no espaço e no
tempo. Ora, o mundo real é
tríplice. Porque, assim como o homem se compõe de três elementos distintos,
mas fundidos um no outro: o corpo, a alma e o espírito, assim também o Universo
é dividido em três esferas concêntricas: o mundo natural, o mundo humano e o
mundo divino. A Tríada ou lei do ternário é, portanto, a lei constitutiva
das coisas e a verdadeira chave da vida, pois ela se acha em todos os graus da escada da vida, desde a
constituição da célula orgânica, através da constituição fisiológica do corpo
animal, do funcionamento do sistema sangüíneo e do sistema cerebrospinal, até a
constituição hiperfísica do homem, a do universo e de Deus. Assim, como por
encanto ela abre ao espírito maravilhado a estrutura interna do Universo.
Mostra as correspondências infinitas do macrocosmo e do microcosmo. Age como uma
luz, que passaria nas coisas para torná-las transparentes, e faz reluzir os
mundos pequenos e grandes como outras tantas lanternas mágicas.
Expliquemos esta lei pela correspondência essencial do homem e do
Universo.
Pitágoras admitia que o espírito do homem ou do intelecto conserva
de Deus sua natureza imortal, invisível, absolutamente ativa: o espírito é
aquilo que se move por si mesmo. Ele considera o corpo sua parte mortal,
divisível e passiva. Pensava que aquilo que chamamos alma está estreitamente
unido ao espírito, formado porém de um terceiro elemento intermediário que
provém do fluido cósmico. A alma se assemelha, portanto, a um corpo etéreo que
o espírito tece e constrói para si mesmo. Sem este corpo etéreo, o corpo
material não poderia se manifestar e não passaria de uma massa inerte e sem
vida (4). A alma tem uma forma semelhante à do corpo que ela vivifica, e a ele
sobrevive após a dissolução ou morte. Ela se torna então, segundo expressão de Pitágoras, repetida por Platão,
o carro sutil que leva o espírito às esferas divinas ou deixa-o cair nas
regiões tenebrosas da matéria, conforme seja mais ou menos boa ou má. Ora, a
constituição e a evolução do homem repetem-se em círculos crescentes em toda a
escala dos seres e em todas as esferas. Assim como a humana Psiquê luta contra
o espírito que a atrai e o corpo que a retém, também a humanidade evolui entre
o mundo natural e animal, em que mergulha por meio de suas raízes terrestres, e
o mundo divino dos puros espíritos, onde está sua fonte
celeste e à qual ela aspira elevar-se. E o que se passa na humanidade
ocorre em todas as terras e em todos os sistemas solares, em proporções sempre
diversas, em modos sempre novos. Estendei o círculo até o infinito – e, se puderdes,
abrangei com um só conceito os mundos sem limite. O que encontrareis ali? O
pensamento criador, o fluido astral e dos mundos em evolução: o espírito, a
alma e o corpo da divindade. Levantando véu por véu e sondando as faculdades da
própria divindade, lá vereis a Tríada e a Díada envolvendo-se na sombria
profundidade da Mônada como uma florescência de estrelas nos abismos da
imensidade.
(4). Encontra-se
doutrina idêntica no iniciado São Paulo, que fala do corpo espiritual.
Por esta rápida exposição, pode-se perceber a importância capital
que Pitágoras atribuía à lei do ternário. Pode-se dizer que ela constitui a pedra angular da ciência
esotérica. Todos os grandes iniciadores religiosos tiveram consciência disto, todos os teósofos o
pressentiram.
Um oráculo de Zoroastro diz:
O número três por toda a parte reina no Universo.
E a Mônada é seu princípio.
O
mérito incomparável de Pitágoras é ter formulado esta lei com a clareza do
gênio grego. Fez dela o centro de sua teogonia e o fundamento das
ciências.
Já velada nos escritos esotéricos de Platão e completamente incompreendida
pelos filósofos posteriores, esta concepção somente foi compreendida, nos
tempos modernos, por alguns raros iniciados das ciências ocultas(5).
Vê-se desde então que base larga e sólida a lei do ternário universal oferecia
à classificação das
ciências, à edificação da cosmogonia e da psicologia.
(5). Como primeiro dessa
série deve-se citar Fabre d'Olivet (Vers dores de Pythagore). Esta concepção
viva das forças do Universo, atravessando-o de alto a baixo, nada tem a ver com
as especulações vazias dos puros metafísicos, como, por exemplo, a tese, a
antítese e a síntese de Hegel, simples jogos do espírito.
Assim como o ternário universal se concentra na unidade de Deus ou
na Mônada, também o ternário humano se concentra na consciência do eu e na
vontade, que reúne todas as faculdades do corpo, da alma e do espírito em sua
viva unidade. O ternário humano e divino resumido na Mônada constitui a Tétrada sagrada. Mas o homem só realiza sua própria unidade de uma maneira
relativa. Pois sua vontade, que age sobre todo o seu ser, não pode, entretanto,
agir simultânea e plenamente em seus três órgãos, ou seja, no instinto, na alma
e no intelecto. O universo e o próprio Deus apenas lhe aparecem alternada e
sucessivamente refletidos por estes três espelhos:
1. Visto através do instinto e do caleidoscópio dos sentidos,
Deus é múltiplo e infinito como suas manifestações. Daí o politeísmo,
onde o número dos deuses não é limitado;
2. Visto através da alma racional, Deus é duplo, isto é,
espírito e matéria. Daí o dualismo de Zoroastro, dos maniqueus e de várias outras
religiões;
3. Visto através do intelecto puro, ele é triplo, ou seja,
espírito, alma e corpo, em todas as manifestações do universo. Daí os cultos trinitários
da Índia (Brahma, Visnu, Siva) e a própria trindade do cristianismo (Pai,
Filho, Espírito Santo);
4. Concebido pela vontade que resume o todo, Deus é único; é o monoteísmo
hermético de Moisés em todo o seu rigor. Aqui, nada de personificações, nada de
encarnação. Saímos do universo visível e entramos no Absoluto. O Eterno reina
só sobre o mundo reduzido a pó.
A diversidade das religiões provém, portanto, do fato de que o
homem só realiza a divindade através do seu próprio ser, que é relativo e
finito, enquanto Deus realiza a todo instante a unidade dos três mundos da harmonia
do Universo.
Esta última aplicação demonstraria, por si só, a virtude, de
certa forma mágica, do Tetragrama na ordem das idéias. Não somente aí se encontravam os
princípios das ciências, a lei dos seres e seu modo de evolução, mas ainda a
razão das religiões diversas e de sua unidade superior. Era
verdadeiramente a chave universal. Daí o entusiasmo com
que Lísis dela fala no
Vers dorés; e compreende-se agora por
que os Pitagóricos juravam por este grande símbolo:
Juro
por aquele que gravou em nossos corações
A Tétrada sagrada, imenso e puro
símbolo,
Fonte
da Natureza e modelo dos Deuses.
Pitágoras levava muito mais longe o ensino dos números. Em cada
um deles definia um princípio, uma lei, uma força ativa do Universo. Mas
afirmava que os princípios essenciais estão contidos nos quatro primeiros
números, uma vez que adicionando-os ou multiplicando-os obtêm-se todos os
outros.
Do mesmo modo a infinita variedade dos seres que compõem o Universo é produzida
pelas combinações das três forças primordiais: matéria, alma, espírito, sob o impulso
criador da unidade divina que os mistura e os diferencia, concentra-os e
ativa-os. Como os principais mestres da ciência esotérica, Pitágoras atribuía
grande importância ao número sete e ao número dez. Sete, sendo composto
de três e de quatro, significa a união do homem com divindade. É a cifra dos
adeptos, dos grandes iniciados, e, como exprime a realização completa em
qualquer coisa por sete graus, ele representa a lei da evolução. O número dez,
formado pela adição dos quatro primeiros e que contém o precedente, é o número perfeito
por excelência, pois representa todos os princípios da divindade evoluídos e
reunidos numa nova unidade.
Terminando o ensino de sua teogonia, Pitágoras mostrava aos discípulos
as nove Musas, personificando as ciências, agrupadas três a três, presidindo ao
tríplice ternário evoluído em nove mundos, e formando, com Héstia, a Ciência
divina, guardiã do Fogo primordial: a Década sagrada.
TERCEIRO
GRAU – PERFEIÇÃO(6)
Cosmogonia e
psicologia. – A evolução da alma.
(6). Em grego: Teleiótés.
O discípulo recebera do mestre os princípios da ciência. Esta primeira
iniciação havia derrubado as escamas espessas da matéria que encobriam os olhos
de seu espírito. Descerrando o véu brilhante da mitologia, ela o arrancara ao
mundo visível para lançá-lo loucamente nos espaços sem limites e mergulhá-lo no
sol da Inteligência, de onde a
Verdade se irradia sobre os três mundos.
Mas a ciência dos números era apenas o preâmbulo da grande iniciação.
Armado desses princípios, o discípulo iria agora descer das alturas do Absoluto
para as profundezas da natureza, para lá colher o pensamento divino na formação
das coisas e na evolução da alma através dos mundos. A cosmogonia e a
psicologia esotéricas atingiam os maiores mistérios da vida, segredos perigosos
e cuidadosamente guardados, das ciências e das artes ocultas. Por isso
Pitágoras gostava de dar essas lições longe da luz profana, à noite, na praia,
nos terraços do templo de Ceres, ao murmúrio leve do mar jônico, de uma
cadência melodiosa, sob as distantes fosforescências do Cosmo estrelado; ou então,
nas criptas do santuário, onde candeias egípcias de nafta espalhavam uma
claridade uniforme e suave. As mulheres iniciadas assistiam a estas reuniões noturnas. Algumas vezes,
sacerdotes ou sacerdotisas, procedentes de Delfos ou de Elêusis, vinham
confirmar os ensinamentos do mestre pela narrativa de suas experiências ou pela palavra lúcida do sono clarividente.
A evolução material e espiritual do mundo são dois movimentos inversos,
mas paralelos e concordantes em toda a escalada do ser. Um não se explica sem o
outro, e, vistos em conjunto, explicam o mundo. A evolução material representa a manifestação
de Deus na matéria pela alma do mundo que a elabora. A evolução espiritual
representa a elaboração da consciência das mônadas individuais e suas
tentativas de
se reunirem, através do ciclo das vidas, ao espírito divino do qual emanam. Ver o Universo
do ponto de vista físico ou do ponto de vista espiritual não é considerar dois
objetos diferentes; é considerar o mundo pelos dois pólos opostos. Do ponto de
vista terrestre, a explicação racional do mundo deve começar pela evolução
material, uma vez que é sob este ângulo que ele nos aparece; mas, fazendo-nos
ver o trabalho do Espírito universal na matéria e acompanhar o desenvolvimento
das mônadas individuais, esta explicação conduz insensivelmente ao ponto de
vista espiritual e nos faz passar do lado de fora para o lado de dentro das
coisas, do avesso para o direito do mundo.
Assim, pelo menos, procedia Pitágoras, que considerava o Universo
um ser vivo, animado por uma grande alma e penetrado por uma grande
inteligência. A segunda parte de seu ensino começava, portanto, pela cosmogonia.
De acordo com as divisões do céu que constam dos fragmentos esotéricos
dos pitagóricos, sua astronomia seria semelhante à astronomia de Ptolomeu: a
Terra imóvel e o Sol girando ao redor, com os planetas e o céu todo. Mas o
princípio mesmo desta astronomia nos adverte de que ela é puramente simbólica.
No centro de seu Universo, Pitágoras coloca o Fogo (do qual o Sol é apenas um
reflexo). Ora, em todo o esoterismo do Oriente o Fogo é o sinal representativo do Espírito, da Consciência
divina, universal. O que nossos filósofos consideram geralmente como a Física
de Pitágoras e de Platão não vai além de uma descrição metafórica de sua filosofia secreta, luminosa para
os iniciados mas completamente impenetrável ao vulgo, fazendo-a passar,
portanto, por uma simples física. Porém, devemos procurar nela uma espécie de cosmografia da vida
das almas, e não outra coisa. A região sublunar designa a esfera onde se
exerce a atração terrestre e é chamada o círculo das gerações. Os iniciados
entendiam que a Terra é para nós a região da vida corporal. Nela se dão todas as
operações que acompanham a encarnação e a desencarnação das almas. A esfera dos seis
planetas e do Sol corresponde às categorias ascendentes de espíritos. O Olimpo,
concebido como uma esfera rolante, é chamado o céu dos inalteráveis, por ser
assimilado à esfera das almas perfeitas.
Essa astronomia infantil encobre, portanto, uma concepção do
Universo
espiritual.
Todavia, tudo nos leva a crer que os antigos iniciados, e particularmente
Pitágoras, tinham do Universo físico noções muito mais exatas. Aristóteles diz
positivamente que os Pitagóricos acreditavam no movimento da Terra ao redor do
Sol. Copérnico afirma que a idéia da rotação da Terra em tomo de seu eixo veio-lhe
lendo, em Cícero, que um certo Hicetas, de Siracusa, mencionara o movimento
diurno da Terra. A seus discípulos do terceiro grau, Pitágoras ensinava o
duplo movimento da Terra. Sem dispor das medidas exatas da ciência moderna, ele sabia,
como os sacerdotes de Mênfis que os planetas resultantes do Sol giram em torno
dele; que as estrelas são outros sistemas solares governados pelas mesmas leis
que o nosso e cada um dos quais tem seu lugar no imenso Universo. Sabia também
que cada mundo solar forma um pequeno universo que tem sua correspondência no
mundo espiritual e seu céu próprio. Os planetas serviam para marcar essa
escala. Porém estas noções, que teriam subvertido a mitologia popular e que a
multidão teria tachado de sacrílegas, jamais eram abordadas na escritura
vulgar. Ensinavam-nas somente sob o mais profundo segredo (7).
(7). Certas definições
estranhas, sob forma de metáfora, que nos foram transmitidas que provêm do
ensinamento secreto do mestre, deixam entrever, em seu sentido oculto, a
concepção grandiosa que Pitágoras tinha do Cosmo.
Falando das
constelações, ele chamava a grande e a pequena Ursa de: as mãos de Réa-Cibele.
Ora, Réa-Cibele significa esotericamente a luz astral que rola, a divina esposa
do fogo universal ou do Espírito criador que, concentrando-se nos sistemas
solares, atrai as essências imateriais dos seres, apodera-se delas e faz com
que entrem no turbilhão das vidas. – Ele chamava também os planetas de os cães
de Proserpina. Esta expressão singular só tem sentido esotericamente.
Proserpina, a deusa das almas, presidia sua encarnação na matéria. Pitágoras
chamava os planetas de cães de Proserpina porque eles guardam as almas
encarnadas como o Cérbero mitológico guarda as almas no inferno.
O Universo visível, dizia Pitágoras, o céu com todas as suas estrelas,
é só unia forma passageira da alma do mundo, da grande Maia, que concentra a
matéria esparsa nos espaços infinitos, depois a dissolve e espalha como fluido
cósmico imponderável. Cada turbilhão solar possui uma parcela dessa alma
universal, que evolui em seu seio durante milhões de séculos, com força de
impulsão e medida especiais.
Quanto às potências, aos reinos, aos espaços e às almas vivas que aparecerão
sucessivamente nos astros desse pequeno mundo, elas vêm de Deus, descendem do
Pai.
Isto é, como de uma evolução material anterior de um sistema solar extinto.
Dessas potências invisíveis, algumas, absolutamente imortais, dirigem a
formação deste mundo; outras aguardam sua eclosão no sono cósmico ou no sonho
divino, para
entrarem nas gerações visíveis, segundo sua posição e segundo a
lei eterna. Entretanto, a alma solar e seu fogo central, que move diretamente a
grande Mônada manipulam a matéria em fusão. Os planetas são filhos do Sol. Cada um deles,
elaborado pelas forças de atração e de rotação inerentes à matéria, está dotado
de uma alma semiconsciente nascida da alma solar e tem seu caráter distinto, sua função particular
na evolução. Como cada planeta é uma expressão diversa do pensamento de Deus,
como exerce uma função especial na cadeia planetária, os antigos sábios
identificaram os nomes dos planetas com os dos grandes deuses, que representam
as faculdades divinas em ação no Universo.
Os quatro elementos, de que são formados os astros e todos os seres,
designam quatro estados graduados da matéria. O primeiro, sendo mais denso e mais
pesado, é o mais refratário ao espírito; o último, sendo o mais refinado,
apresenta com ele grande afinidade. A Terra representa o estado sólido; a água, o estado líquido; o ar,
o estado gasoso; o fogo, o estado imponderável. O quinto elemento, o elemento etérico, representa um estado tão sutil e
vivaz da matéria que não é mais atômico, e é dotado de penetração universal. É
o fluido cósmico originário, a luz astral ou a alma do mundo.
Pitágoras falava também a seus discípulos do Egito e da Ásia.
Sabia que a Terra em fusão era primitivamente cercada por uma atmosfera
gasosa, que, liquefeita por seu resfriamento sucessivo, tinha formado os mares.
Conforme seu hábito, ele resumia metaforicamente esta idéia, dizendo que os mares
eram produzidos pelas lágrimas de Saturno (o tempo cósmico).
Mas eis os reinos aparecendo, os germes invisíveis flutuando na aura
etérea da terra, turbilhonando em seu invólucro gasoso, e depois sendo atraídos
para o seio profundo dos mares e sobre os primeiros continentes que emergiram.
