sexta-feira, 22 de março de 2013

Pitágoras (Cerca de 600 a.C.)



A Evolução Espiritual da Humanidade
(O Influxo Divino e A Pluralidade das Existências)



PITÁGORAS
(Filósofo Reformador)
(Cerca de 600 a 580 a.C. - Grécia)  




"Deus extraiu a Terra do nada,
assim como extraiu o Um do nada
para criar a multiplicidade"
Pitágoras, Filósofo e Matemático.







Os Mistérios de Delfos


“Conhece-te a ti mesmo – e conhecerás o Universo e os Deuses.”
Inscrição do templo de Delfos


O Sono, o Sonho e o Êxtase são as três portas para o Além, de onde nos vêm à ciência da alma e a arte da adivinhação.

A Evolução é a lei da Vida.
O Número é a lei do Universo.
A Unidade é a lei de Deus.






Parte I

A GRÉCIA NO SÉCULO VI

A alma de Orfeu atravessara como um divino meteoro o céu tempestuoso da Grécia nascente. Com o seu desaparecimento, as trevas
a invadiram de novo. Após uma série de revoluções, os tiranos da Trácia queimaram seus livros, derrubaram seus templos, expulsaram seus discípulos. Os reis gregos e muitas cidades, mais preocupados com a liberdade desenfreada do que com a justiça que decorre das puras doutrinas, imitaram-nos. Quiseram apagar a lembrança do profeta, destruir seus últimos vestígios, e o fizeram tão bem que, alguns séculos
depois de sua morte, uma parte da Grécia duvidava de sua existência.

Em vão os iniciados conservaram sua tradição durante mais de mil anos.

Em vão Pitágoras e Platão falavam dele como de um homem divino. Os sofistas e os retóricos não viam nele mais do que uma lenda sobre a origem da Música. Ainda hoje os estudiosos negam decididamente a existência de Orfeu. Apoiam-se principalmente no fato de que nem Homero nem Hesíodo mencionam seu nome. Mas o silêncio desses poetas se explica, amplamente, pela proibição a que os governos locais submeteram o nome do grande iniciador. Os discípulos de Orfeu não perdiam ocasião de atribuir todos os poderes à autoridade suprema do Templo de Delfos e não cessavam de repetir que era preciso submeter as desavenças entre os diversos Estados da Grécia ao conselho dos Anfictiões. Isto incomodava tanto os demagogos quanto os tiranos.

Homero, que provavelmente recebeu sua iniciação no santuário de Tir, e cuja mitologia é a tradução poética da teologia de Sanconiaton, Homero, o jônio, pôde muito bem ignorar Orfeu, o dórico, cuja tradição se mantinha tanto mais secreta quanto mais era perseguida. Quanto a Hesíodo, nascido perto de Parnaso, deve ter conhecido seu nome e sua doutrina através do santuário de Delfos. Mas seus iniciadores impuseram-lhe silêncio, e com razão.

Orfeu, porém, vivia em sua obra. Vivia em seus discípulos e naqueles mesmos que o negavam. Essa obra, qual seria? Essa alma viva, onde procurá-la? Seria na oligarquia militar e feroz de Esparta, onde a ciência é desprezada, a ignorância erigida em sistema, a brutalidade exigida como um complemento da coragem? Seria nas implacáveis guerras de Messênia, onde os espartanos perseguiram um povo vizinho até seu completo extermínio, ou os romanos da Grécia se prepararam na rocha tarpéia e nos lauréis sangrentos do Capitólio, precipitando num abismo o heróico Aristomeno, defensor de sua pátria? Ou seria talvez na democracia turbulenta de Atenas, sempre pronta a sucumbir na tirania?

Seria na guarda pretoriana de Psístrato ou no punhal de Harmônio e de
Aristógito, escondido sob um ramo de mirta? Seria nas inúmeras cidades da Hélade, da Magna Grécia e da Ásia Menor, das quais Atenas e Esparta oferecem dois exemplos opostos? Seria em todas aquelas democracias e aquelas tiranias invejosas, ciumentas e sempre prestes a
se entredevorarem? Não. A alma da Grécia não está aí. Ela está em seus
templos, em seus mistérios e em seus iniciados. Ela está no santuário de Júpiter em Olímpia, de Juno em Argos, de Ceres em Elêusis. Ela reina em Atenas com Minerva, ela resplandece em Delfos com Apolo, que domina e invade todos os templos com sua luz. Eis o centro da vida
helênica, o cérebro e o coração da Grécia. Aí vão instruir-se os poetas que traduzem à multidão as verdades sublimes em imagens vívidas, os sábios que as propagam em dialética sutil.