Os mundos vegetal e animal, ainda confundidos, apareceram quase ao mesmo tempo.
A doutrina esotérica admite a transformação das espécies animais, não somente
segundo a lei secundária da seleção, mas ainda segundo a lei primária da
percussão da Terra pelas potências celestes, e de todos os seres vivos pelos
princípios inteligíveis e pelas forças invisíveis. Quando uma espécie nova
aparece no globo, é que uma raça de almas de um tipo superior se encarna em dada
época nos descendentes da espécie antiga, para fazê-la subir um degrau,
remoldando-a e transformando-a à sua imagem. É assim que a doutrina esotérica
explica o aparecimento do homem na Terra.
Do ponto de vista da evolução terrestre, o homem é a última ramificação
e o coroamento de todas as espécies anteriores. Porém este ponto de vista não é
suficiente para explicar sua entrada em cena, como
não seria suficiente para explicar o aparecimento da primeira
alga ou do
primeiro crustáceo no fundo dos mares. Todas essas criações
sucessivas supõem, como cada nascimento, a percussão da Terra pelos poderes invisíveis
que criam a vida. A criação do homem supõe o reino anterior de uma humanidade
celeste, que preside à eclosão da humanidade terrestre e envia-lhe, como ondas
de uma maré formidável, novas torrentes de almas que se encarnam em seus
flancos e fazem brilhar os primeiros raios de uma luz divina naquele ser
saturado de animalidade, forçado para viver, a lutar com todas as potências da
natureza.
Pitágoras, formado pelos templos do Egito, tinha noções precisas
sobre as grandes revoluções do globo. A doutrina indiana e egípcia conhecia a
existência do antigo continente austral que produzira a raça vermelha e uma
poderosa civilização, chamada Atlântida pelos gregos.
Atribuía a emergência e a imersão alternada dos continentes à
oscilação dos pólos, e admitia que a humanidade tenha atravessado assim seis dilúvios.
Cada ciclo interdiluviano resulta na predominância de uma grande raça humana.
No meio dos eclipses parciais da civilização e das faculdades humanas, existe
um movimento geral ascendente.
Eis, pois, a humanidade constituída e as raças que seguem sua evolução
através dos cataclismos do globo. E sobre este globo que acreditamos ser a base
imutável do mundo e que flutua por si mesmo levado no espaço, sobre estes
continentes que emergem dos mares para novamente desaparecerem no meio desses
povos que passam, dessas civilizações que se desmoronam, qual é o grande, o
pungente, o eterno mistério? É esse o grande problema interior, aquele de cada
um e de todos. E o problema da alma, que descobre em si mesma um abismo de trevas
e de luz, que se contempla com uma mistura de encantamento e de pavor e se diz: “Eu não sou deste mundo, pois ele não é suficiente
para me explicar. Não venho da Terra; vou para outro lugar. Mas para onde?” É
o mistério de Psiquê, no qual se encerram todos os outros.
A cosmogonia do mundo visível, dizia Pitágoras, nos conduziu à história
da Terra, e esta, ao mistério da alma humana. Com ele chegamos ao santuário dos
santuários, ao arcano dos arcanos. Uma vez despertada sua consciência, a alma
se transforma por si mesma no mais extraordinário dos espetáculos. Mas esta
consciência é apenas a superfície iluminada de seu ser, onde ela pressente
abismos obscuros e insondáveis. Em sua profundidade desconhecida, a divina
Psiquê contempla, com olhar fascinado, todas as vidas e todos os mundos: passado,
presente e futuro que a eternidade reúne. “Conhece-te
a ti mesmo e conhecerás o Universo dos Deuses.” Eis o segredo dos
sábios iniciados. Mas, para penetrar por esta porta estreita da imensidão do Universo
invisível, despertemos em nós a vida reta da alma purificada e armemo-nos do
facho da inteligência da ciência dos princípios e dos Números sagrados.
Pitágoras passava assim da cosmogonia física à cosmogonia espiritual.
Após a evolução da Terra, ele narrava a evolução da alma através dos mundos. Fora da iniciação,
esta doutrina é conhecida sob o nome de transmigração das almas. Sobre nenhuma
outra parte da doutrina oculta se têm dito maiores disparates do que sobre
aquela, de tal forma que a literatura antiga e moderna só a conhecem por meio
de deturpações pueris. O próprio Platão que, de todos os filósofos, mais contribuiu
para popularizá-la, dela nos deu apenas interpretações fantasiosas e às vezes
extravagantes, talvez pelo fato de sua prudência ou de seus juramentos terem-no
impedido dizer tudo o que sabia.
Poucas pessoas imaginam hoje que esta doutrina possa ter tido
para os
iniciados um aspecto científico, ou possa ter aberto
perspectivas infinitas e dado à alma consolações divinas. A doutrina da vida ascensional
da alma através da série das existências é o traço comum das tradições
esotéricas e o coroamento da teosofia. Acrescento que ela tem para nós uma importância capital.
Atualmente, o homem rejeita com igual desprezo a imortalidade abstrata e vaga
da filosofia e o céu infantil da religião primária. No entanto, a sequidão e a
nulidade do materialismo lhe causam horror. Ele aspira inconscientemente à consciência
de uma imortalidade orgânica, que corresponda ao mesmo tempo às exigências de
sua razão e às necessidades indestrutíveis de sua alma. Compreende-se, de
resto, porque os iniciados das religiões antigas, mesmo tendo completo conhecimento
destas verdades, mantiveram-nas tão secretas. Pois elas são de natureza a
provocar vertigem nos espíritos não cultivados. Ligam-se estreitamente aos profundos
mistérios da geração espiritual, dos sexos e da geração da carne, de que
dependem os destinos da humanidade futura.
Portanto, esperava-se com uma espécie de frêmito aquele momento
decisivo do ensinamento esotérico. Pela palavra de Pitágoras, como por um lento
encantamento, a matéria espessa parecia perder seu peso, as coisas da Terra tornavam-se
transparentes, as do céu, visíveis ao espírito. Esferas azuis e douradas, sulcadas de
essências luminosas, desenrolavam seus orbes até o infinito.
Nessa hora os discípulos, homens e mulheres, agrupavam-se em torno
do mestre, em uma parte subterrânea do templo de Ceres chamada cripta de
Proserpina, e escutavam com uma emoção palpitante a história celeste de Psiquê.
O que é a alma humana? Uma parcela da grande alma do mundo, uma
centelha do espírito divino, uma Mônada imortal. Mas, se seu possível futuro
abre-se nos esplendores insondáveis da consciência divina, sua misteriosa
eclosão remonta às origens da matéria organizada. Para tornar-se o que é na
humanidade atual, foi preciso que ela atravessasse todos os reinos da natureza,
toda a escala dos seres, desenvolvendo-se gradualmente por uma série de
inumeráveis existências. O espírito que fermenta os mundos e condensa a matéria
cósmica em massas enormes manifesta-se com intensidades diversas e uma
concentração sempre maior nos reinos sucessivos da natureza.
Força cega e indistinta no mineral, individualizada na planta,
polarizada na sensibilidade e no instinto dos animais, ela tende para a Mônada consciente
nessa lenta elaboração. E a Mônada elementar é visível no mais inferior dos
animais. O elemento anímico e espiritual existe, pois, em todos os reinos,
embora somente em quantidade infinitesimal nos reinos superiores. As almas que
existem em estado de germes nos reinos inferiores aí permanecem sem sair,
durante imensos períodos. E só depois de grandes revoluções cósmicas é que elas
passam para um reino superior, mudando de planeta. Tudo o que elas podem fazer durante o
período de vida num planeta é subir algumas espécies.
Onde começa a mônada? Seria o mesmo que perguntar a hora em que se formou a nebulosa,
ou um sol brilhou pela primeira vez. Seja como for, o que constitui a essência
de qualquer homem teve de evoluir durante milhões de anos, através de uma
cadeia de planetas e reinos inferiores, conservando, porém, através de todas
essas existências um princípio individual que a acompanha por toda a parte. Esta individualidade
obscura, mas indestrutível, constitui a marca divina da mônada, na qual Deus
quer manifestar-se pela consciência.
Quanto mais ascende na série dos organismos, mais a mônada desenvolve
os princípios latentes que já possui. A força polarizada torna-se sensível; a sensibilidade torna-se
instinto, e o instinto, inteligência. E à medida que se acende a chama vacilante da consciência esta
alma torna-se mais independente do corpo, mais capaz de levar uma existência
livre. A
alma fluida e não polarizada dos minerais e dos vegetais está ligada aos
elementos da Terra. A dos animais, fortemente atraída pelo fogo terrestre, ali
permanece certo tempo após deixar seu cadáver; depois volta para a superfície
do globo, para se reencarnar em sua espécie, sem jamais abandonar as baixas
camadas do ar. Estas são povoadas de elementos ou almas animais, que desempenham
sua função na vida atmosférica e uma grande influência oculta sobre o homem.
Somente a alma humana vem do céu e para lá retorna após a morte.
Mas em que época de sua longa existência cósmica a alma
elementar tornou-se humana? Qual cadinho incandescente, qual chama etérea lhe
teria possibilitado tal passagem? Essa transformação só seria possível, num período
interplanetário, pelo reencontro de almas humanas já plenamente formadas, que
desenvolveram na alma elementar seu princípio espiritual e lhe imprimiram seu
divino protótipo como uma marca de fogo em sua substância plástica.
Mas quantas viagens, quantas encarnações, quantos ciclos planetários
ainda a atravessar para que a alma humana, assim formada, se torne o homem que
conhecemos! Segundo as tradições esotéricas da Índia e do Egito, os indivíduos
que compõem a humanidade atual teriam começado sua existência humana em outros
planetas, onde a matéria é muito menos densa do que no nosso. O corpo do homem
era então quase vaporoso; suas encarnações, rápidas e fáceis. Suas faculdades
de percepção espiritual direta teriam sido muito poderosas e sutis naquela primeira
fase humana. A razão e a inteligência, ao contrário, estariam em estado
embrionário. Neste estado semicorporal, semi-espiritual, o homem via os
espíritos, tudo era esplendor e encanto para seus olhos, música para seus
ouvidos. Ele ouvia até a harmonia das esferas. Não pensava, não
refletia, quase não queria. Deixava-se viver, bebendo os sons, as formas e a
luz, flutuando, como em um sonho, da vida para a morte e da morte para a vida. Eis os que os órficos
chamavam o céu de
Saturno. Foi só
encarnando-se em planetas cada vez mais densos, segundo a doutrina de Hermes,
que o homem se materializou.
Encarnando-se em uma matéria mais espessa, a humanidade perdeu
seu sentido espiritual. Mas, mediante luta cada vez mais forte com o mundo exterior,
ela desenvolveu poderosamente a razão, a inteligência e a vontade. A Terra é o último degrau dessa descida na matéria, que Moisés chama de
saída do paraíso, e Orfeu, de queda do círculo sublunar. Daí o homem pode
voltar a subir penosamente os círculos em uma série de existências novas e
recuperar seus sentidos espirituais, por meio do livre exercício do intelecto e
da vontade. Somente então, dizem os discípulos de Hermes e de Orfeu, o homem
adquire, por sua ação, a consciência e a posse do divino. Somente então ele se
torna filho de Deus. E aqueles que, na Terra, tiveram este nome precisaram,
antes de aparecerem entre nós, de descer e tornar a subir a terrível espiral.
O que é, pois, a humilde Psiquê, em sua origem? Um sopro que passa,
um germe que flutua, um pássaro levado pelos ventos, que emigra de existência
em existência. Entretanto, de naufrágio em naufrágio, através de milhões de
anos, ela tornou-se a filha de Deus e não reconhece outra pátria além do céu! Eis por que a poesia
grega, de um simbolismo tão profundo e tão luminoso, comparou a alma
ao inseto alado: ora verme da terra, ora borboleta celeste. Quantas vezes tem
ela sido crisálida e quantas vezes, borboleta? Jamais o saberá, mas sente que
possui asas!
Tal é o vertiginoso passado da alma humana. Ele nos explica sua condição
presente e nos permite entrever seu futuro.
Qual é a situação da divina Psiquê na vida terrestre? A menor reflexão
mostra que seria impossível imaginar algo mais estranho e mais trágico. Desde
que, penosamente, despertou na atmosfera espessa da Terra, a alma sentiu-se
enlaçada nas sinuosidades do corpo. Não vive, não respira, não pensa, senão
através dele. Entretanto, o corpo não é a alma. À medida que se desenvolve, ela
sente crescer em si mesma uma luz vacilante, algo invisível e imaterial que ela
chama seu espírito, sua consciência. Sim, o homem possui o sentimento inato de
sua tríplice natureza, pois que ele distingue, em sua própria linguagem
instintiva, corpo e alma; a alma e o espírito. Porém a alma cativa e
atormentada se
debate entre seus dois companheiros, como no amplexo de uma serpente
de mil anéis e um gênio invisível que a chama, mas cuja presença só se faz
sentir pelas batidas de asas e por clarões fugidios.
Ora, este corpo a absorve a tal ponto que ela só vive através de
suas sensações e paixões. Ela rola com ele nas orgias sangrentas da cólera ou na
grosseira embriaguez das volúpias carnais, até que ela mesma se espante consigo
pelo silêncio profundo do companheiro invisível.
Atraída por este, a alma se perde em tal elevação de pensamento
que esquece a existência do corpo, até que ele lhe recorde sua presença
mediante um apelo tirânico. E, no entanto, uma voz interior lhe diz que entre
ela e o hóspede invisível o liame é indissolúvel, enquanto a morte romperá sua
ligação com o corpo. E, sacudida entre os dois em sua luta eterna, a alma busca
inutilmente a felicidade e a verdade. Inutilmente ela busca a si mesma nas
sensações que passam, nos pensamentos que lhe escapam, no mundo que se modifica
como uma miragem. Não encontrando nada que dure, atormentada, arrastada como
uma folha ao vento, ela duvida de si mesma e de um mundo divino que apenas se revela
por sua dor e sua incapacidade para atingi-lo.
A
ignorância humana está escrita nas contradições dos pretensos sábios, e a
tristeza humana, na sede insondável do olhar humano.
Enfim, qualquer que seja a extensão de seus conhecimentos, o nascimento
e a morte encerram o homem entre dois limites fatais. São duas portas de
trevas, além das quais ele nada vê. A chama de sua vida se acende ao entrar por
uma, e se extingue ao sair por outra. Dar-se-ia o mesmo com a alma? Se não, o
que lhe acontecerá?
A resposta que os filósofos já deram a esse problema pungente tem
sido muito diversa. A dos teosofistas iniciados de todos os tempos é essencialmente a
mesma. Está de acordo com o sentimento universal e com o espírito íntimo das
religiões, que exprimiram a verdade apenas em forma de símbolos ou
superstições. A doutrina esotérica abre perspectivas bem mais vastas e suas
afirmações relacionam-se com as leis da evolução universal.
Eis o que os iniciados, instruídos pela tradição e por inúmeras experiências
da vida psíquica, têm dito ao homem: o que se agita em ti, o que chamas tua
alma, é um duplo etéreo do corpo, que encerra em si mesmo um espírito imortal.
O espírito constrói e tece para si, por sua própria atividade, seu corpo
espiritual. Pitágoras denomina-o o carro sutil da alma, porque ele está
destinado a transportá-lo da terra após a morte. Este corpo espiritual é o órgão do
espírito, seu invólucro sensitivo, seu instrumento volitivo, e serve para
animar o corpo, que sem ele permaneceria inerte. Nas aparições dos moribundos
ou mortos, esse duplo torna-se visível. Mas isto supõe sempre, no vidente, um estado
nervoso especial. A sutileza, a potência, a perfeição do corpo espiritual
variam segundo a qualidade do espírito que ele encerra. E existe entre as
substâncias das almas, tecidas na luz astral mas impregnadas dos fluidos
imponderáveis da terra e do céu, nuances mais
numerosas, diferenças maiores do que entre todos os corpos
terrestres e
todos os estados da matéria ponderável. Esse corpo astral,
embora muito mais sutil e mais perfeito que o corpo terrestre, não é imortal.
como a Mônada que ele contém. Muda, apura-se, de acordo com os meios que atravessa.
O espírito molda-o, transforma-o perpetuamente à sua imagem, mas jamais o
abandona. Se dele se despoja pouco a pouco, é para se revestir de substâncias
mais etéreas.
Isto ensinava Pitágoras, que não concebia a entidade espiritual abstrata,
a mônada sem forma. O espírito em ato, tanto no fundo dos céus como na terra,
deve ter um órgão. Esse órgão é a alma viva, bestial
ou sublime, obscura ou radiosa, mas com a forma humana, a imagem
de Deus.
O que acontece quando sobrevém a morte? No limiar da agonia, a alma
geralmente pressente sua separação do corpo. Revê toda sua existência terrestre
em quadros resumidos, em rápida sucessão e com assustadora nitidez. Mas quando
a vida se esgota e cessa no cérebro, ela se perturba e perde totalmente a
consciência. Se é uma alma santa e pura, seus sentidos espirituais já estão
despertados pelo desligamento gradual da matéria. Antes de morrer, de alguma
maneira, talvez pela introspecção de seu próprio estado, ela já teve o pressentimento
da presença de outro mundo. Perante as solicitações silenciosas, os apelos longínquos,
os vagos raios do Invisível, a terra já Perdeu sua consistência. E quando a alma
escapa, enfim, do cadáver frio, feliz por sua libertação, sente arrebatar-se em
meio a uma intensa luz, para a família espiritual à qual pertence.
Mas o mesmo não acontece com o homem comum, cuja vida se dividiu
entre os instintos materiais e as aspirações superiores. Ele desperta
semiconsciente, como no torpor de um pesadelo. Não tem mais braços para
apertar, nem voz para gritar, mas recorda, sofre, existe em um limbo de trevas
e de pavor. A única coisa que percebe é a presença de seu cadáver, do qual está
desligado, mas pelo qual ainda experimenta uma invencível atração, pois, é por
seu intermédio que vivia. E agora, o que é ele? Procura-se com pavor nas fibras
geladas de seu cérebro, no sangue congelado de suas veias, e não se encontra
mais. Está morto? Está vivo? Queria ver, queria agarrar-se a alguma coisa. Mas
não vê, não toca em nada. As trevas o envolvem. Ao redor dele, nele, tudo é caos.
Vê apenas uma coisa, e esta coisa o atrai e causa-lhe horror... a fosforescência
sinistra de seu próprio despojo... E o pesadelo recomeça.
Este estado pode prolongar-se por meses, anos. Sua duração depende
da força dos instintos materiais da alma. Porém, boa ou má, infernal ou
celeste, essa alma pouco a pouco tomará consciência de si mesma e de seu novo
estado. Uma vez livre do corpo, ela se evadirá nos sorvedouros da atmosfera
terrestre, cujas correntes elétricas transportam-na de um lado para outro, onde
ela começa a perceber os errantes multiformes, mais ou menos semelhantes e ela
mesma, como se fossem clarões fugazes em uma bruma espessa. Começa então uma luta
vertiginosa, enfurecida, da alma ainda entorpecida, para subir às camadas
superiores do ar, para livrar-se da atração terrestre e alcançar no céu de
nosso sistema planetário a região que lhe é própria e que somente guias amigos
podem mostrar-lhe. Mas até que possa ouvi-los e vê-los decorre um longo tempo. Esta fase da vida da
alma tem recebido nomes diversos nas religiões e nas mitologias. Moisés
denomina-a Horeb; Orfeu, Erebo; o cristianismo, Purgatório ou o vale da sombra
da morte. Os iniciados gregos identificavam-na com o cone de sombra que a terra
arrasta sempre atrás de si e que vai até a lua, denominando-a, por esta razão,
o abismo de Hécate. Nesse poço tenebroso turbilhonam, segundo os órficos e os
pitagóricos, as almas que procuram, por meio de esforços desesperados, alcançar
o círculo da lua, e que a violência dos ventos torna a lançar aos milhares para
a Terra. Homero e Virgílio comparam-nas a turbilhões de folhas, a bandos de
pássaros enlouquecidos pela tempestade.
A lua desempenhava um grade papel no esoterismo antigo. Em sua
face voltada para o céu, supunha-se que as almas purificavam seu corpo astral
antes de continuarem sua ascensão celeste. Supunha-se também que os heróis e os
gênios permaneciam algum tempo em sua face voltada para a terra, a fim de se
revestirem de um corpo apropriado ao nosso mundo antes de se reencarnarem.
Também se atribuía à Lua o poder de magnetizar a alma para a encarnação
terrestre e de desmagnetizá-la para o céu. De maneira geral, estas asserções, às
quais
os iniciados atribuíam um sentido ao mesmo tempo real e simbólico, significavam
que a alma deve passar por um estado intermediário de purificação e se
desembaraçar das impurezas da terra antes de prosseguir sua viagem.
Porém, como descrever a chegada da alma pura em seu mundo? A Terra
desapareceu como um sonho. Um sono novo, um desvanecimento delicioso envolve a
alma, como uma carícia. Ela nada mais vê a não ser o seu guia alado, que a leva
com a rapidez de um relâmpago pelas profundezas do espaço. O que dizer de seu
despertar nos vales de um astro etéreo, sem a elementar atmosfera, onde tudo,
montanhas, flores, vegetação, se constitui de uma natureza deliciosa, sensível
e eloquente? O que dizer, sobretudo, das formas luminosas, homens e mulheres,
que a cercam como uma procissão sagrada,
para iniciá-la no santo mistério de sua nova vida? São deuses ou deusas? Não, são almas como
ela mesma.
E a maravilha está em que o pensamento íntimo delas
desabrocha-lhes na face; que a ternura, o amor, o desejo ou o temor brilham
através daqueles corpos diáfanos numa gama de colorações luminosas. Ali, corpos
e faces não são mais as máscaras da alma, mas a alma transparente aparece em
sua forma verdadeira e brilha no dia claro de sua verdade pura. Psiquê
reencontrou sua pátria divina; pois a luz secreta onde ela se banha, que dela
emana e que volta para ela no sorriso dos bem-amados e das bem-amadas, aquela
luz de felicidade é a
alma do mundo... ela sente ali a presença de Deus! Agora não
haverá mais obstáculos. Ela amará, saberá, viverá, sem qualquer outro limite que
não seja seu próprio impulso. Que felicidade estranha e maravilhosa! Sente-se
unida a todas as suas companheiras por afinidades profundas. Porque na vida do
além aqueles que não se amam
se evitam e só aqueles que se compreendem se procuram. Ela celebrará com
as outras os divinos mistérios em templos mais belos, numa comunhão mais
perfeita. Surgirão poemas vivos sempre renovados, onde cada alma será uma
estrofe e onde cada uma reviverá sua existência na das outras. Depois,
fremente, ela se lançará para a luz do alto, atendendo ao apelo dos Enviados,
dos Gênios alados, daqueles que
se chamam Deuses porque escaparam do círculo das gerações.
Conduzida por estas inteligências sublimes, ela se esforçará
para soletrar o grande poema do Verbo oculto, para compreender o que puder apreender
da sinfonia do universo. Receberá os ensinamentos hierárquicos dos círculos do Amor divino; procurará ver
as Essências que derramam nos mundos os Gênios animadores; contemplará os espíritos
glorificados, raios vivos do Deus dos Deuses, e não poderá suportar seu
esplendor ofuscante, que faz empalidecer os sóis como se fossem lâmpadas
enfumaçadas! E quando, espantada, ela voltar dessas viagens resplandecentes – pois estremece diante
daquelas imensidões –,
ouvirá ao longe o apelo das vozes amadas e recairá nas plagas
douradas
de seu astro, sob o véu róseo de um sono embalador, pleno de formas brancas,
de perfumes e melodia.
Assim é a vida celeste da alma que nosso espírito adensado pela Terra
mal consegue imaginar, mas que os iniciados adivinham, os videntes vêem e a lei
das analogias e das concordâncias universais demonstra. Nossas imagens
grosseiras, nossa linguagem imperfeita tentam em vão traduzi-la, mas cada alma
viva sente-lhe o germe em suas profundezas ocultas. Se, no estado atual, nos é
impossível realizá-la, a filosofia do oculto formula suas condições psíquicas. A idéia de astros
etéreos, invisíveis para nós, mas constitutivos de nosso sistema solar e que
servem de morada às almas felizes, encontra-se frequentemente nos arcanos da
tradição esotérica. Pitágoras denomina-a uma contrapartida da Terra: a antichtone iluminada pelo Fogo central, isto é, pela
luz divina. No final do Fédon, Platão descreve
longamente, embora de forma disfarçada, essa terra espiritual. Diz que ela é
leve como o ar e cercada por uma atmosfera etérea.
Na outra vida, a alma conserva, portanto, toda sua individualidade.
De sua existência terrestre, ela só guarda lembranças nobres e deixa as outras
caírem no esquecimento que os poetas chamaram as ondas do Lethê. Liberta de suas
nódoas a alma humana sente sua consciência retornar. De fora do Universo ela
voltou para seu interior. Cibele-Maia, a alma do mundo, retomou-a em seu seio
com uma aspiração profunda. Ali Psiquê realizará seu sonho, aquele sonho interrompido
a todo o instante e recomeçado sem cessar na Terra. Ela o realizará na
medida de seu esforço terrestre e de sua luz conquistada, mas amplia-lo-á ao
cêntuplo. As esperanças esmagadas reflorescerão na aurora de sua vida
divina. Os sombrios poentes da Terra se abrasarão em radiosos clarões. Sim, que
o homem só tenha vivido uma hora de entusiasmo ou de abnegação, esta única nota
pura, arrancada à gama dissonante de sua vida terrestre, se repetirá em seu
além em progressões maravilhosas, em harmonias eolianas. As felicidades
fugidias que obtemos dos encantamentos da música, dos êxtases do amor ou dos transportes
da caridade são apenas as notas debulhadas de uma sinfonia que ouviremos então.
Será que esta vida é apenas um longo sonho, uma grandiosa alucinação? Porém o
que há de mais verdadeiro do que aquilo
que a alma sente em si mesma e que ela realiza mediante sua
comunhão divina com outras almas? Os iniciados, que são
idealistas consequentes e transcendentes, sempre pensaram que as únicas coisas
reais e duráveis da Terra são as manifestações da Beleza, do Amor e da Verdade espirituais.
Como
o Além não pode ter outro objeto que não seja essa Verdade, essa Beleza e esse
Amor, para aqueles que deles fizeram o objeto de sua vida, eles estão
persuadidos de que o céu será mais verdadeiro do que a Terra.
A vida celeste da alma pode durar centenas ou milhares de anos, de
acordo com sua posição e sua força impulsora. Mas cabe apenas às mais
perfeitas, às mais sublimes, àquelas que atravessaram o círculo das gerações,
prolongá-la indefinidamente. Estas não somente atingiram o repouso temporário, mas a ação imortal
na verdade.
Criaram
suas próprias asas. São invioláveis, porque são a luz.
Governam os mundos, porque veem através deles. Quanto às outras,
são levadas, por uma lei inflexível, a se reencarnarem para se submeterem a uma
nova prova elevando-se a um escalão superior ou caindo mais baixo ainda, se falharem.
Como a vida terrestre, a vida espiritual tem seu começo, seu apogeu
e sua decadência. Quando esta vida se esgota, a alma sente-se dominada por
lentidão, vertigem e melancolia. Uma força invencível a atrai de novo para as
lutas e os sofrimentos da Terra. Esse desejo é um misto de apreensões terríveis
e de imensa dor por deixar a vida divina.
Mas chegou a hora. A lei deve ser cumprida. O peso aumenta, a escuridão
a invade e só vê suas companheiras luminosas através de um véu, que cada vez
mais espesso a faz pressentir a separação iminente.
Ouve seus tristes adeuses. As lágrimas das bem-aventuranças que ama
penetram-na como um orvalho celeste que deixará em seu coração a sede ardente
de uma felicidade desconhecida. Então, com juramentos solenes, ela promete
recordar. . . recordar a luz no mundo das trevas, a verdade no mundo da
mentira, o amor no mundo do ódio. A volta, a coroa imortal, só existe a este preço!
Ela desperta numa atmosfera espessa. Astro etéreo, almas diáfanas,
oceanos de luz, tudo desapareceu. Ei-la de volta à Terra, no abismo do
nascimento e da morte. Entretanto ela ainda não perdeu a lembrança celeste, e o
guia alado, ainda visível a seus olhos, mostra-lhe a mulher que será sua mãe.
Esta traz dentro de si o germe de uma criança. E este germe só viverá se um
espírito vier animá-lo. Então, durante nove meses, realiza-se o mistério mais
impenetrável da vida terrestre: a encarnação e a maternidade.
A fusão misteriosa opera-se lentamente, sabiamente, órgão por órgão,
fibra por fibra. À medida que a alma mergulha nesse antro quente embebido de
vapor e pululante, à medida que se sente presa nos meandros das vísceras de mil
pregas, a consciência de sua vida divina apaga-se e extingue-se; pois entre ela
e a luz do alto interpõem-se as ondas do sangue, os tecidos da carne que a
estreitam e envolvem em trevas. Aquela luz longínqua já não é mais do que um
clarão agonizante.
Afinal, uma dor horrível comprime-a, aperta-a num torno. Uma convulsão
sangrenta arranca-a à alma materna e fixa-a num corpo palpitante. A criança nasceu,
miserável efígie terrestre, e grita de pavor.
Mas a lembrança celeste penetrou nas profundezas ocultas do
Inconsciente, e só reviverá pela Ciência ou pela Dor, pelo Amor ou pela Morte!
A lei da encarnação e da desencarnação revela-nos pois o verdadeiro
sentido da vida e da morte. Constitui o núcleo essencial na evolução da alma, e
nos permite acompanhá-la para trás e para frente, até o mais profundo da
natureza e da divindade; pois essa lei nos revela o ritmo e a medida, a razão e
o fim de sua imortalidade. Abstrata ou fantástica, ela torna-a viva e lógica,
mostrando as correspondências da vida e da morte. O
nascimento terrestre é uma morte do ponto de vista espiritual; a morte, uma
ressurreição celeste. A alternância das duas vidas é necessária ao desenvolvimento da
alma, e cada uma das duas é ao mesmo tempo a consequência e a explicação da
outra. Todo aquele que se penetrou dessas verdades encontra-se no coração dos
mistérios, no centro da iniciação.
Entretanto, perguntarão, o que nos prova a continuidade da alma,
da mônada, da entidade espiritual através de todas essas existências, uma vez
que delas ela perde sucessivamente a memória?
E o que vos prova, responderemos, a identidade da vossa personalidade,
durante a vigília e durante o sono? Despertais cada manhã de um estado tão
estranho, tão inexplicável como a morte. Ressuscitais desse nada para recair
nele à noite. Era o nada? Não. Pois sonhastes, e vossos sonhos foram para vós
tão reais quanto a realidade da vigília. Uma alteração das condições
fisiológicas do cérebro modificou as relações entre a alma e o corpo e deslocou
vosso ponto de vista psíquico. Permanecestes o mesmo indivíduo, mas estivestes
em outro meio e vivestes outra existência. Nos magnetizados, nos sonâmbulos e
nos clarividentes, o sono desenvolve faculdades novas que nos parecem
miraculosas, mas que são as faculdades naturais da alma desligada do corpo. Uma
vez despertos, esses clarividentes não se lembram mais do que viram, do que
disseram ou fizeram durante o sono lúcido. Mas em outro de seus sonos
recordam-se perfeitamente do que aconteceu no sono anterior, e predizem às
vezes com exatidão matemática o que acontecerá no próximo. Parecem ter duas consciências,
duas vidas alternadas inteiramente distintas, cada uma com sua continuidade
racional, envolvendo uma mesma individualidade como cordões de cores diversas
em torno de um fio invisível.
Foi pois num sentido bastante profundo que os antigos poetas iniciados
denominaram o sono o irmão da morte. Um véu de esquecimento separa o sono da vigília, como o
nascimento da morte. E assim como nossa existência terrestre divide-se em duas
partes sempre alternadas, também a alma se alterna, na imensidão de sua
evolução cósmica, entre a encarnação e a vida espiritual, entre a terra e os
céus.
Essa passagem alternativa de um plano do Universo para outro,
essa inversão dos pólos de seu ser não é menos necessária ao desenvolvimento da
alma do que a alternativa da vigília e do sono é necessária à vida corporal do
homem. Temos necessidade das ondas do Lethê ao passar de uma existência para
outra. Nesta, um véu salutar nos esconde o passado e o futuro. O esquecimento
porém não é total, e a luz atravessa o véu. As idéias inatas provam, por si
sós, uma existência anterior. Todavia há mais: nascemos com um mundo de vagas recordações,
de impulsos misteriosos, de pressentimentos divinos. Em crianças nascidas de
pais mansos e tranquilos às vezes irrompem paixões selvagens que o atavismo não
é suficiente para explicar e que vêm de uma existência precedente. Nas vidas
mais humildes muitas vezes há inexplicáveis e sublimes fidelidades a um
sentimento, a uma idéia. Não virão elas das promessas e dos juramentos da vida
celeste?
Pois a lembrança oculta que dela a alma guardou é mais forte do
que todas as razões terrestres. Conforme se prenda a esta lembrança ou a abandone,
ela vence ou sucumbe. A verdadeira fé é aquela muda fidelidade da alma a si
mesma. Compreende-se assim que Pitágoras, como
todos os teósofos, tenha considerado a vida corporal como uma elaboração
necessária da vontade, e a vida celeste como um crescimento espiritual e uma realização.
As vidas sucedem-se e não se assemelham, mas encadeiam-se com
uma lógica impiedosa. Se cada uma delas tem sua lei própria e seu destino
especial, sua sequencia é regida por uma lei geral que se poderia chamar de
repercussão das vidas (8). Segundo esta lei, as ações de uma vida
repercutem fatalmente na seguinte. Não somente o homem renascerá com os
instintos e as faculdades que desenvolveu em sua precedente encarnação, mas o
próprio gênero de sua existência será determinado em grande parte pelo bom ou
mau emprego que ele teria feito de sua liberdade na vida anterior. Não há palavra, não
há ação que não tenha eco na eternidade, diz um provérbio. Segundo a
doutrina esotérica, esse provérbio aplica-se literalmente de uma vida à outra.
(8). A lei chamada
Karma, dos brâmanes e budistas.