O espírito de Orfeu circula por toda a parte onde palpita a Grécia imortal. Nós o encontramos nas competições de poesia e ginástica, nos jogos de Delfos e Olímpia, instituições felizes imaginadas pelos sucessores do mestre para reaproximar e fundir as doze tribos gregas.

Nós o tocamos com o dedo no tribunal dos Anfictiões, nesta assembleia dos grandes iniciados, corte suprema e arbitral, que se reunia em Delfos, grande poder de justiça e de concórdia, o único onde a Grécia encontrou sua unidade, nas horas de heroísmo e de abnegação (1).

(1). O juramento anfictiônico dos povos associados dá a idéia da grandeza e da força social dessa instituição: “Juramos jamais destruir as cidades anfictiônicas, jamais desviar, seja durante a paz, seja durante a guerra, as fontes necessárias às suas necessidades. Se alguma potência ousar empreendê-lo, marcharemos contra ela e destruiremos suas cidades. Se os ímpios roubarem as oferendas do templo de Apolo, juramos empregar nossos pés, nossos braços, nossa voz, todas as nossas forças, contra eles e seus cúmplices.”

Entretanto, a Grécia de Orfeu, que tinha como intelecto uma pura doutrina guardada nos templos, como alma uma religião plástica e como corpo uma elevada corte de justiça centralizada em Delfos, essa Grécia começara a periclitar desde o sétimo século. As ordens de Delfos não eram mais respeitadas. Violavam-se os territórios sagrados. Isso porque a raça dos grandes inspirados havia desaparecido. O nível intelectual e moral dos templos decaíra. Os sacerdotes se vendiam aos poderes políticos. Os próprios Mistérios começaram a se corromper. O aspecto geral da Grécia havia mudado. À antiga realeza sacerdotal e agrícola sucediam, aqui, a tirania pura e simples, ali, a aristocracia militar, lá ainda, a democracia anárquica. Os templos tornaram-se impotentes para prevenir a dissolução ameaçadora. Necessitavam de uma ajuda nova.

Uma vulgarização das doutrinas esotéricas fazia-se necessária. Para que o pensamento de Orfeu pudesse viver e se propagar com todo brilho, era preciso que a ciência dos templos passasse às ordens laicas. Ela se insinuou, pois, sob diversos disfarces, na mente dos legisladores civis, nas escolas dos poetas, sob o pórtico dos filósofos. Estes sentiram, em seu ensinamento, a mesma necessidade que Orfeu havia reconhecido para a religião, a necessidade de duas doutrinas: uma pública, outra secreta, que expusessem a mesma verdade, sob medidas e formas diferentes, próprias ao desenvolvimento de seus alunos. Esta evolução deu à Grécia seus três grandes séculos de criação artística e esplendor intelectual. Ela permitiu ao pensamento órfico, que é ao mesmo tempo o impulso primeiro e a síntese ideal da Grécia, concentrar toda sua luz e se irradiar por todo o mundo, antes que seu edifício político, minado pelas dissensões internas, fosse abalado pelos golpes da Macedônia, para desmoronar, enfim, sob o punho férreo de Roma.

A evolução de que falamos teve muitos obreiros. Ela suscitou físicos como Tales, legisladores como Sólon, poetas como Píndaro, heróis como Epaminondas. Mas teve um chefe reconhecido como tal, um iniciado de primeira ordem, uma inteligência soberana, criadora e ordenadora: Pitágoras. Ele é o mestre da Grécia laica, como Orfeu é o mestre da Grécia sacerdotal. Ele traduz e continua o pensamento religioso de seu predecessor, aplicando-o aos novos tempos. Essa tradução, porém, é uma criação, visto que ele coordena as inspirações órficas em um sistema completo; fornece delas a prova científica em seu ensino e a prova moral em seu instituto de educação, na ordem pitagórica que a ele sobrevive.