Para Pitágoras, as injustiças aparentes do destino, as
deformidades, as misérias, os golpes da sorte, as infelicidades de todo gênero
encontram sua explicação no fato de cada existência ser a recompensa ou o
castigo da precedente. Uma vida criminosa engendra uma vida de expiação; uma
vida imperfeita, uma vida de provas. Uma vida boa determina uma missão; uma
vida superior, uma missão criadora. A sanção moral, que se aplica com
imperfeição aparente do ponto de vista de uma única existência, aplica-se, no
entanto, com perfeição admirável e justiça minuciosa na série de existências. Nessa série pode
haver progressão rumo à espiritualidade e à inteligência, como pode haver
progressão rumo à bestialidade e à matéria. À medida que a alma progride,
adquire maior participação na escolha de suas reencarnações. A alma inferior submete-se.
A alma média escolhe entre aquelas que lhe são oferecidas.
A alma superior, que se impõe uma missão, elege-a por devotamento.
Quanto mais a alma se eleva, mais ela conserva em suas
encarnações a consciência clara, irrecusável, da vida espiritual, que reina
além de nosso horizonte terrestre, que a envolve como uma esfera de luz e envia
seus raios em nossas trevas. A tradição pretende mesmo que os iniciadores de
primeira linha, os divinos profetas da humanidade, tenham recordado suas
precedentes vidas terrestres. Segundo a lenda, Gautama Buda, Sáquia-Muni, teria encontrado em seus
êxtases o fio das suas existências passadas. E conta-se que Pitágoras dizia dever
a um favor especial dos Deuses o fato de lembrar-se de algumas de suas vidas anteriores.
Já dissemos que, na série das vidas, a alma pode retroceder ou avançar,
conforme se entregue à sua natureza inferior ou à divina. Daí uma consequência importante,
cuja verdade a consciência humana sempre sentiu com um estremecimento estranho.
Em todas
as existências há lutas a sustentar, escolhas a fazer, decisões a tomar, cujos resultados
são incalculáveis. Mas, na rota ascendente do bem, que atravessa uma série
considerável de encarnações, deve existir uma vida, um ano, um dia, uma hora
talvez, em que a alma, alcançando a plena consciência do bem e do mal, pode
elevar-se, por um derradeiro e supremo esforço, a uma altura tal que não terá
mais de descer, iniciando o caminho dos pináculos. O mesmo acontece no caminho
descendente do mal. Há um ponto do qual a alma perversa pode ainda voltar.
Contudo, uma vez transposto esse ponto, a insensibilidade é definitiva. De existência em
existência, ela rolará até o fundo das trevas e perderá sua humanidade. O homem tornar-se-á
demônio, o demônio, animal, e sua indestrutível mônada será forçada a recomeçar
a penosa, assustadora evolução através da série dos reinos ascendentes e
inumeráveis existências. Eis o verdadeiro inferno, segundo a lei da evolução. E não é ele
tão terrível e até mais lógico que o das religiões esotéricas?
A alma pode, portanto, subir ou descer na série das vidas.
Quanto à humanidade terrestre, sua marcha opera-se segundo a lei de uma progressão
ascendente, que faz parte da ordem divina. Esta verdade, que supomos ser
descoberta recente, era conhecida e ensinada nos Mistérios antigos. “Os animais são parentes do homem e o homem é parente dos deuses”, dizia
Pitágoras. Ele desenvolvia filosoficamente o que ensinavam também os símbolos
de Elêusis: o progresso dos reinos ascendentes, a aspiração do mundo vegetal ao
mundo animal, do mundo animal ao mundo humano e a sucessão, na humanidade, de
raças cada vez mais perfeitas. Esse progresso não se realiza de maneira
uniforme, mas em ciclos regulares e crescentes, contidos uns nos outros. Cada povo tem sua juventude, sua maturidade e seu declínio. Ocorre o
mesmo com raças inteiras: a raça vermelha, a raça negra e a raça branca, têm
reinado sucessivamente no globo. A raça branca, ainda em plena juventude, não atingiu sua
maturidade em nossos dias.
Em seu apogeu, ela desenvolverá, no próprio seio, uma raça
aperfeiçoada, pelo restabelecimento da iniciação e pela seleção espiritual dos
casamentos.
Assim se sucedem as raças, assim progride a humanidade. Os iniciados
antigos iam muito mais longe do que os modernos em suas previsões.
Admitiam que chegaria um momento em que a grande massa dos indivíduos que compõem a humanidade atual
passaria a um outro planeta, a fim de lá começar um novo ciclo. Na série dos
ciclos que constituem a cadeia planetária, a humanidade inteira desenvolverá os
princípios intelectuais, espirituais e transcendentes que os grandes iniciados
cultivaram em si mesmos já nesta vida, e os levará assim a uma florescência
mais geral. Não é preciso dizer que tal desenvolvimento abrange não somente
milhares, mas milhões de anos, e que provocará mudanças inimagináveis na
condição humana. Para caracterizá-las, Platão disse que nesse tempo os Deuses habitarão realmente os
templos dos homens. É lógico admitir que na cadeia planetária, isto é, nas
evoluções sucessivas de nossa humanidade em outros planetas, suas encarnações
se tornem de uma natureza cada vez mais etérea, o que as aproximará
insensivelmente do estado puramente espiritual, daquela oitava esfera que está
fora do círculo das gerações, e pela qual os antigos teósofos designavam o estado divino. É natural também
que, não tendo todos o mesmo impulso, pois muitos ficam no caminho ou caem
fora, o número dos eleitos vá diminuindo sempre nessa prodigiosa ascensão. Ela
causa vertigem a nossas inteligências limitadas pela Terra; mas as
inteligências celestes contemplam-na sem medo, como nós contemplamos uma única
vida.
A evolução das almas, assim compreendida, não estaria de acordo com a unidade do
Espírito, o princípio dos princípios; com a homogeneidade da Natureza, a lei
das leis; com a continuidade do movimento, a força das forças? Visto através do
prisma da vida espiritual, um Sistema Solar não constitui somente um mecanismo material,
mas um organismo vivo, um reino celeste, em que as almas viajam de mundo em
mundo como o próprio sopro de Deus que o anima.
Qual é pois o fim último do homem e da humanidade, segundo a doutrina
esotérica? Após tantas vidas, mortes, renascimentos, calmarias e despertares
pungentes, existirá um término para os labores de Psiquê?
Sim, dizem os iniciados, quando a alma tiver definitivamente
vencido a matéria; quando, desenvolvendo todas as suas faculdades espirituais,
ela tiver encontrado em si mesma o princípio e o fim de todas as coisas.
Então, não sendo mais necessária a encarnação, ela entrará no
estado divino, mediante sua união completa com a inteligência divina. Se mal podemos
pressentir a vida espiritual da alma após cada vida terrestre, como poderemos
imaginar esta vida perfeita que deverá resultar de toda
a série de suas existências espirituais? O céu dos céus será
para suas venturas precedentes o que o Oceano é para os rios. Para Pitágoras, a
apoteose do homem não era a imersão na inconsciência, mas a atividade criadora
na consciência suprema. A alma transformada em puro espírito não perde sua
individualidade; completa-a, pois reúne-se a seu arquétipo em Deus. Ela se
lembra de todas as existências anteriores, que lhe parecem outros tantos
degraus para atingir o degrau máximo, de onde ela abrange e penetra o universo.
Nesse estado, o homem não é mais homem, como dizia Pitágoras. É semideus;
porque reflete em todo o seu ser a luz inefável, com a qual Deus preenche toda
a imensidade.
Para ele, saber é poder; amar é
criar; ser é irradiar a verdade e a beleza. E esse término, será ele
definitivo? A Eternidade espiritual tem outras medidas além do tempo solar. Mas
tem também suas etapas, suas normas e seus ciclos. Acontece apenas que eles
ultrapassam inteiramente as concepções humanas. Porém a lei das analogias progressivas
nos reinos ascendentes da natureza permite-nos afirmar que o espírito, tendo
chegado a este estado sublime, não pode mais voltar atrás e que se os mundos
visíveis mudam e passam, o mundo invisível, que é sua razão de ser, sua fonte e
sua embocadura – e do qual participa a divina Psiquê –, é imortal.
Com essas perspectivas luminosas, Pitágoras terminava a história
da divina Psiquê. A última palavra tinha expirado nos lábios do sábio, mas o
sentido da incomunicável verdade permanecia suspenso na atmosfera imóvel da
cripta. Cada um acreditava ter acabado o sonho das vidas para despertar na
grande paz, no doce oceano da vida única e sem limites. As lâmpadas de nafta
iluminavam tranquilamente a estátua de Perséfona, em pé, como ceifadora
celeste, e faziam reviver sua história simbólica nas pinturas sagradas do
santuário. Às vezes uma sacerdotisa entrava em êxtase sob o domínio da voz
harmoniosa de Pitágoras, e parecia encarnar nas atitudes e na fisionomia
radiante a inefável beleza de sua visão. E os discípulos, tomados de
emoção religiosa, assistiam em silêncio. Mas logo o mestre, com um gesto
lento e seguro, trazia de novo para a terra a profândida inspirada. Pouco a
pouco, seus traços se descontraíam, ela tombava nos braços das companheiras e caía em profunda
letargia, da qual despertava confusa, triste e como que esgotada pelo esforço
despendido.
Então subiam todos na cripta para os jardins de Ceres, para a frescura
da aurora que começava a branquear o mar, sob o céu estrelado.
QUARTO
GRAU – EPIFANIA
O adepto. – A
mulher iniciada. – O amor e o casamento.
Acabamos de atingir, com Pitágoras, o apogeu da iniciação
antiga.
Desta altura, a Terra parece inundada de sombra como um astro agonizante.
Dali descortinam-se as perspectivas siderais, desenrola-se, como um conjunto
maravilhoso, a visão de cima, a epifania do Universo (9). Porém a
finalidade desse ensinamento não era absorver o homem na contemplação ou no
êxtase. O mestre levara seus discípulos a passear pelas regiões incomensuráveis
do Cosmo, mergulhara-os nos abismos do invisível. Da assustadora viagem, os
verdadeiros iniciados deviam voltar à terra melhores, mais fortes e mais
preparados para as provas da vida.
(9). Epifania ou visão
do alto; autópsia ou visão direta; teofania ou manifestação de Deus, são idéias
correlatas e expressões diversas para marcar o estado de perfeição no qual o
iniciado, tendo unido sua alma a Deus, contempla a verdade total.
À iniciação da inteligência devia suceder à da vontade, a mais difícil
de todas. Pois trata-se agora de o discípulo deixar a verdade descer no mais
profundo de seu ser, de pô-la em prática durante a vida.
Para atingir este ideal, era preciso, segundo Pitágoras, reunir
três perfeições: realizar a verdade na
inteligência, a virtude na alma, a pureza no corpo. Uma higiene
sábia, uma continência moderada deviam manter a pureza corporal, necessária não
como fim, mas como meio.
Todo o excesso corporal deixa um traço e uma nódoa no corpo astral, organismo
vivo da alma, e por conseguinte, no espírito. Pois o corpo astral concorre para
todos os atos do corpo material. É ele mesmo que os executa, porque sem ele o
corpo material não passa de uma massa inerte. É preciso, portanto, que o corpo
seja puro para que a alma o seja
também. É preciso, em seguida, que a alma, incessantemente iluminada pela
inteligência, adquira a coragem, a abnegação, o devotamento e a fé, em uma
palavra, a virtude, e da mesma faça
uma segunda natureza que substitua a primeira. É preciso, finalmente, que o
intelecto atinja a sabedoria pela ciência, de tal sorte que saiba distinguir em
tudo o bem e o mal, e ver Deus tanto no menor dos seres como no conjunto dos mundos.
A essa
altura, o homem torna-se adepto e, se possui energia suficiente, entra na posse
de faculdades e poderes novos. Os sentidos internos da alma se abrem, a vontade resplandece nos
outros. Seu
magnetismo corporal, penetrado dos eflúvios de sua alma astral, eletrizado por
sua vontade, adquire um poder aparentemente miraculoso. Às vezes, cura
doentes pela imposição das mãos ou somente por sua presença. Muitas vezes, penetra
nos pensamentos dos homens apenas com o olhar. Algumas vezes, em estado de
vigília, vê acontecimentos que ocorrem longe (10). Age à distância
pela concentração do pensamento e da vontade sobre as pessoas que estão ligadas
a ele por laços de simpatia pessoal, e lhes faz aparecer sua imagem à
distância, como se seu corpo astral pudesse transportar-se para fora do corpo
material. A aparição dos moribundos ou dos mortos aos amigos é exatamente o
mesmo fenômeno. Só que a aparição que o moribundo ou a alma do morto produz
geralmente, por um desejo inconsciente, na agonia ou na segunda morte, o adepto a produz em plena
saúde e em plena consciência. Todavia, ele apenas o consegue durante o sono e, quase sempre,
durante um sono letárgico.
(10). Citaremos dois
fatos célebres deste gênero, absolutamente autênticos. O primeiro passa-se na
Antigüidade e seu herói é o ilustre filósofo-mágico Apolônio de Tiana.
1º fato – Segunda visão
de Apolônio de Tiana – “Enquanto esses acontecimentos (o assassinato do
imperador Domiciano) passavam-se em Roma, Apolônio os via em Éfeso. Domiciano
foi atacado por Clemente, ao meio-dia. No mesmo dia, no mesmo momento, Apolônio
discursava nos jardins junto ao Xisto. De repente ele abaixou um pouco a voz,
como se tivesse sido tomado de um pavor súbito. Continuou o discurso, mas sua
linguagem não tinha a força de sempre, como acontece com alguém que fala
pensando em outra coisa. Depois calou-se como se tivesse perdido o fio do
discurso, olhou assustado para o chão, deu três ou quatro passos para frente e
gritou: “Abate o tirano!” Dir-se-ia que ele via não a imagem do fato em um
espelho, mas o fato em si mesmo, com toda a sua realidade. Os efesianos (Éfeso
inteira assistia ao discurso de Apolônio) ficaram muito espantados. Apolônio
deteve-se, como se procurasse ver o resultado de um acontecimento duvidoso.
Finalmente, exclamou: “Coragem, cidadãos de Éfeso, o tirano foi morto hoje. Eu
disse hoje? Por Minerva! Ele foi morto no mesmo instante em que me interrompi.”
Os habitantes de Éfeso julgaram que Apolônio tivesse perdido a razão. Desejavam
ardentemente que tivesse dito a verdade, mas temiam que algum perigo lhes
resultasse desse discurso. . . porém logo os mensageiros vieram anunciar-lhes a
boa nova e testemunhar em favor do conhecimento de Apolônio. O assassinato do
tirano, o dia e a hora em que foi perpetrado, o autor, todos estes detalhes estavam
perfeitamente de acordo com aqueles que os deuses lhes haviam mostrado no dia
de seu discurso aos efesianos.” – Vida de Apolônio por Filostrato, traduzida
por Chassang.
2º fato – Segunda visão
de Swedenborg. – O segundo fato relaciona-se com o maior vidente dos tempos
modernos. Pode-se discutir a realidade objetiva das visões de Swedenborg, mas
não se pode duvidar de sua segunda visão, atestada por inúmeros fatos. A visão
que Swedenborg teve, a trinta léguas de distância, do incêndio de Estocolmo, teve
grande repercussão na segunda metade do século XVIII. O célebre filósofo
alemão, Kant, mandou fazer uma investigação em Gothenburgo, na Suécia, cidade
onde ocorreu o fato, e eis o que ele escreveu a uma de suas amigas: “O fato que
segue parece-me ter a maior força demonstrativa e pôr fim a toda espécie de
dúvida. Foi no ano de 1759. M. de Swedenborg, lá pelo fim do mês de setembro,
num sábado, às quatro horas da tarde, voltando da Inglaterra, tomou a direção
de Gothenburgo. M. William Castel convidou-o para sua casa, com um grupo de
quinze pessoas. À tarde, às seis horas, M. de Swedenborg, que saíra, voltou ao
salão, pálido e consternado, dizendo que naquele mesmo instante tinha grassado
um incêndio em Estocolmo em Sudermaln e que o fogo se espalhava com violência
na direção de sua casa... Disse que a casa de um dos amigos, cujo nome citou,
já estava reduzida a cinzas, e que a sua própria estava em perigo. Às oito
horas, depois de uma nova saída, disse com alegria: “Graças a Deus, o incêndio
foi extinto na terceira casa antes da minha.” Nessa mesma noite, informaram
disso o governador. No domingo pela manhã, Swedenborg foi chamado por este
funcionário, que o interrogou a respeito. Swedenborg descreveu exatamente o
incêndio, o começo, a duração e o fim. No mesmo dia, a novidade se espalhou por
toda a cidade, que muito se comoveu, tanto mais porque o governador se ocupara
do assunto e muitas pessoas se preocupavam com bens e amigos. Na tarde de
segunda-feira chegou a Gothenburgo um estafeta que o comércio de Estocolmo
havia despachado durante o incêndio. Nessas cartas, o incêndio era descrito exatamente
da maneira como fora contado. O que se pode alegar contra a autenticidade deste
acontecimento? O amigo que me escreveu examinou tudo isto, não somente em Estocolmo
mas por cerca de dois meses em Gothenburgo, mesmo. Ele conhecia ali as famílias
mais importantes e pôde se informar completamente na própria cidade, na qual
vive ainda a maioria das testemunhas oculares, devido ao pouco tempo decorrido
(9 anos), desde 1859.” – Carta à senhorita Charlotte de Knobloch, citada por
Matter. Vie de Swedenborg.