Embora apareça em plena luz da História, Pitágoras permaneceu sempre um personagem quase legendário. A principal razão disto está na perseguição obstinada de que foi vítima na Sicília e que custou a vida a tantos pitagóricos. Uns pereceram sob os escombros de sua escola incendiada, outros morreram de fome num templo. A lembrança e a doutrina do mestre somente se perpetuaram por meio de alguns sobreviventes que conseguiram fugir para a Grécia. Platão, com dificuldade e por um alto preço, obteve por intermédio de Arquitas um manuscrito do mestre, que, aliás, escrevera toda sua doutrina com sinais secretos e de forma simbólica. Sua verdadeira ação, como a de todos os reformadores, se exercia pelo ensinamento oral. Mas a essência do sistema consiste nos Versos Dourados de Ísis, no comentário de Hiérocles, nos fragmentos de Filolaus e de Arquitas, assim como no Timeu de Platão, que contém a cosmogonia de Pitágoras. Enfim, os escritores da Antigüidade estão repletos do filósofo de Crotona. São inesgotáveis; as historietas que pintam sua sabedoria, sua beleza e seu poder maravilhoso sobre os homens. Os neoplatônicos de Alexandria, os gnósticos, e até os primeiros Padres da Igreja citam-no como uma autoridade. São preciosas testemunhas, nas quais vibra sempre a poderosa onda de entusiasmo que a grande personalidade de Pitágoras soube comunicar à Grécia, e cujos derradeiros ecos são ainda perceptíveis oito séculos após sua morte.

Vista do alto, aberta com as chaves do esoterismo comparado, sua doutrina apresenta um magnífico conjunto, um todo solidário cujas partes estão ligadas por uma concepção fundamental. Encontramos nela uma reprodução racional da doutrina esotérica da Índia e do Egito, à qual deu a clareza e a simplicidade helênicas, acrescentando-lhes um sentimento mais enérgico, uma idéia mais nítida da liberdade humana.

Na mesma época e em diversos pontos do globo, grandes reformadores divulgavam doutrinas análogas. Lao-Tsé saía, na China, do esoterismo de Fo-Hi. O último Buda, Sáquia-Muni, pregava às margens do Ganges. Na Itália, o sacerdócio etrusco enviava a Roma um iniciado munido dos livros sibilinos, o rei Numa, que tentou refrear, por meio de sábias instituições, a ameaçadora ambição do Senado romano.

E não foi por acaso que esses reformadores apareceram ao mesmo tempo entre povos tão diversos. Suas diferentes missões concorrem para um objetivo comum. Elas provam que em certas épocas uma mesma corrente espiritual atravessa misteriosamente toda a humanidade. De onde vem essa corrente? Do mundo divino que está fora de nossa vista, mas do qual os gênios e os profetas são os enviados e as testemunhas.

Pitágoras atravessou todo o mundo antigo antes de revelar sua palavra à Grécia. Ele conheceu a África e a Ásia, Mênfis e Babilônia, sua política e iniciação. Sua vida agitada assemelha-se a uma nave lançada em plena tempestade. Soltas as velas, ela demanda o porto, sem se desviar da rota, imagem da calma e da força no meio dos elementos desencadeados. Sua doutrina é como uma noite fresca que sucede ao ardor intenso de um dia sangrento. Ela evoca a beleza do firmamento que pouco a pouco desenrola seus arquipélagos cintilantes e suas harmonias etéreas sobre a cabeça daquele que vê.

Tentemos separar uma e outra das obscuridades da lenda e dos preconceitos da escola.
 

 


Parte II

OS ANOS DE VIAGEM

No começo do sexto século antes de nossa era, Samos era uma das ilhas mais florescentes da Jônia. A enseada de seu porto abria-se diante
das montanhas cor de violeta da quente Ásia Menor, de onde vinham todos os luxos e todas as seduções. Numa larga baía, a cidade se estendia sobre a margem verdejante e se dispunha em anfiteatro sobre a montanha, ao pé de um promontório coroado pelo templo de Netuno.

As colunatas de um palácio magnífico sobressaíam.

Ali reinava o tirano Polícrates. Este, depois de ter privado Samos de suas liberdades, dera-lhe o brilho das artes e de um esplendor asiático. Hetaíras de Lesbos, chamadas por ele, tinham-se estabelecido em um palácio vizinho ao seu e convidavam os jovens da cidade para festas, onde elas lhes ensinavam as volúpias mais refinadas, temperadas com música, danças e festins. Anacreonte, chamado por Polícrates a Samos, para lá se dirigiu sobre um trirreme com velas cor de púrpura e mastros dourados. E o poeta, com uma taça de prata cinzelada a mão, fez ouvir diante desta alta corte do prazer suas odes acariciantes e perfumadas como uma chuva de rosas.

A sorte de Polícrates tornara-se proverbial em toda a Grécia. Ele era amigo do faraó Amasis, que várias vezes o advertira que desconfiasse de uma felicidade tão constante e que, sobretudo, dela não se gabasse. Polícrates respondeu ao aviso do monarca egípcio, atirando seu anel ao mar e dizendo: “Faço este sacrifício aos Deuses”. No dia seguinte, um pescador levou ao tirano o anel precioso que encontrara no ventre de um peixe. Quando o faraó soube disto, declarou que rompia sua amizade com Polícrates, porque uma felicidade tão insolente atrair-lhe-ia a vingança dos Deuses.

Seja qual for a veracidade desta historieta, o certo é que o fim de Polícrates foi trágico. Um de seus sátrapas o atraiu a uma província vizinha, mandou matá-lo sob terríveis tormentos e ordenou que pregassem seu corpo numa cruz, no monte Micala. Assim os sâmios puderam ver, em um sangrento pôr-de-sol, o cadáver de seu tirano crucificado num promontório, diante da ilha onde ele reinara na glória e
nos prazeres.

Mas voltemos ao princípio do reinado de Polícrates. Em noite clara, um jovem estava sentado numa floresta de agnus-cactus de folhas luzidias, não longe do templo de Juno, cuja fachada dórica a lua cheia banhava e cuja mística majestade fazia ressaltar. Há muito tempo um rolo de papiro, contendo um canto de Homero, estendia-se a seus pés.

Sua meditação, iniciada no crepúsculo, durava ainda e se prolongava no silêncio da noite. Há muito tempo o sol se pusera, mas seu disco chamejante flutuava ainda diante do olhar do jovem sonhador como algo irreal. Seu pensamento vagava longe do mundo invisível.

Pitágoras era filho de um rico joalheiro de Samos e de uma mulher chamada Partênis. A Pítia de Delfos, consultada durante uma viagem, pelos jovens recém-casados, prometera-lhes “um filho que seria útil a todos os homens, em todos os tempos”, e o oráculo enviara os esposos a Sidon, na Fenícia, para que o filho predestinado fosse concebido, gerado e nascido longe das influências perturbadoras de sua pátria. Antes mesmo de seu nascimento, a criança maravilhosa fora dedicada por seus pais à luz de Apolo, na lua do amor.

O menino nasceu; quando completou um ano, sua mãe, atendendo ao conselho dos sacerdotes de Delfos, levou-o ao templo de Adonai, num vale do Líbano. Lá, o pontífice o abençoou. Depois a família voltou a Samos. O filho de Partênis era muito bonito, meigo, moderado, pleno de senso de justiça. Somente a paixão intelectual brilhava em seus olhos e imprimia aos seus atos uma energia secreta. Longe de contrariá-lo, seus pais encorajavam sua inclinação precoce para o estudo da sabedoria. Assim, ele pôde livremente conferenciar com os sacerdotes de Samos e com os sábios que começavam a fundar, na Jônia, escolas onde ensinavam os princípios da Física. Aos dezoito anos, recebia as lições de Hermodamas, de Samos; aos vinte, as de Ferecides, em Siro. E já conferenciara com Tales e Anaximandro, em Mileto. Estes mestres tinham-lhe aberto novos horizontes, mas nenhum satisfizera. Entre seus ensinamentos contraditórios ele procurava interiormente o liame, a síntese, a unidade do grande Todo. O filho de Partênis chegara, então, a uma dessas crises em que o espírito, superexcitado pela contradição das coisas, concentra todas as suas faculdades num esforço supremo para entrever o objetivo, para encontrar o caminho que leva ao sol da verdade, ao centro da vida.