Enfim, o adepto sente-se cercado e protegido por seres
invisíveis, superiores e luminosos, que lhe emprestam sua força e o ajudam em
sua missão. Raros são os adeptos, mais raros ainda aqueles que alcançam este poder.
A Grécia só conheceu três: Orfeu, na aurora do helenismo; Pitágoras, em seu
apogeu; Apolônio de Tiana, em seu declínio. Orfeu foi o grande inspirado e o grande
iniciador da religião grega; Pitágoras, o organizador da ciência esotérica e da
filosofia das escolas; Apolônio, o estóico moralizador e o mágico popular da
decadência. Mas em todos os três, apesar dos graus e através das nuances,
brilha o raio divino: o espírito apaixonado pela salvação das almas, a
indomável energia revestida de mansidão e serenidade. Todavia, não vos
aproximeis muito dessas grandes frontes calmas. Elas queimam em silêncio.
Sente-se sob a fornalha uma vontade ardente, mas sempre contida.
Pitágoras representa para nós, portanto, um adepto de primeira ordem,
com o espírito científico e a fórmula filosófica que mais se aproximam do
espírito moderno. Mas ele não podia nem pretendia fazer de seus discípulos
adeptos perfeitos. Uma grande época tem sempre um grande inspirador em sua
origem. Seus discípulos e os alunos de seus discípulos formam a cadeia imantada
e propagam seu pensamento pelo mundo. No quarto grau da iniciação, Pitágoras se contentava, pois, em ensinar
a seus fiéis as aplicações de sua doutrina à vida. Porque a Epifania,
a visão do alto, dava um conjunto de visões profundas e gerais
sobre as coisas terrestres.
A origem do bem e do mal permanece um mistério incompreensível
para quem não percebeu a origem e o fim das coisas.
Uma moral que não considera os supremos destinos do homem só
será utilitária e bastante imperfeita. Além do mais, a liberdade humana não existe
de fato para aqueles que são sempre escravos de suas paixões, e não existe de direito
para aqueles que não acreditam nem na alma nem em Deus, e para quem a vida é um
relâmpago entre dois nadas. Os primeiros vivem na servidão da alma acorrentada às paixões;
os segundos, na servidão da inteligência limitada ao mundo físico. Não acontece
o mesmo com o homem religioso, nem com o verdadeiro filósofo, e menos ainda com o
teósofo iniciado, que realiza a verdade na trindade de seu ser e na unidade de
sua vontade. Para compreender a origem do bem e do mal, o iniciado contempla
os três mundos com os olhos do espírito. Vê o mundo tenebroso da matéria e da animalidade, onde domina o
inelutável Destino. Vê o mundo luminoso do Espírito, que para nós é o mundo
invisível, a imensa hierarquia das almas libertadas, onde reina a lei divina, e
que são a Providência em ato. Entre
os dois, ele vê numa penumbra a humanidade, que mergulha, pela
base, no mundo natural e que toca, por seus pináculos, o mundo divino. Ela tem por gênio: A Liberdade. Porque, no momento em que o homem percebe
a verdade e o erro, está livre para escolher: juntar-se à Providência,
cumprindo a verdade, ou tombar sob a lei do destino, seguindo o erro. O ato da vontade
unido ao ato intelectual é somente um ponto matemático, mas desse ponto brota o
universo espiritual.
Todo espírito sente parcialmente pelo instinto o que o teósofo
compreende totalmente pelo intelecto: que o Mal é aquilo que faz descer o homem para a fatalidade da
matéria; que o Bem é aquilo que o faz subir à lei divina do Espírito. Seu
verdadeiro destino é subir sempre, cada vez mais alto e por seu próprio
esforço. Para isto, porém, é preciso que ele seja livre também para descer. O
círculo da liberdade amplia-se até o infinitamente grande, à medida que se
sobe; e diminui, até o infinitamente pequeno, à medida que se desce. Quanto
mais o homem sobe, mais se torna livre, pois penetra mais profundamente na luz,
e mais força adquire para o bem. Quanto mais desce, mais se torna escravo; pois
cada queda no mal diminui a inteligência do verdadeiro e a capacidade do bem.
O Destino reina, portanto, sobre o passado; a Liberdade, sobre o
futuro; e a Providência sobre os dois, ou seja, sobre o presente sempre existente,
que se pode denominar Eternidade (11). Da ação combinada do
Destino, da Liberdade e da Providência resultam os destinos inumeráveis,
infernos e paraísos das almas. O mal, estando em desacordo com a lei divina, não é obra de
Deus, mas do homem, e só tem uma existência relativa, aparente e transitória. O
bem, estando de acordo com a lei divina, existe só real e eternamente. Nem os sacerdotes de
Delfos e de Elêusis, nem os filósofos iniciados jamais quiseram revelar essas
profundas idéias ao povo, que poderia compreendê-las erroneamente e abusar
delas. Nos
Mistérios, representava-se simbolicamente essa doutrina pelo esfacelamento de
Dionísio. Porém um véu impenetrável ocultava aos profanos o que se chamava de
os sofrimentos de Deus.
(11). Esta idéia
ressalta logicamente do ternário humano e divino, da trindade do microcosmo e
do macrocosmo, que expusemos nos capítulos precedentes. A correlação metafísica
do Destino, da Liberdade e da Providência foi admiravelmente deduzida por Fabre
d'Olivet, em seu comentário aos Vers dorés de Pythagore.
As maiores discussões religiosas e filosóficas rolam sobre a questão
da origem do bem e do mal. Acabamos de ver que a doutrina esotérica possui-lhe a chave
em seus arcanos.
Existe outra questão capital, de que depende o problema social e
político; a da desigualdade das condições humanas. O espetáculo do mal e
da dor tem em si alguma coisa de assustador. Pode-se acrescentar que sua
distribuição, aparentemente arbitrária e injusta, é a origem de todos os ódios,
de todas as revoltas, de todas as negações.
Ainda aqui, a doutrina profunda traz em nossas trevas terrestres
sua luz soberana de paz e esperança. A diversidade das almas, das condições,
dos destinos, pode-se justificar efetivamente apenas pela pluralidade das
existências e pela doutrina da reencarnação. Se o homem nasce pela primeira vez
nesta vida, como explicar os inúmeros males que parecem cair ao acaso sobre
ele? Como admitir que há uma justiça eterna, uma vez que alguns nascem numa
condição que arrasta fatalmente à miséria e à humilhação, enquanto que outros
nascem afortunados e vivem felizes? Mas, se é verdade que vivemos outras vidas
antes e que viveremos outras após a morte, se é verdade que através de todas essas
existências reina a lei de recorrência e de repercussão – então as diferenças de alma, de
condição, de destino, apenas serão efeitos das vidas anteriores e aplicações múltiplas
dessa lei. As diferenças de condição provêm de um emprego desigual da liberdade
nas vidas precedentes, e as diferenças intelectuais provêm de que os homens que
atravessam a terra em um século pertencem a graus de evolução extremamente
diversos. Estes graus se escalonam. Desde a semi-animalidade das pobres raças
em regressão até os estados angélicos dos santos e até a realeza divina do
gênio.
Na realidade, a terra se assemelha a um navio, e nós todos que a habitamos, a
viajantes que vêm de países longínquos e se dispersam por etapas em todos os
pontos do horizonte. A doutrina da reencarnação dá uma razão
de ser, segundo a justiça e a lógica eterna, aos males mais
assustadores e às felicidades mais almejadas. O idiota nos parecerá compreensível
se
raciocinarmos que seu embrutecimento, do qual tem uma semiconsciência
e com a qual sofre, é a punição de um emprego criminoso da inteligência em
outra vida. Todas as nuances de sofrimentos físicos ou morais, de felicidade e
de infelicidade, em suas inúmeras variedades, aparecerão como eflorescências
naturais e sabiamente graduais dos instintos e das ações, das faltas e das
virtudes
de um longo passado, pois a alma conserva em suas profundezas
ocultas tudo o que ela acumula em suas diversas existências. De acordo com a hora
e a influência, as camadas antigas reaparecem e desaparecem. E o destino, isto
é, os espíritos que o dirigem, proporcionam o gênero de reencarnação, quanto a
seu lugar e sua qualidade. Lísis exprime esta verdade, ocultando-a sob um véu, em seus versos
dourados: Verás que os males que devoram os homens são o fruto de sua escolha;
e que esses infelizes procuram longe de si os bens cuja fonte carregam.
Longe de enfraquecer o sentimento de fraternidade e de solidariedade
humana, essa doutrina só pode fortificá-lo. Devemos a todos ajuda, simpatia e
caridade,
pois somos todos da mesma raça, embora em graus diversos. Todo o sofrimento é sagrado, porque a dor é o cadinho das almas. Toda a simpatia é
divina, porque ela nos faz sentir, como que por um eflúvio magnético, a cadeia
invisível que liga todos os mundos. A virtude da dor é a
razão do gênio. Sim, sábios e santos, profetas e divinos criadores resplandecem
com uma beleza mais comovente para aqueles que sabem que também eles resultam
da evolução universal. Esta força que nos espanta, quantas vidas, quantas
vitórias não foram necessárias para conquistá-la? Esta luz inata
do gênio, de quais céus já atravessados ela lhe vem? Não o sabemos. Mas estas
vidas existiram e esses céus existem. Não está, pois, enganada a consciência
dos povos. Os profetas não mentiram quando chamaram os
homens de filhos de Deus, enviados do céu profundo. Porque sua missão
foi requerida pela eterna Verdade, legiões invisíveis os protegem e o Verbo vivo fala neles!
Há entre os homens uma diversidade que provém da essência primitiva
dos indivíduos. Há uma outra, acabamos de dizê-lo, que provém do grau de
evolução espiritual que eles atingiram. De acordo com este último ponto de
vista, os homens podem situar-se em quatro classes, que compreendem todas as
subdivisões e todas as nuances.
1º. Na grande maioria dos homens, a vontade age sobretudo no corpo.
Podemos chamá-los de instintivos. São próprios não somente para os trabalhos
corporais, mas ainda para o exercício e o desenvolvimento de sua inteligência
no mundo físico; consequentemente, para o comércio e a indústria;
2º. No segundo grau do desenvolvimento humano, a vontade e portanto
a consciência, reside na alma, ou seja, na sensibilidade acionada pela
inteligência, que constitui o entendimento. São os anímicos e os passionais.
Segundo seu temperamento, estão preparados para se tornarem homens de guerra,
artistas ou poetas. Na grande maioria, os homens de letras e os sábios são
desta espécie: vivem nas idéias relativas, modificadas pelas paixões ou
limitadas por um horizonte pequeno, sem se elevarem até à Idéia pura e à
Universalidade;
3º Numa terceira classe de homens, muito mais raros, a vontade age
soberanamente no intelecto puro; desembaraça a inteligência da tirania das
paixões e dos limites da matéria, o que dá a todas as suas concepções um
caráter de universalidade. São os intelectuais. Esses homens constituem os
heróis mártires da pátria, os poetas de primeira ordem; finalmente, e
sobretudo, os verdadeiros filósofos e os sábios, aqueles que, segundo Pitágoras
e Platão, deveriam governar a humanidade. Nesses homens, a paixão não está extinta, porque sem ela nada
se faz; ela constitui o fogo e a eletricidade no mundo moral. Neles, porém, as
paixões tornam-se servas da inteligência, enquanto que na categoria anterior a
inteligência é, na maioria das vezes, serva das paixões;
4º O mais alto ideal humano é realizado por uma quarta classe de
homens, que, ao império da inteligência sobre a alma e sobre o instinto,
acrescentaram o da vontade sobre todo o seu ser. Pelo domínio e
posse de todas as suas faculdades, eles exercem o grande poder. Realizaram a unidade
na trindade humana. Graças a esta concentração maravilhosa, que reúne todas as
potencialidades da vida, sua vontade, projetando-se nos outros, adquire uma
força quase ilimitada, uma magia radiante e criadora. Na história, estes homens
receberam nomes diversos. São os homens primordiais, os adeptos, os grandes iniciados, gênios
sublimes que transformam a humanidade. São de tal maneira raros que se pode contá-los na história. A
Providência semeia-os de tempos em tempos, com longos intervalos, como os
astros no céu (12).
(12). Essa classe de
homens corresponde aos quatro graus da iniciação pitagórica, e constitui a base
de todas as iniciações, até a dos franco-maçons primitivos, que possuíam
algumas migalhas da doutrina esotérica. – Ver Fabre d'Olivet, Les Vers dorés de
Pythagore.
É evidente que esta última categoria escapa a toda regra, a toda
classificação. Mas uma constituição da sociedade humana que não considere as
três primeiras categorias, que não proporcione a cada uma delas sua função
normal e os meios necessários para se desenvolver, é somente exterior e não
orgânica. Numa época primitiva, que remonta provavelmente aos tempos védicos,
os brâmanes da Índia fundaram a divisão da sociedade em castas com base no
princípio ternário. Mas, com o tempo, essa divisão tão justa e fecunda
transformou-se em privilégio sacerdotal e aristocrático. O princípio da
vocação e da iniciação deu lugar ao da hereditariedade. As castas fechadas
acabaram por petrificar-se, seguindo-se irremediavelmente a decadência da Índia.
O Egito, que conservou, sob o domínio de todos os faraós, a constituição
ternária com as castas móveis e abertas, o princípio da iniciação aplicada ao
sacerdócio, o princípio do exame em todas as funções civis e militares, viveu
cinco a seis mil anos sem mudar de constituição. Quanto à Grécia, seu
temperamento instável fê-la passar rapidamente da aristocracia para a
democracia e desta para a tirania.
Ela girou neste círculo vicioso como um doente que passa da
febre à letargia e volta à febre. Talvez
tivesse necessidade desta excitação para produzir sua obra inigualável, a
tradução da sabedoria profunda mas obscura do Oriente para uma linguagem clara
e universal; a criação do Belo pela Arte, e a fundação da ciência aberta e
racional sucedendo à iniciação secreta e intuitiva. Ela deveu ao
princípio da iniciação sua organização religiosa e suas mais altas inspirações. Social e
politicamente falando, pode-se dizer que viveu sempre no provisório e no
excessivo. Em sua qualidade de adepto, Pitágoras tinha compreendido, do cume da
iniciação, os princípios eternos que regem a sociedade e prosseguia, no plano
de uma grande reforma, segundo essas verdades. Veremos dentro em pouco como ele
e sua escola naufragaram nas tempestades da democracia.
Dos puros pináculos da doutrina, a vida dos mundos se desenrola de
acordo com o ritmo da Eternidade. Esplêndida Epifania! Mas aos raios mágicos do
firmamento desvendado, a terra, a humanidade, a vida abrem-nos também suas profundezas
secretas. É preciso encontrar o infinitamente grande no infinitamente pequeno,
para sentir a presença de Deus. Isto é o que sentiam os discípulos de
Pitágoras, quando o mestre lhes mostrava, para coroar seu ensinamento, como a
eterna Verdade se manifesta na união do Homem e da Mulher no casamento. A
beleza dos números sagrados que eles tinham ouvido e contemplado
no Infinito, iam encontrá-la no próprio coração da vida, e Deus emergiria para
eles do grande mistério dos Sexos e do Amor.
A antiguidade compreendera uma verdade essencial, que as idades seguintes
menosprezaram. A mulher, para bem cumprir suas funções de esposa e de mãe, tem necessidade de uma orientação, de uma iniciação especial. Daí a iniciação
puramente feminina, isto é, inteiramente reservada às mulheres. Ela existia na Índia,
nos tempos védicos, em que a mulher era sacerdotisa no altar doméstico. No Egito, ela
remonta aos mistérios de Ísis. Orfeu organizou-a na Grécia. Até à extinção do paganismo,
vemo-la florescer nos mistérios dionisíacos, assim como nos templos de Juno,
Diana, Minerva e Ceres. Esta iniciação consistia em ritos simbólicos,
cerimônias, festas noturnas, e depois em um ensinamento especial, ministrado por
sacerdotisas mais velhas ou pelo grande sacerdote, e que tratava das coisas
mais íntimas da vida conjugal. Davam-se conselhos e regras sobre as relações sexuais, as épocas
do ano e do mês favoráveis às concepções felizes. Dava-se a maior importância à
higiene física e moral da mulher durante a gravidez, para que a obra sagrada, a
criação do filho, se cumprisse segundo as leis divinas. Em resumo, ensinava-se
a ciência da vida conjugal e a arte da maternidade, que se estendia até muito
além do nascimento. Até a idade de sete anos, os filhos ficavam no gineceu, sob a direção
exclusiva da mãe, e onde o marido não penetrava. A sábia antiguidade considerava a
criança uma planta delicada, que tem necessidade, para não se atrofiar, da
quente atmosfera maternal. O pai a deformaria; eram necessários os beijos e
carícias da mãe para desabrochar. Era necessário o amor forte, envolvente da
mulher, que defendesse dos perigos externos esta alma que a vida assustava. Por
cumprir em plena consciência estas altas funções, consideradas divinas pela Antiguidade,
que a
mulher era verdadeiramente a sacerdotisa da família, a guardiã do fogo sagrado
da vida, a Vesta do lar. A iniciação feminina pode, portanto, ser considerada a
verdadeira razão da beleza da raça, da força das gerações, da duração das
famílias na Antiguidade greco-romana (13).
(13). Montesquieu e
Michelet são quase que os únicos autores a notarem a virtude das esposas
gregas. Nenhum deles mostrou a causa que indico aqui.