Naquela noite quente e esplêndida, o filho de Partênis contemplava alternadamente a terra, o templo e o céu estrelado. Ela estava lá, sob seus pés, ao redor dele: Deméter, a terra-mãe, a Natureza que ele queria penetrar. Ele respirava suas emanações poderosas, sentia a invencível atração que o acorrentava ao seu seio, ele, o átomo pensante, como uma parte inseparável dela. Os sábios que ele consultara tinham-lhe dito: “É dela que tudo se origina. Nada vem do nada. A alma vem da água ou do fogo, ou dos dois. Sutil emanação dos elementos, ela deles escapa apenas para a eles voltar. Resigna-te à sua lei fatal. Teu único mérito será o de conhecê-la e a ela te submeteres”.

Depois, ele contemplava o firmamento e as letras de fogo que as constelações formam na profundeza insondável do espaço. Aquelas letras deviam ter um significado. Pois se infinitamente pequeno o movimento dos átomos, tem sua razão de ser, como o infinitamente grande, a dispersão dos astros, cujo agrupamento representa o corpo do
Universo não o teria também? Sim! Cada um desses mundos tem sua lei própria, e todos juntos se movem conforme um Número e em harmonia suprema. Mas quem algum dia decifrará o alfabeto das estrelas? Os sacerdotes de Juno tinham-lhe dito: “Foi o céu dos Deuses que existiu antes da Terra. Tua alma vem de lá. Orai para que ela volte para lá”.

Esta meditação foi interrompida por um canto voluptuoso, que saía de um jardim às margens do Imbrasus. As vozes lascivas das lésbicas harmonizavam-se langorosamente com os sons da cítara.

Alguns jovens respondiam entoando árias báquicas. A estas vozes se misturaram, de repente, outros gritos penetrantes e lúgubres, que partiam do porto. Eram rebeldes que Polícrates mandava embarcar para
vender como escravos na Ásia. Açoitavam-nos com correias cheias de pregos, para amontoá-los sob os pontões dos remadores. Seus urros e blasfêmias se perderam na noite. Depois, tudo voltou ao silêncio.

O jovem sentiu um estremecimento doloroso, que reprimiu para se recolher em si mesmo. O problema estava diante dele mais pungente, mais agudo. A Terra dizia: Fatalidade! O Céu dizia: Providência! E a Humanidade, que flutua entre os dois, respondia: Loucura! Dor! Escravidão! Mas, no fundo de si mesmo, o futuro adepto ouvia uma voz
irrefutável que respondia às cadeias da Terra e aos clarões do céu com este grito: Liberdade!

Quem, pois, teria razão? Os sacerdotes, os sábios, os loucos, os infelizes ou ele mesmo? Todas aquelas vozes diziam a verdade, cada uma delas triunfava em sua esfera, mas nenhuma lhe revelava sua razão de ser. Os três mundos existiam imutáveis, como o seio de Deméter, como a luz dos astros e como o coração humano. Mas somente aquele que soubesse encontrar sua harmonia e a lei de seu equilíbrio seria um verdadeiro sábio, somente ele possuiria a ciência divina e poderia auxiliar os homens. Na síntese dos três mundos está o segredo do Cosmos.

Ao pronunciar esta palavra – que acabara de encontrar –, Pitágoras se ergueu. Seu olhar fascinado fixou-se na fachada dórica do templo. O severo edifício parecia transfigurado sob os castos raios de Diana. Ele acreditou ver ali a imagem ideal do mundo e a procurada solução do problema. Pois, a base, as colunatas, a arquitrave e o frontão triangular significam para ele, subitamente, a tríplice natureza do homem e do Universo, do microcosmo e do macrocosmo coroado pela unidade divina, que é, ela própria, uma trindade. O Cosmos, dominado e penetrado por Deus, formava:

A Tétrada sagrada, imenso e puro símbolo, Fonte da Natureza e modelo dos Deuses (1).

(1). Versos dourados de Pitágoras, tradução de Fabre d'Olivet.



A Tetraktys ou Tétrade era, segundo seus ensinamentos, o Quatro Sagrado e tem o mesmo sentido do Tetragramaton, o Nome Divino IHVH . Sua representação é a própria Unidade, apresentada sob quatro aspectos diferentes, em cujo contexto encontramos o binário, o ternário, o quaternário e a Década, que simboliza a perfeição.




Sim, ela estava lá, oculta naquelas linhas geométricas: a chave do Universo, a ciência dos números, a lei ternária que rege a constituição dos seres, a do setenário que preside à sua evolução. E, numa visão grandiosa, Pitágoras viu os mundos se moverem segundo o ritmo e a harmonia dos números sagrados. Viu o equilíbrio da Terra e do céu, mantido pela liberdade humana. Os três mundos, natural, humano e divino, se sustentam, determinando-se reciprocamente e representando o drama universal por meio de um duplo movimento, descendente e ascendente. Ele adivinhou as esferas do mundo invisível envolvendo o visível e animando-o sem cessar. Concebeu, enfim, a purificação e a liberação do homem, já nesta Terra, pela tríplice iniciação. Viu tudo isto, sua vida e sua obra, numa iluminação instantânea e clara, com a certeza irrecusável do espírito que se sente diante da Verdade. Foi um relâmpago.

Tratava-se, agora, de provar pela Razão o que sua pura Inteligência havia apreendido no Absoluto. E para isto era preciso uma vida de Homem, um trabalho de Hércules.

Mas, onde encontrar a ciência necessária para levar a bom termo semelhante labor? Nem os cantos de Homero, nem os sábios da Jônia, nem os templos da Grécia seriam suficientes.

O espírito de Pitágoras, que logo encontrara asas, mergulhou em seu passado, em seu nascimento envolto em véus e no misterioso amor de sua mãe. Uma lembrança da infância voltou-lhe com uma precisão incisiva. Recordou-se de que sua mãe o levara, com a idade de um ano, a um vale do Líbano, ao templo de Adonai. Ele se reviu muito criança, nos braços de Partênis, no meio de montanhas colossais, de florestas imensas, onde um rio caía em catarata. Ela estava de pé, num terraço à
sombra de grandes cedros. Diante dela, um sacerdote majestoso, de barba branca, sorria para eles, pronunciando palavras graves que ele não compreendia. Depois, várias vezes a mãe repetira-lhe aquelas palavras do hierofante de Adonai: “Mulher de Jônia, teu filho será grande pela sabedoria; mas lembra-te que, se os gregos possuem ainda a ciência dos Deuses, a ciência de Deus só se encontra no Egito”.

Aquelas palavras voltavam-lhe agora, juntamente com o sorriso materno, a bela fisionomia do ancião e o estrépito distante da catarata, dominado pela voz do sacerdote, em uma paisagem grandiosa como o sonho de outra vida. Pela primeira vez ele adivinhava o significado do oráculo. Muito ouvira sobre o saber prodigioso dos sacerdotes egípcios, e seus formidáveis mistérios; mas acreditara poder abster-se deles.

Agora, entretanto, compreendia que era necessária aquela “ciência de Deus” para penetrar a fundo na natureza, e que só a encontraria nos templos do Egito. E foi a doce Partênis, com seu instinto de mãe, que o preparara para essa obra, e o levara como uma oferenda ao Deus soberano!

Nesse instante tomou a decisão de ir ao Egito e lá receber a iniciação. Polícrates se gabava de proteger os filósofos tanto quanto os poetas. Apressou-se a dar a Pitágoras uma carta de recomendação para o faraó Amasis, que o apresentou aos sacerdotes de Mênfis. Estes só o receberam a contragosto e depois de muitas dificuldades. Os sábios egípcios desconfiavam dos gregos, que tachavam de levianos e inconstantes. Tudo fizeram para desencorajar o jovem de Samos.