Estabelecendo uma ala para as mulheres em seu Instituto, Pitágoras
não fez mais que purificar e aprofundar o que já existia antes dele. As mulheres
iniciadas por ele recebiam, com os ritos e os preceitos, os princípios supremos
de sua função. Ele dava assim, àquelas que eram dignas disso, a consciência de
seu papel. Revelava-lhes a transfiguração do amor no casamento perfeito, que é a penetração de
duas almas no próprio centro da vida e da verdade. O homem, em sua
força, não é o representante do princípio e do espírito criador? A mulher, em
todo o seu poder, não personifica a natureza na sua força plástica, em suas
realizações maravilhosas, terrestres e divinas? Pois bem, quando esses dois
seres chegarem a se penetrar completamente, corpo, alma, espírito, eles
formarão juntos um resumo do Universo. Mas para crer em Deus a mulher tem necessidade de vê-lo viver no homem;
e para isto é preciso que o homem seja iniciado. Só ele é capaz, por sua inteligência
profunda da vida, por sua vontade criadora, de fecundar a alma feminina, de
transformá-la pelo ideal divino. E este ideal, a mulher amada devolve-lhe
multiplicado em seus pensamentos vibrantes, em suas sensações sutis, em suas
profundas adivinhações. Ela envia-lhe sua imagem transfigurada pelo entusiasmo,
torna-se seu ideal, pois o realiza pelo poder de seu amor em sua própria alma.
Por meio dela, ele se torna vivo e visível, faz-se carne e sangue. Se o homem cria pelo desejo
e pela vontade, a mulher, física e espiritualmente, gera por amor.
Em seu papel de amante, esposa, mãe ou inspirada, ela não é menor, e
é mais divina ainda, do que o homem. Pois amar é esquecer. A mulher que se
esquece e que se entrega em seu amor é sempre sublime.
Ela encontra nesse aniquilamento seu renascimento celeste, sua coroa
de luz e irradiação imortal de seu ser.
O amor reina como senhor na literatura moderna, há dois séculos.
Não é o amor puramente sensual que se ilumina à beleza do corpo,
como nos poetas antigos. Não é o culto insípido de um ideal abstrato e convencional,
como na Idade Média. Não! É o amor ao mesmo tempo sensual e psíquico que,
deixado em total liberdade e em plena fantasia individual, avança. Mais frequentemente
os dois sexos se guerreiam no amor. Revoltas da mulher contra o egoísmo e a
brutalidade do homem; desprezo do homem pela falsidade e a vaidade da mulher;
gritos da carne, cóleras impotentes das vítimas da volúpia, dos escravos do deboche.
No meio disto, paixões profundas, atrações terríveis, tanto mais poderosas
quanto mais são entravadas pelas convenções mundanas e instituições sociais.
Daí aqueles amores plenos de tormenta, de destruições morais, de catástrofes
trágicas, sobre os quais se desenrolam, quase que exclusivamente, o romance e o
drama modernos.
Dir-se-ia que o homem, cansado, não encontrando Deus nem na ciência nem na religião, procura-o perdidamente na mulher. E faz muito bem.
Entretanto, é só através da
iniciação das grandes verdades que Ele o encontra n’Ela e Ela n’Ele. Entre estas
almas que se ignoram reciprocamente e que se ignoram a si mesmas, que às vezes
se deixam, amaldiçoando-se, existe uma sede imensa de se penetrarem e de encontrar
nesta fusão a felicidade impossível. Apesar das aberrações e dos excessos que
disso resultam, essa procura desesperada é necessária.
Ela sai de um divino inconsciente e será um ponto vital para a reedificação
do futuro. Porque quando o homem e a mulher se encontrarem a si mesmos e um ao
outro pelo amor profundo e pela iniciação, sua fusão será a força radiante e
criadora por excelência.
O amor psíquico, o amor-paixão da alma somente há pouco tempo entrou
na literatura e, por esta, na consciência universal. Mas tem sua fonte na
iniciação antiga. Se a literatura grega mal o deixa transparecer,
era por ser uma exceção raríssima. Isso também decorre do
segredo profundo dos mistérios. Todavia, a tradição religiosa e filosófica
conservou os traços da mulher iniciada. Por trás da poesia e da filosofia oficiais,
algumas figuras de mulheres aparecem meio veladas, mas luminosas. Já conhecemos a
pitonisa Teocléia, que inspirou Pitágoras.
Mais tarde virá a sacerdotisa Corina, rival muitas vezes feliz
de Píndaro, o qual foi o mais iniciado dos líricos gregos. Finalmente, a
misteriosa Diotima aparece no banquete de Platão, para fazer a suprema
revelação sobre o Amor. Ao lado dessas missões excepcionais, a mulher grega exerceu
seu verdadeiro sacerdócio no lar e no gineceu. Sua criação própria foram
justamente os heróis, os artistas, os poetas, dos quais admiramos os cantos, os
mármores e as ações sublimes. Foi ela que os concebeu no mistério do amor, que
os moldou em seu seio com o desejo da beleza, que os fez desabrochar sob a
proteção materna.
Acrescentemos que para a mulher e o homem verdadeiramente iniciados,
a criação do filho tem um sentido infinitamente mais belo, um
alcance maior do que para nós. Quando
o pai e a mãe sabem que a alma da criança preexiste a seu nascimento terrestre,
a concepção torna-se um ato sagrado, o apelo de uma alma à encarnação.
Entre a alma encarnada e a mãe, existe quase sempre um profundo grau
de semelhança. Assim como as mulheres más e perversas atraem os espíritos
demoníacos, assim também as mães ternas atraem os espíritos divinos. Esta alma
invisível que se espera, que está para vir e que vem tão misteriosamente e tão
seguramente, não será ela algo divino? Seu nascimento, seu aprisionamento na
carne será doloroso; pois se entre ela e seu céu abandonado um véu grosseiro se
interpõe, e se ela deixa de lembrar, ah! ela não poderia sofrer menos! Por
isso, santa e divina é a tarefa da mãe, que deve criar para ela uma nova morada,
dulcificar-lhe a prisão e facilitar-lhe a prova. Assim, o ensinamento de
Pitágoras, que começara nas profundezas do Absoluto pela trindade divina,
terminava no centro da vida pela trindade humana.
No Pai,
na Mãe e no Filho o iniciado sabia reconhecer agora o Espírito, a Alma e o
Coração do Universo vivo. Esta última iniciação constituía para ele o fundamento da obra
social concebida à altura e em toda a beleza do ideal, edifício para o qual
cada iniciado devia trazer sua pedra.
V
A
FAMÍLIA DE PITÁGORAS. A ESCOLA E SEUS DESTINOS
Entre as mulheres que seguiam o ensinamento do mestre, havia uma
jovem de grande beleza. Seu pai, natural de Crotona, chamava-se Brontinos; ela,
Teano. Pitágoras aproximava-se então dos
sessenta anos.
Mas o grande domínio sobre as paixões e uma vida pura, consagrada inteiramente
à sua missão, haviam conservado intacta sua força viril. A juventude da alma,
aquela chama imortal que o grande iniciado haure em sua vida espiritual e
alimenta mediante as forças ocultas da natureza, brilhava nele e subjugava a
todos os que o cercavam. O mago grego não estava no declínio, mas no apogeu de sua
potência. Teano foi atraída para Pitágoras pela irradiação quase sobrenatural
que emanava de sua pessoa. Grave, reservada, ela procurara junto ao mestre a explicação dos mistérios,
que amava sem compreender. Mas, quando à luz da verdade, ao doce calor que a envolvia
pouco a pouco, ela sentiu sua alma desabrochar do fundo de si mesma como a rosa
mística de mil pétalas, quando ela sentiu que essa eclosão vinha dele e de sua
palavra,
apaixonou-se silenciosamente pelo mestre, com um
entusiasmo sem limites e com um amor ardente.
Pitágoras não tinha procurado atraí-la. Sua afeição pertencia a todos
os discípulos. Sonhava apenas com sua escola, com a Grécia e com o futuro do mundo. Como muitos dos
grandes adeptos, tinha renunciado à mulher para entregar-se todo à sua obra. A
magia de sua vontade, a posse espiritual de tantas almas que ele formara e que
a ele permaneciam ligadas como a um pai adorado, o incenso místico de todos
esses amores inexprimidos que subiam até ele, e esse perfume delicado de
simpatia humana que unia os irmãos pitagóricos – tudo isto
substituía para ele a volúpia, a felicidade, o amor.
Um dia, meditava sozinho sobre o futuro de sua Escola, na cripta
de Proserpina. Viu então aproximar-se séria e resoluta, a bela virgem, com quem
jamais falara em particular. Ela ajoelhou-se diante dele e abaixou a cabeça,
suplicando ao mestre – a ele que tudo podia – que a livrasse de um amor
impossível e infeliz, que consumia seu corpo e devorava sua alma. Pitágoras
quis saber o nome daquele a quem ela amava. Após longas hesitações, Teano
confessou que era ele, mas que, preparada para tudo, se submeteria à sua
vontade. Pitágoras nada respondeu. Encorajada por esse silêncio, ela ergueu a
cabeça e lançou-lhe um olhar suplicante, de onde escapavam a seiva de uma vida e o perfume de uma alma
ofertada em holocausto ao mestre.
O sábio
ficou abalado. Seus sentidos, ele sabia vencer, sua imaginação, ele lançara
por terra. Mas, o clarão daquela alma penetrara a sua. Naquela virgem
amadurecida pela paixão, transfigurada pelo pensamento de um devotamento
absoluto, ele tinha encontrado sua companheira e entrevisto uma realização mais
completa de sua obra.
Pitágoras fez a jovem levantar-se com um gesto comovido, e Teano pôde
ver nos olhos do mestre que seus destinos estavam para sempre unidos.
Por seu casamento com Teano, Pitágoras apôs o selo da realização à sua obra. A associação, a
fusão das duas vidas foi completa. Um dia perguntaram à esposa do mestre quanto
tempo é necessário a uma mulher para tornar-se pura após ter tido contato com um
homem. Ela respondeu: “Se for com seu
marido, ela já está na mesma hora; se for com um outro, não ficará jamais”. Muitas mulheres argumentarão,
sorrindo, que para dizer estas palavras é preciso ser mulher de Pitágoras e
amá-lo como Teano.
Elas têm razão. Não é o casamento que santifica o amor. É o amor que justifica o
casamento. Teano penetrou tão completamente no pensamento de seu marido
que, após sua morte, ela tornou-se o centro da ordem pitagórica, e é citada por um
autor grego como autorizada na doutrina dos Números. Ela deu a Pitágoras dois filhos: Arimneste e Telauges, e uma filha:
Damo. Telauges tornou-se mais tarde o mestre de Empédocles e
transmitiu-lhe os segredos da doutrina. A família de Pitágoras foi para a ordem um verdadeiro modelo.
Chamaram sua casa de o templo de Ceres e seu pátio de o templo
das Musas. Nas festas domésticas e religiosas, a mãe dirigia o coro das mulheres
e Damo, o coro das jovens. Damo foi, em todos os pontos, digna de seus pais. Pitágoras havia-lhe
confiado alguns escritos, sob a proibição expressa de mostrá-los a quem quer
que fosse fora da família.
Depois da dispersão dos pitagóricos, Damo ficou em extrema
pobreza.
Ofereceram-lhe então uma elevada quantia pelo precioso
manuscrito.
Porém, fiel à vontade do pai, ela sempre recusou entregá-lo.
Pitágoras viveu trinta anos em Crotona. Em vinte anos este homem
admirável adquiriu um poder tal que aqueles que o chamavam de semideus não exageravam. Seu poder era um
prodígio. Nenhum outro filósofo obteve algo semelhante. Sua influência
não se fazia sentir somente na escola de Crotona e em suas ramificações nas
outras cidades das costas italianas, mas também na política de todos esses
pequenos estados.
Pitágoras era um reformador em toda a acepção da palavra.
Crotona, a colônia aqueana, tinha uma constituição
aristocrática. O conselho dos mil, composto das grandes famílias, exercia o
poder Legislativo e supervisionava o poder Executivo. As assembleias populares
existiam, mas com poderes restritos. Pitágoras, que desejava para o Estado
ordem e harmonia, não gostava da opressão oligárquica nem do caos da demagogia.
Aceitando a constituição dórica, ele procurou simplesmente introduzir nela uma
nova organização. A idéia era ousada: criar, acima do poder político, um poder
científico, com voz deliberativa e consultiva nas questões vitais, tornando-se
a chave do poder, o regulador supremo do Estado. Acima do conselho dos mil, ele
organizou o conselho dos trezentos, escolhidos pelo primeiro mas recrutados só
entre os iniciados. Eram agora em número suficiente para
a tarefa. Porfírio conta que dois mil cidadãos de Crotona renunciaram à vida
habitual e reuniram-se para viver em comunidade, com as mulheres e os filhos,
depois de terem entregue seu patrimônio ao grupo.
Pitágoras queria pois à frente do Estado um governo científico menos
misterioso, mas também tão elevado quanto o sacerdócio egípcio. O que ele
realizou por um momento passou a ser o sonho de todos os iniciados que se
ocuparam de política: introduzir o princípio da iniciação e do exame do governo
do Estado, e reconciliar, nesta síntese superior, o princípio eletivo ou
democrático com um governo constituído pela seleção dos inteligentes e
virtuosos. O conselho dos trezentos formou, então, uma espécie de ordem
política, científica e religiosa, da qual Pitágoras era o chefe reconhecido. O
indivíduo alistava-se nele mediante um juramento solene e terrível de sigilo absoluto,
como se fazia nos Mistérios. Essas sociedades ou hetairias estenderam-se de
Crotona, onde se achava a sociedade-mãe, até quase todas as cidades da
Magna-Grécia, exercendo uma poderosa ação política. A ordem pitágorica tendia
também a tornar-se a cabeça do Estado em toda a Itália meridional. Tinha ramificações
em Tarento, Heracléia, Metaponto, Regium, Himero, Catânia, Agrigento, Síbaris
e, segundo Aristóxene, até entre os etruscos. Quanto à influência de Pitágoras no
governo destas grandes e ricas cidades, não se poderia imaginar nada de mais
elevado, liberal e pacífico. Em toda a parte onde aparecia, ele restabelecia a ordem, a
justiça, a concórdia. Chamado para junto de um tirano da Sicília, conseguiu,
com sua eloquência, que ele se decidisse a renunciar às riquezas mal adquiridas
e abdicasse do poder usurpado. Quanto às cidades, ele as tornava livres e
independentes, depois de terem estado subjugadas umas às outras. Tão benéfica era sua ação
que, quando ele chegava nas cidades, diziam: “Não é para ensinar, mas para curar”.
A influência soberana de um grande espírito e de um grande caráter,
essa
magia de alma e de inteligência excita invejas tanto mais terríveis, ódios tanto mais
violentos, quanto mais ela for inatacável. O império de Pitágoras durava já um
quarto de século. E o adepto infatigável atingia a idade dos noventa anos, quando veio
a reação. A fagulha partiu de Síbaris, a rival de Crotona. Houve lá um
levante popular e o partido aristocrático foi vencido. Quinhentos exilados pediram
asilo em Crotona mas os sibaritas exigiram sua extradição.
Temendo a cólera de uma cidade inimiga, os magistrados de
Crotona iam atender àquela exigência, quando Pitágoras interveio. A suas instâncias,
recusaram a entregar aqueles infelizes suplicantes aos adversários implacáveis.
Diante desta recusa, Síbaris declarou guerra a Crotona. Mas a armada de
Crotona, comandada por um discípulo de Pitágoras, o célebre atleta Mílon,
derrotou completamente os sibaritas.
Seguiu-se o desastre de Síbaris, A cidade foi tomada, saqueada, completamente
destruída e transformada em deserto.
É impossível admitir que Pitágoras aprovasse semelhantes represálias.
Elas violentam seus princípios e de todos os iniciados.
Contudo, nem ele nem Mílon puderam refrear as paixões
desencadeadas de um exército vitorioso, atiçadas por antigas invejas e
superexcitadas por um ataque injusto.
Toda vingança, seja de indivíduos, seja de povos, provoca um choque
em resposta às paixões desencadeadas. A Nêmesis desta foi terrível. As consequências recaíram sobre
Pitágoras, e toda a sua ordem.
Após a tomada de Síbaris, o povo pediu a divisão das terras. Não
contente de tê-la obtido, o partido democrático propôs na constituição uma
mudança que retirava do Conselho dos Mil seus privilégios e suprimia o Conselho
dos Trezentos, só admitindo uma única autoridade: o sufrágio universal.
Naturalmente os pitagóricos que faziam parte do Conselho dos Mil opuseram-se a
uma reforma contrária a seus princípios e que solapava pela base a paciente
obra do mestre.
Os pitagóricos já eram objeto daquele ódio surdo que o mistério e a superioridade
sempre excitam na multidão. Sua atitude política sublevou contra eles os furores da
demagogia, e um ódio pessoal contra o mestre causou a explosão.