Contudo, o noviço se submeteu com uma paciência e uma coragem inquebrantáveis às demoras e às provas que lhe impuseram. Ele sabia, por antecipação, que somente chegaria ao conhecimento pelo total domínio da vontade em todo o seu ser. Sua iniciação durou vinte e dois
anos, sob o pontificado do grande sacerdote de Sonchis. Já narramos, no livro de Hermes, as provas, as tentações, os pavores e os êxtases do iniciado de Ísis, até a morte aparente e cataléptica do adepto e sua ressurreição na luz de Osíris. Pitágoras atravessou todas as fases que permitiam realizar, não como uma vã teoria, mas como um elemento vivo, a doutrina do Verbo-Luz ou da Palavra universal e da evolução humana através dos sete ciclos planetários. A cada passo daquela vertiginosa ascensão as provas se repetiam sempre mais terríveis. Ali, cem vezes correu risco de vida, sobretudo quando queriam levá-lo ao manejo das forças ocultas, à perigosa prática da magia e da teurgia.

Como todos os grandes homens, Pitágoras tinha fé em sua estrela. Nada
que pudesse conduzi-lo à ciência o desanimava, e o medo da morte não o detinha, porque queria a vida do Além.

Quando os sacerdotes egípcios reconheceram nele uma força de alma extraordinária e aquela paixão impessoal pela sabedoria, que é a coisa mais rara no mundo, abriram-lhe os tesouros de sua experiência.

Foi entre eles que Pitágoras se formou e adquiriu sua têmpera. Foi lá que pôde se aprofundar na matemática sagrada, a ciência dos números ou dos princípios universais, da qual ele fez o centro de seu sistema, formulando-a de uma maneira nova. A severidade da disciplina egípcia nos templos fê-lo conhecer, por outro lado, a força prodigiosa da vontade humana sabiamente exercida e treinada, suas aplicações infinitas tanto no corpo quanto na alma. “A ciência dos números e a arte da vontade são as duas chaves da magia”, diziam os sacerdotes de Mênfis; “elas abrem todas as portas do Universo”. Foi, pois, no Egito, que Pitágoras adquiriu a visão elevada que permite perceber as esferas da vida e as ciências em uma ordem concêntrica, compreender a involução do espírito na matéria pela criação universal e sua evolução ou subida para a unidade por aquela criação individual que se chama o
desenvolvimento de uma consciência.

Pitágoras atingira o ápice do sacerdócio egípcio e sonhava, talvez, em voltar à Grécia, quando foi desencadeada a guerra na bacia do Nilo, com todos os seus flagelos e arrastou o iniciado de Osíris em um novo turbilhão. Há muito tempo os déspotas da Ásia tramavam a derrota do Egito. Durante séculos, seus repetidos ataques haviam fracassado diante da sabedoria das instituições egípcias, diante da força do sacerdócio e da energia dos faraós. Mas o imemorial. reino, asilo da ciência de Hermes, não devia durar eternamente. O filho do vencedor da Babilônia, Cambises, abateu-se sobre o Egito com seus exércitos inumeráveis e famintos como nuvens de gafanhotos, e pôs fim à instituição do faraonato, cuja origem se perdia na noite dos tempos. Aos olhos dos sábios era uma catástrofe, para o mundo inteiro. Até então, o Egito defendera a Europa da Ásia. Sua influência protetora se estendia ainda sobre toda a bacia do Mediterrâneo, sobre templos da Fenícia, da Grécia e da Etrúria, com os quais o alto sacerdócio egípcio mantinha relações constantes. Uma vez desmoronado esse baluarte, o Touro iria precipitarse, de cabeça baixa, sobre as margens do mundo helênico.

Pitágoras viu, pois, Cambises invadir o Egito. Viu o déspota persa, digno herdeiro das celeradas coroas de Nínive e Babilônia, saquear os templos de Mênfis e de Tebas e destruir o de Âmon. Viu o faraó Psamenit acorrentado e conduzido diante de Cambises, colocado numa colina, ao redor da qual foram enfileirados os sacerdotes, as principais famílias e a corte do rei. Viu a filha do faraó, vestida de farrapos e acompanhada de todas as suas damas de honra, nos mesmos trajes, e dois mil jovens ameaçados, com o cabresto ao pescoço, antes de serem decapitados. Viu o faraó Psamenit reprimindo seus soluços diante desta cena horrorosa; e o infame Cambises, sentado no trono, se divertia com a dor de seu adversário abatido.