Um certo Cílon tinha-se candidatado outrora à Escola. Pitágoras,
bastante severo na admissão dos discípulos, recusou-o por causa de seu caráter
violento e voluntarioso. O candidato recusado tornou-se um
adversário rancoroso. Quando a opinião pública começou a
voltar-se contra Pitágoras, aquele organizou um grupo de oposição aos pitagóricos,
uma grande sociedade popular. Conseguiu atrair os principais líderes do povo e
preparou nas assembléias uma revolução que começaria pela expulsão dos
pitagóricos. Perante uma multidão agitada, Cílon sobe à tribuna popular e lê
trechos extraídos do livro secreto de Pitágoras, intitulado: A Palavra Sagrada (hiéros logos). Os textos
foram desfigurados e deturpados. Alguns oradores tentam defender os irmãos do
silêncio, que respeitam até os animais.
Respondem-lhes com gargalhadas. Cílon sobe e torna a subir à
tribuna, procurando demonstrar que o catecismo religioso dos pitagóricos atenta
contra a liberdade.
“Dizer isto é pouco,
acrescenta o tribuno. Quem é esse mestre, esse pretenso semideus, ao qual se
obedece cegamente e basta que dê uma ordem para que todos os seus irmãos
gritem: ‘O mestre disse!’ Não é ele o tirano de Crotona e o pior dos tiranos,
um tirano oculto? De que é feita esta amizade indissolúvel que une todos os
membros das hetairias pitagóricas, senão de desdém e de desprezo pelo povo? Eles
repetem sempre as palavras de Homero, ou seja, que o príncipe deve ser o pastor
de seu povo. Para eles, então, o povo não passa de um vil rebanho. Sim, a
própria existência da ordem é uma conspiração permanente contra os direitos
populares. Enquanto ela não for destruída, não haverá liberdade em Crotona!”
Um dos membros da assembléia popular, animado por um sentimento
de lealdade, gritou: “Que se permita,
pelo menos, a Pitágoras e aos pitagóricos que se justifiquem perante nossa
tribuna, antes de condená-los”. Mas Cílon respondeu com altivez: “Esses pitagóricos não vos roubaram o direito
de julgar e decidir os negócios públicos? Com que direito eles solicitariam
hoje serem ouvidos? Eles não vos consultaram quando vos despojaram do direito
de exercer a justiça! Pois bem, chegou a vossa vez de atingi-los sem ouvi-los!”
Retumbaram aplausos em resposta a estas saídas veementes; os
espíritos se exaltavam cada vez mais.
Uma tarde, quando os quarenta principais membros da ordem estavam
reunidos na casa de Mílon, o tribuno sublevou seus bandos.
Cercaram a casa. Os pitagóricos, e o mestre entre eles, barricaram
as portas. A multidão furiosa ateou fogo ao edifício. Trinta e oito pitagóricos,
os primeiros discípulos do mestre, a nata da ordem, e o próprio Pitágoras
pereceram; alguns nas chamas do incêndio, outros mortos pelo povo. Arquipo e
Lísis foram os únicos que escaparam ao massacre (1)
(1). Esta é a versão de
Diógenes de Laércio sobre a morte de Pitágoras.
Segundo Dicearco, citado
por Porfírio, o mestre teria escapado ao massacre com Arquipo e Lísis. Mas
teria caminhado de cidade em cidade, até Metaponto, onde se deixou morrer de
fome no templo das Musas. Os habitantes de Metaponto pretendiam, ao contrário,
que o sábio, acolhido por eles, tinha morrido pacificamente em sua cidade.
Mostraram a Cícero sua casa, sua cadeira e seu túmulo. É de se notar que, muito
tempo depois da morte do mestre, as cidades que mais perseguiram Pitágoras, por
ocasião da reviravolta democrática, reclamaram a honra de tê-lo abrigado e
salvado. As cidades do golfo de Tarento disputavam as cinzas do filósofo com a
mesma obstinação com que as cidades da Jônia disputavam a honra de serem a
cidade natal de Homero. Estes fatos são discutidos no minucioso livro de M.
Chaignet: Pythagore et Ia philosophie pythagoricienne.
Assim morreu aquele grande sábio, aquele homem divino, que tentara
aplicar sua sabedoria ao governo dos homens. O assassinato dos pitagóricos foi o
sinal para uma revolução democrática em Crotona e no golfo de Tarento. As cidades
da Itália expulsaram os infelizes discípulos do mestre. A ordem foi dispersa,
mas seus remanescentes espalharam-se pela Sicília e pela Grécia, semeando por
toda parte a palavra do mestre.
Lísis tornou-se o mestre de Epaminondas. Depois de novas revoluções,
os pitagóricos puderam voltar à Itália, sob a condição de não mais constituírem
um corpo político. Uma comovente fraternidade nunca deixou de uni-los;
consideravam-se uma mesma e única família. Certo dia, um deles, na miséria e
doente, foi recolhido por um estalajadeiro.
Antes de morrer, desenhou na porta da casa alguns sinais
misteriosos e
disse ao hospedeiro: “Fica
tranquilo. Um de meus irmãos pagará minha
dívida”.
Um
ano depois, passando pelo mesmo albergue, um estrangeiro
viu os sinais e disse ao hospedeiro: “Eu sou pitagórico. Um de meus irmãos morreu aqui. Dize-me o quanto devo
por ele”. A ordem sobreviveu durante duzentos e cinquenta anos. Quanto às
idéias, às tradições do mestre, elas vivem até nossos dias.
A influência regeneradora de Pitágoras sobre a Grécia foi
imensa, exercendo-se misteriosa mas seguramente, em todos os templos por onde
ele passara. Vimo-lo em Delfos dar nova força à ciência divinatória, reafirmar
a autoridade dos sacerdotes e formar uma pitonisa-modelo. Graças a essa reforma
interior que despertou o entusiasmo no próprio coração dos santuários e na alma
dos iniciados, Delfos tornou-se mais do que nunca o centro moral da Grécia.
Isso se comprovou durante as guerras médicas.
Trinta anos apenas tinham decorrido desde a morte de Pitágoras quando
o ciclone da Ásia, predito pelo sábio de Samos, veio estourar sobre as costas
da Hélade. Nessa luta épica da Europa contra a Ásia bárbara, a Grécia, que
representa a liberdade e a civilização, tem à sua retaguarda a ciência e o gênio
de Apolo. É ele que, com seu sopro patriótico e religioso, agita e faz calar a
rivalidade nascente entre Esparta e Atenas. É ele que inspira os Milcíades e os
Temístocles. Em Maratona, o entusiasmo é tal que os atenienses acreditam ver
dois guerreiros, claros como a luz, combater em suas fileiras. Uns reconheceram
neles Teseu e Equetos; outros, Castor e Pólux. Quando a invasão de Xerxes, dez
vezes mais formidável do que a de Dario, avança pelas Termópilas e submerge a
Hélade, é a Pítia que, do alto de seu tripé, indica a salvação para os enviados
de Atenas e ajuda Temístocles a vencer a batalha de Salamina. As páginas de
Heródoto tremem com sua palavra ofegante: “Abandonai
as residências e as altas colinas da cidade construída em círculo..., o fogo e
o temível Marte, montado em um carro sírio, arruinarão vossas torres... os
templos vacilam, de seus muros goteja um frio suor, de seu topo corre um sangue
negro... Devereis sair de meu santuário. Um bosque vos servirá de muralha e de
inexpugnável proteção. Fugi! Voltai as costas aos infantes e aos cavaleiros
inumeráveis! Oh! divina Salamina! Serás funesta aos filhos da mulher!”(2)
(2). Na linguagem dos
templos, o termo filhos da mulher designava o grau inferior da iniciação. A
mulher significava a natureza. Acima havia os filhos do homem ou iniciados no
Espírito e na Alma, os filhos dos Deuses ou iniciados nas ciências cosmogônicas
e os filhos de Deus ou iniciados da ciência suprema. A Pítia chama os persas de
filhos da mulher, designando-os pelo caráter de sua religião. Tomadas ao pé da
letra suas palavras não teriam sentido.
No texto de Ésquilo, a batalha começa por um grito que se assemelha
ao peã, o hino de Apoio: “Logo o dia, com
os corcéis brancos, espalhou sobre o mundo sua resplandecente luz. Nesse instante,
um clamor imenso, modulado como um cântico sagrado, eleva-se nas fileiras dos
gregos. Os ecos da ilha respondem com mil vozes vibrantes”. É de se
admirar, portanto, que, inebriados pelo vinho da vitória, os helenos, na
batalha de Micália, em face da Ásia vencida, tenham escolhido como brado de
reunir as palavras: Hebe, a Eterna Juventude? Sim, o sopro de Apoio atravessa
essas extraordinárias guerras dos medas. O entusiasmo religioso, que produz
milagres domina os vivos e os mortos, ilumina os troféus e doura os túmulos. Todos os templos
foram saqueados, mas o de Delfos ficou de pé. A armada persa aproximava-se para
espoliar a cidade santa. Todos tremiam. Porém o Deus solar disse pela voz do
pontífice: “Eu mesmo me defenderei!”
Por ordem do templo, a cidade é evacuada. Os habitantes se refugiam
nas grutas do Parnaso e só os sacerdotes permanecem à entrada do santuário, com
a guarda sagrada. A armada persa entra na cidade silenciosa como um túmulo.
Somente as estátuas olham-na passar. Uma nuvem negra acumula-se no fundo do
precipício. O trovão ribomba e o raio cai sobre os invasores. Duas enormes
rochas rolam do
cume do Parnaso e esmagam grande número de persas. Ao mesmo tempo,
clamores eclodem do templo de Minerva, chamas brotam do solo sob os passos dos
assaltantes. Diante destes prodígios, os bárbaros apavorados recuam. Sua armada
foge enlouquecida. O próprio Deus se defendera (3).
(3). “Vê-se ainda no
recinto de Minerva”, diz Heródoto, VIII, 39. – A invasão gaulesa, que teve
lugar 200 anos mais tarde, foi repelida de maneira análoga. Lá também forma-se
uma tempestade, o raio cai várias vezes sobre os gauleses, o solo treme sob
seus pés. Eles vêem aparições sobrenaturais. E o templo de Apolo fica incólume.
Estes fatos parecem provar que os sacerdotes de Delfos possuíam a ciência do
fogo cósmico e sabiam utilizar a eletricidade por meio de poderes ocultos, como
os magos caldeus. – Vide Amédée Thierry, Histoire des Gaulois, I, 246.
Teriam estas maravilhas ocorrido, estas vitórias que a humanidade conta como
suas, teriam elas ocorrido se trinta anos antes Pitágoras não tivesse surgido
no santuário délfico para ali reacender o fogo sagrado? É pouco provável.
Uma palavra ainda a respeito da influência do mestre sobre a filosofia.
Antes
dele, houve físicos de um lado, moralistas de outro.
Pitágoras fez entrar a moral, a ciência e a religião em sua vasta
síntese.
Esta síntese não é senão a doutrina esotérica, cuja plena luz procuramos encontrar no fundo da iniciação
pitagórica. O filósofo de Crotona não foi o inventor, mas o organizador
luminoso destas verdades primordiais na ordem científica. Portanto, escolhemos
seu sistema como o quadro mais favorável para uma exposição completa da doutrina dos Mistérios e de
verdadeira teosofia.
Aqueles que seguiram o mestre conosco terão compreendido que, no
fundo dessa doutrina, brilha o sol da Verdade-Una. Encontram-se seus raios
espalhados nas filosofias e nas religiões, mas o centro está lá.
O que será preciso para alcançá-lo? A observação e o raciocínio
não são suficientes. Necessita-se ainda, e acima de tudo, da intuição.
Pitágoras foi um adepto, um iniciado de primeira ordem. Possuiu a visão
direta do
espírito, a chave das ciências ocultas e do mundo espiritual. Ele foi buscar,
pois, na fonte primeira da Verdade. E como a essas faculdades transcendentes da
alma intelectual e espiritualizada ele acrescentava a observação minuciosa da
natureza física e a classificação magistral das idéias por sua elevada razão,
ninguém melhor do que ele estava preparado para construir o edifício da ciência
do Cosmo.
Na verdade, este edifício jamais foi destruído. Platão, que tomou a Pitágoras
toda sua metafísica, teve dele uma idéia global, embora a tivesse exposto com
menos rigor e nitidez. A escola alexandrina ocupou-lhe os pavimentos superiores. A
ciência moderna tomou-lhe o rés-do-chão e consolidou-lhe os fundamentos.
Numerosas escolas filosóficas, seitas místicas ou religiosas habitaram diversos
de seus compartimentos. Mas nenhuma filosofia jamais abrangeu o seu conjunto. É este conjunto
que nos propusemos reencontrar aqui, em sua harmonia e unidade.
Pitágoras, Filósofo e Matemático, grego, nasceu na
pequena ilha de Samos (Ásia Menor), no mar Egeu, aproximadamente em 580 a.C., sendo filho de um
opulento comerciante, pertencia a uma família de aristocratas.
No início de sua juventude, estudou filosofia sob os cuidados de um
discípulo de Tales, o filósofo Ferecídio. Ainda bem jovem, foi
para o Egito, onde ele e vários outros filósofos foram iniciados nos antigos
Mistérios egípcios. Viajou também para a
Babilônia e Caldéia, onde deu as últimas pinceladas em seus estudos sobre o
mistério do universo.
Enfim, dotado de habilidades matemáticas que foram adquiridas
nas viagens pelo mundo na juventude, principalmente, com os egípcios e
babilônios onde aprendeu novas técnicas, isto porque esses povos antigos tinham
ultrapassado a simples contagem tendo já avançado para cálculos mais complexos,
como por exemplo, a criação de sistemas sofisticados de contabilidade e a
construção de prédios.
Partiu então para Creta a fim de receber os ensinamentos do
filósofo Epimênides, e finalmente retornou a Samos. Entretanto, as condições políticas de sua
ilha o impediram de ensinar livremente sobre suas experiências. Dada à tirania
de Polícrates, Pitágoras emigrou de Samos para o Sul de Itália,
estabelecendo-se em
Crotona. Ele condenou publicamente a tirania em Samos e foi
subsequentemente exilado em Crotona, onde naquela época a presença da linguagem
grega era muito forte. Aí, teve a felicidade de se encontrar com um dos homens
mais ricos da época, Mílon, que para além de outros interesses, apreciava e
estudava a filosofia e a matemática. Ao morrer, cedeu parte da sua casa a
Pitágoras com o propósito de aí ser estabelecida uma escola. Foi então fundada
a escola pitagórica, dedicada ao estudo dos números. Os membros desta escola
ficaram conhecidos por pitagóricos que podem considerar-se como uma ordem
religiosa e uma escola filosófica. Pensa-se que a sua filosofia se baseava no
lema "O número é tudo",
isto é, o "número era a substância
de todas as coisas". Faziam parte desta Irmandade Pitagórica, cerca de
seiscentos seguidores, entre os quais haviam vinte e oito irmãs, sendo que uma
delas era a sua estudante favorita, a filha de Mílon, Theano, que acabou por se
casar com Pitágoras apesar da diferença de idade.
Como iniciado e mestre, Pitágoras deu continuidade às doutrinas,
que aprendera no Egito, na grande escola iniciática que fundou em Crotona. Foi lá que
ele fundou sua própria escola de filosofia, sobre cujo portal lia-se: "Deus extraiu a Terra do nada, assim como
extraiu o Um do nada para criar a multiplicidade". Isto se expressava
de forma sumária a visão de Pitágoras sobre a criação do universo, a qual é
compartilhada hoje pelos místicos.
Suas doutrinas místicas com relação à natureza da alma e a
relação dessa com o corpo integram os ensinamentos místicos e ocultistas gerais
que são expostos atualmente. Sua Ética,
suas normas de comportamento, especialmente as que visam à consecução duma
consciência espiritual, muitas vezes são ministradas por instrutores de
esoterismo sem pleno conhecimento de sua origem. Atribui-se a Pitágoras a descoberta das
relações matemáticas entre as várias notas da escala musical. Ele teria medido uma corda vibrátil e
descoberto que a freqüência duplicava em cada oitava. Pode ser que esse fenômeno lhe tenha sido
demonstrado pelos sábios sacerdotes menfitas, a cuja cidade viajou e onde foi
iniciado nos mistérios.
Na escola de Pitágoras, a filosofia era ensinada em várias
etapas. A instrução começava pelo
silêncio absoluto e atendimento a palestras, e terminava em estágios mais
avançados, com discussões em grupo sobre matemática, física e astronomia.
Devido aos costumes dessa escola (diz-se que seus integrantes não se conheciam
uns aos outros, pois se reuniam encapuzados), é difícil especificar o papel
desempenhado por esta ou aquela figura na elaboração da doutrina,
principalmente quanto à sua origem. A
geometria tinha uma posição-chave em seus ensinamentos, pois ele acreditava que
"Deus está perpetuamente medindo a
terra" (de geo, gaia=terra, e metro=medir). Ele combinava matemática com música, e
considerava a harmonia matemática como a pedra fundamental de toda a criação,
existência e operação do universo.
Pitágoras concebeu que "as coisas são números"- em outras palavras, cada realidade,
cada coisa que percebemos, possui natureza vibratória e tem seu número
específico de vibrações. Consequentemente,
alguém que conheça o nível vibratório da essência ou energia de um objeto
poderá, portanto, controlar sua forma de expressão - exatamente o que a Física
moderna está querendo fazer. Além disso,
cada realidade ou coisa teria uma relação matemática ou um lugar no grande
teclado universal. Do mesmo modo que existe
uma harmonia entre as notas de um teclado musical, Pitágoras afirmou que todas
as coisas têm sua relação numérica ou harmônica no Cosmos. Essa, pois, foi à primeira postulação de um
universo que possui uma disposição ordenada, disposição essa que possibilita
uma pesquisa científica experimental.
Pitágoras elaborou uma teoria que, no que se refere ao fenômeno
do som, era parcialmente demonstrável.
Tratava-se duma premissa lógica, portanto, projetar isso à esfera de
outros fenômenos naturais. Ele defendia
a idéia de que, se picos altos e baixos podem ser combinados numa perfeita
harmonia, era natural supor que todos os objetos possuem relacionamento
análogo. A teoria dos opostos ou
contrários, como quente e frio, duro e macio, como a causa fundamental na forma
das coisas, era uma idéia corrente na época de Pitágoras. (Aliás, que já existe
bem antes de Pitágoras, como vimos em outros Mestres)
Para ele, a harmonia significava um equilíbrio ou uma fusão dos
contrário. Num universo ou realidade
estável, haveria a fusão de opostos numa proporção que pudesse ser expressa
numericamente. Para Pitágoras, o número era "a chave do universo". Se descobrirmos o número e a proporção
de toda a realidade, conhecemos o segredo do universo. Séculos mais tarde, John Dalton, eminente
também no campo científico, apresentou uma concepção semelhante de proporções
fixas dos elementos químicos.
O pitagorismo desenvolveu também um grande esforço no sentido de
relacionar a astronomia com a matemática, usando para isso a aritmética, a
geometria e até a música.
Pitágoras aplicou seu conceito às distâncias relativas do Sol,
Lua e astros. Imaginou que existia entre
eles uma relação harmônica que poderia ser expressa numericamente. Trata-se duma teoria que foi defendida em tempos
mais recentes, embora de modo algo diverso.
Pitágoras disse que o Sol, a Lua e os astros possuíam freqüências
vibratórias correspondentes a oitavas específicas da escala universal, cada
qual produziria vibrações, do mesmo modo que uma lira produz sons. Em outras palavras, se os planetas são
vibratórios, devem propagar oitavas que podem ser percebidas, do mesmo modo que
quando alguém tange as cordas dum instrumento musical.
Nesse ponto de sua filosofia, Pitágoras foi mal compreendido por
muitos, ou pelo menos mal-interpretado.
Ele não quis dizer que essa “música das esferas”, essa harmonia
do universo planetário, pode ser audível fisicamente como ouvimos a voz de
outra pessoa. Para fazer-lhe jus,
devemos dizer que ele quis dizer que se não ouvimos essa música das esferas é
porque não estamos harmonizados com sua freqüência vibratória - esse
"ouvir" não deveria ser concebido no sentido objetivo ou físico. Com
efeito, afirmou ele que a alma do homem deve ser posta em harmonia com a
harmonia universal superior das energias cósmicas para que a pessoa pudesse
ouvi-la. A palavra ouvir deve ser
entendida como apreensão outra que não a percepção auditivia.
Misticamente, essa “música das esferas” é o resultado de uma
harmonização pessoal com o Cósmico.
Trata-se de um grau de Cosnciência Cósmica. As sensações que se tem dessa harmonia,
quando perfeita, nem sempre são percebidas como impressões reais de
audição. A experiência pode ser como um
êxtase de sensação ou como um sentimento de profunda paz.
A seus discípulos de Crotona, ensinava que a felicidade maior
está em nos colocarmos em harmonia - isto é, em nos colocarmos numa relação
apropriada com o movimento universal de todas as coisas. Alcméon de Crotona, um filósofo pitagórico,
disse: "Todas as coisas divinas, a
Lua, o Sol, os astros e todo o céu estão em contínuo movimento." Essa
afirmação abriu a porta a uma investigação científica da unidade de toda a
realidade. Pitágoras propôs uma
propriedade ou qualidade comum de todas as coisas.
A saúde também era considerada como a harmonia adequada do
corpo. Afirmava-se que deve haver uma
consonância dos opostos no corpo, isto é, os opostos devem estar presentes na
proporção correta para que a saúde seja preservada. A doença era considerada "uma expansão desproporcionada de um ou mais dos contrários".
Pitágoras acreditava na reencarnação, porque achava que ela conduzia
a humanidade para esferas mais elevadas de espiritualidade e um desenvolvimento
superior contínuo.
Após sua morte (cerca de 500 a.C.) Pitágoras assumiu proporções
lendárias aos olhos das gerações que se seguiram. Foi considerado um semideus, enquanto
matemáticos dessas gerações posteriores foram tidos como reencarnações de
Pitágoras. Suas escolas de misticismo
continuaram operando em cidades ao sul da Itália e na Sicília, e suas visões
filosóficas foram expostas por muitos séculos pelos filósofos neo-pitagóricos.
As regras da Irmandade eram muito rígidas, chegando ao ápice de
que cada adepto, ao entrar na Irmandade, teria que doar tudo o que tinha para um fundo comum, mas ao sair
receberiam em dobro o que tinham doado e uma lápide seria erguida em sua memória; cada membro da
escola era forçado a jurar que nunca revelaria ao mundo exterior qualquer uma
das suas descobertas matemáticas; era dever dos seus adeptos atribuir ao mestre
e fundador todas as conquistas alcançadas.
Logo depois de fundar a Irmandade, Pitágoras criou a palavra filósofo e definiu os objetivos da escola. De entre as
lendas que cercam a vida de Pitágoras, algumas asseguram que ele na verdade não
era um homem comum, mas sim um Deus que tomara a forma de ser humano para
melhor guiar a humanidade e ensinar a filosofia, a ciência e a arte.
A escola pitagórica diversificou-se em dois ramos de estudos
científicos, sendo que um deles tratava da teoria matemática que englobava a
astronomia e a arte médica, e o outro ramo dedicava-se à doutrina metafísica,
que posteriormente passou a ser denominada de doutrina dos números. Esta
última, tinha como objetivo levar à determinação numérica das relações
permanentes em que consiste a vida do universo.
Os pitagóricos afirmavam que o número é a essência das coisas e
defenderam a concepção segundo a qual, assim como todos os números compõem-se
da soma de pares e ímpares, as coisas encerram determinações opostas, como as
de limitado e ilimitado, concluindo-se que todas as coisas são vistas como
conciliação de opostos.
A descoberta de grandezas que não podiam ser representadas por
um número inteiro nem por uma fração de números inteiros, às quais deram o nome
de alogon, que quer dizer o
inexprimível, surpreendeu e chocou os pitagóricos, admiradores dos números,
originando uma crise nos fundamentos da matemática. Juraram nunca o revelar a
ninguém fora da sua sociedade; mas a notícia espalhou-se e a lenda diz que
Pitágoras afogou um membro que divulgou ao mundo o segredo da existência dos
estranhos números irracionais.
Pitágoras morreu por volta de 500 a.c. e não deixou nenhum
registro acerca do seu trabalho. O centro de Crotona foi destruído por um grupo
rival político, sendo a maioria dos seus membros morta, e os restantes
dispersaram-se pelo mundo grego levando a sua filosofia e o misticismo dos
números.
A escola de Pitágoras que era aristocrática, chegou a tentar
também uma ação política e com isso excitou a malevolência dos profanos; por
ocasião de uma revolta popular, a casa de Mílon foi incendiada e Pitágoras
refugiou-se em Tarento, onde pouco depois foi assassinado durante outra
revolta. Um grupo exaltado cercou a casa em que se achava Pitágoras e
incendiou-a. O filósofo, sua esposa e alguns discípulos pereceram nesse
incêndio (Cf. BELL, G.,30).
Pitágoras, a quem a geometria deve este caráter rigoroso de
dedução que a distingue ainda hoje, conhecia e ensinava ao que parece tudo o
que, em substância, encerram os dois primeiros livros dos Elementos de
Euclides. Acreditava que a ciência dos números encerrava o fundamento da teoria
do Universo e chegava a atribuir propriedades sobrenaturais aos números e
figuras geométricas.
Os pitagóricos dividiam os assuntos matemáticos em quatro
secções:
1) Os números absolutos ou a Aritmética;
2) Os números aplicados ou a Música;
3) As grandezas no estado de repouso ou a geometria;
4) As grandezas em movimento ou a Astronomia.
Esse quadrivium foi
durante muito tempo considerado como constituindo
um curso mínimo para uma instrução liberal.
O
PENTAGRAMA
Desde os primórdios da humanidade, o ser humano sempre se sentiu
envolto por forças superiores e trocas energéticas que nem sempre soube
identificar. Sujeito a perigos e riscos, teve a necessidade de captar forças
benéficas para se proteger de seus inimigos e das vibrações maléficas.
Foi em busca de imagens, objetos, e criou símbolos para poder
entrar em sintonia com energias superiores e ir ao encontro de alguma forma de
proteção. Dentro destes inúmeros símbolos criados pelo homem, se destaca o pentagrama, que evoca uma simbologia
múltipla, sempre fundamentada no número 5, que exprime a união dos desiguais.
As cinco pontas do pentagrama põem em acordo, numa união
fecunda, o 3, que significa o principio masculino, e o 2, que corresponde ao
princípio feminino. Ele simboliza, então, o andrógino. O pentagrama sempre
esteve associado com o mistério e a magia. Ele é a forma mais simples de
estrela, que deve ser traçada com uma única linha, sendo consequentemente
chamado de "Laço Infinito".
A potência e associações do pentagrama evoluíram ao longo da
história. Hoje é um símbolo omnipresente entre os neo-pagãos, com muita profundidade
mágica e grande significado simbólico. Um de seus mais antigos usos se encontra
na Mesopotâmia, onde a figura do pentagrama aparecia em inscrições reais e
simbolizava o poder imperial que se estendia "aos quatro cantos do
mundo".
Entre os Hebreus, o símbolo foi designado como a Verdade, para
os cinco livros do Pentateuco (os cinco livros do Velho Testamento, atribuídos
a Moisés). Às vezes é incorretamente chamado de "Selo de Salomão",
sendo, entretanto, usado em paralelo com o Hexagrama.
Pitágoras, filósofo e matemático grego, grande místico e
moralista, iniciado nos grandes mistérios, percorreu o mundo nas suas viagens
e, em decorrência, se encontram possíveis explicações para a presença do
pentagrama, no Egito, na Caldéia e nas terras ao redor da Índia.
A geometria do pentagrama e suas associações metafísicas foram
exploradas pelos pitagóricos, que o consideravam um emblema de perfeição. A geometria do
pentagrama ficou conhecida como "A
Proporção Dourada", que ao longo da arte pós-helênica, pôde ser
observada nos projetos de alguns templos.
- Para os agnósticos, era o pentagrama a "Estrela Ardente" e, como a Lua
crescente, um símbolo relacionado à magia e aos mistérios do céu noturno;
- Para os druidas, era um símbolo divino;
- No Egito, era o símbolo do útero da terra, guardando uma
relação simbólica com o conceito da forma da pirâmide.
- Para os celtas pagãos atribuíam o símbolo do pentagrama à
Deusa Morrigan;
- Os primeiros cristãos relacionavam o pentagrama às cinco
chagas de Cristo e, desde então, até os tempos medievais, era um símbolo
cristão.
Antes da Inquisição não havia nenhuma associação maligna ao
pentagrama; pelo contrário, era a representação da verdade implícita, do
misticismo religioso e do trabalho do Criador.
O imperador Constantino I, depois de ganhar a ajuda da Igreja
Cristã na posse militar e religiosa do Império Romano em 312 d.C., usou o
pentagrama junto com o símbolo de chi-rho (uma forma simbólica da cruz), como
seu selo e amuleto.
Tanto na celebração anual da Epifânia, que comemora a visita dos
três Reis Magos ao menino Jesus, assim como também a missão da Igreja de levar
a verdade aos gentios, tiveram como símbolo o pentagrama, embora em tempos mais
recentes este símbolo tenha sido mudado, como reação ao uso neo-pagão do
pentagrama.
Durante a purgação das bruxas, outro deus cornudo, como Pan,
chegou a ser comparado com o diabo (um conceito cristão) e o pentagrama -
popular símbolo de segurança - pela primeira vez na história, foi associado ao
mal e chamado "Pé da Bruxa".
VERSOS
DOURADOS DOS PITAGÓRICOS
PREPARAÇÃO
Presta a Deus imortal o culto consagrado;
Conserva a tua fé; dos vultos do passado,
Ou santos ou heróis, louva a divina ação.
PURIFICAÇÃO
Sê
bom filho e bom pai; sê justo como irmão;
Amável
como esposo; escolhe como amigo
Aquele
que tiver luz para repartir contigo
E
dê conselhos bons que o porte não desminta.
Se
o fogo das paixões for cinza nele extinta,
Imita
o seu exemplo, escuta o seu conselho,
Sê
tu, para o refletir, um voluntário espelho;
Jamais
te afastes dele por fútil discrepância;
Enjaula
dentro em ti a fera da arrogância.
Sê
sóbrio, ativo e casto: evita a irritação;
À
raiva fecha a alma, ao ódio o coração.
Em
público ou privado o mal jamais pratiques;
A
quem te der lições escuta e não critiques;
Respeita-te
a ti próprio, o sábio verdadeiro
Nada
diz, nada faz sem refletir primeiro.
Sê
justo. As más ações são catacumbas frias
Para
sepultar, na morte, os bens e as honrarias;
Toda
a riqueza é vã se foi contra um dever,
O
fácil de ganhar, é fácil de perder.
O
cálice da amargura imposto pela sorte
Aceita-o
resignado, ele te fará mais forte.
Em
mil fiéis ao erro, um só busca a verdade,
Mas
Deus protege o sábio e livra-o da maldade.
O
filósofo aprova ou condena sem tédio
E
onde encontrar o erro incapaz de remédio,
Afasta-te
e espera. "Afasta-te e espera!"
Grava
bem esta lei, medita-a, considera
Quanta
inútil pendência ela pode evitar-te.
Com
todos sê cortês, sê nobre em toda a parte,
Não
dês exemplos maus nem os sigas tampouco;
Agir
sem fim nem causa é proceder de louco.
Olhos
e ouvidos cerra a todo o preconceito.
A
todo o fanatismo ou julgamento feito
Preconcebidamente
e só por teimosia;
Seja
tua e só tua a razão que te guia.
Não
pretendas fazer o que a tua ignorância
Não
permitir; o tempo, a atenção e a constância
Hão
de trazer-te um dia o poder que te falta.
Aprender
a Servir, eis a ambição mais alta
Que
deve nortear a tua vida inteira.
Cuida
bem do teu corpo; o trabalho aligeira
Quando
ele se queixar, mas não lhe satisfaças
Apetites
boçais; as dores e as desgraças
Começam
quando o corpo ordena mais que a alma;
Se
o serves uma vez, já nunca mais se acalma.
Do
luxo ou da avareza os males são iguais,
Diferentes
na aparência, irmãos em tudo o mais.
Procura
encontrar sempre o justo médio termo,
Pois
nenhum corpo é são estando o mental enfermo
Formula,
ao despertar, o teu programa honesto
E
nunca para amanhã deixes ficar um resto.
PERFEIÇÃO
Antes
de adormecer repassa no mental
As
ações que fizeste ou para bem ou para mal.
Não
repitas as más, insiste só nas boas,
Estende
a compaixão aos brutos e às pessoas;
A
cada novo esforço, a cada prova rude,
Acenderás
em ti a luz duma virtude.
Assim
sublimarás a Tétrada Sagrada,
A
tua quaternária e cósmica morada,
Alma,
espírito e corpo – um embrião de Deus.
Procura
com fervor abrir os olhos teus
À
luz que vem do Olimpo; o teu esforço é vão,
Se
o céu te não cobrir da sua proteção;
Só
ele pode acabar as obras que começas
E
dar-te, para o bem, o auxílio que lhe peças.
Estuda
a natureza, aprende a lei sublime
Que
rege a imensidade e que à matéria imprime
A
vida universal. Perante estudos sérios,
Abrem-se
pouco a pouco as portas dos Mistérios.
Então
descobrirás a luz do teu destino
Que,
por divino amor do nosso Pai Divino,
É
vir colaborar no plano do Universo,
Com
Deuses de que tu és "Uno", mas diverso.
Então
desprezarás todo o desejo fútil;
Verás
que o sofrimento é criação inútil
Dos
erros e do vício e da maldade crua
Da
torva insensatez dos outros e da tua,
O
homem vive e morre a procurar um bem,
Sem
nunca reparar nos bens que em si contém.
Quem
não souber ser bom não sabe ser feliz,
É
náufrago num mar de praias sempre hostis;
E
entre o fraguedo atroz que a riba lhe apresenta,
Não
pode resistir nem ceder à tormenta.
Porque
não descobriu que transporta consigo
Um
farol para o guiar a salvamento e abrigo.
Por
entre os vendavais dessa jornada ignota,
Tem
cada qual de abrir a sua própria rota.
Uma
estirpe divina impõe à humanidade
Buscar
no mar do erro o porto da Verdade;
A
natureza ajuda o homem no caminho,
Nunca
o desamparou, nunca o deixou sozinho.
Homem
sábio, homem bom, tu que já penetraste
Os
mistérios da vida e mediste o contraste
Entre
o Bem e o mal, concentra-te um momento
E
medita que deus, ao dar-te o Pensamento
E
muitos outros dons que reflete os Seus,
Fêz-te
um Ser Imortal, porque és tu próprio um deus.
Autor:
Anônimo (Atribuído a Pitágoras)
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