Cruel, mas instrutiva lição da História, depois das lições da Ciência! Que imagem da natureza animal desencadeada no homem, resultando neste monstro de despotismo, que esmaga tudo e impõe à humanidade o reinado do mais implacável destino por sua hedionda apoteose!

Cambises mandou Pitágoras à Babilônia, com uma parte do sacerdócio egípcio e ali o manteve confinado (2). Aquela cidade colossal, que Aristóteles compara a um país cercado de muros, oferecia então um imenso campo de observação. A antiga Babel, a grande prostituta dos profetas hebreus, era mais do que nunca, após a conquista persa, um pandemônio de povos, idiomas, cultos e religiões, em cujo seio o despotismo asiático erigia sua torre vertiginosa. Segundo as tradições persas, sua fundação remontava à legendária Semíramis. Fora esta, diziam, quem mandara construir seu recinto colossal, de oitenta e cinco quilômetros de contorno; o Imgum-Bel, suas muralhas, onde duas carruagens corriam de frente, seus terraços superpostos, seus palácios maciços com relevos policrômicos, seus templos sustentados por elefantes de pedra e encimados por dragões multicores. Lá tinha-se sucedido a série de déspotas que escravizara a Caldéia, a Assíria, a Pérsia, uma parte da Tartária, a Judéia, a Síria e a Ásia Menor. Para lá Nabucodonosor, o assassino dos magos, arrastara em cativeiro o povo judeu, que continuava a praticar seu culto em um recanto da imensa cidade na qual Londres caberia quatro vezes. Os judeus tinham até fornecido ao grande rei um ministro poderoso: o profeta Daniel. Com Baltazar, filho de Nabucodonosor, as muralhas da velha Babel finalmente desmoronaram, sob os golpes vingadores de Ciro. E Babilônia ficou por vários séculos sob o domínio persa.

(2). Jamblique lembra este fato, em sua Vie de Pythagore.


Devido a essa série de acontecimentos anteriores, no momento em que Pitágoras ali chegou, três religiões diferentes conviviam no alto do sacerdócio de Babilônia; os antigos padres caldeus, os sobreviventes do magismo persa e a elite do cativeiro judaico. O que prova que esses diversos sacerdotes se harmonizavam entre si pelo lado esotérico; é precisamente o papel de Daniel, que, sempre dando testemunho do Deus de Moisés, permaneceu primeiro-ministro sob Nabucodonosor, Baltazar e Ciro.

Pitágoras teve de alargar seus horizontes, já tão vastos, estudando todas aquelas doutrinas, religiões e cultos, cuja síntese alguns iniciados
ainda conservavam. Ele pôde aprofundar na Babilônia os conhecimentos dos magos, herdeiros de Zoroastro. Se somente os sacerdotes egípcios possuíam as chaves universais das ciências sagradas, os magos persas tinham a reputação de terem propagado a prática de certas artes. Eles se atribuíam o manejo daqueles poderes ocultos da natureza que se chamam o fogo pantomórfico e a luz astral.

Dizia-se que em seus templos as trevas advinham em pleno dia, as lâmpadas se acendiam sozinhas, viam-se resplandecer os Deuses e ouvia-se cair o raio. Os magos chamavam de leão celeste àquele fogo incorpóreo, agente gerador da eletricidade, que sabiam condensar ou dissipar a sua vontade, e de serpentes às correntes elétricas da atmosfera, magnéticas da Terra, que pretendiam dirigir como flechas sobre os homens. Tinham feito também um estudo especial do poder sugestivo, atrativo e criador do verbo humano. Empregavam, para a evocação dos espíritos, formulários graduados e copiados dos mais antigos idiomas da Terra. Eis a razão psíquica que apresentavam para isso: “Não mudai nada nos nomes bárbaros da evocação. Porque eles são os nomes panteísticos de Deus. São magnetizados pelas adorações de uma multidão e seu poder é inefável” (3). Essas evocações, praticadas no meio das purificações e das preces, eram, propriamente falando, o que se chamou mais tarde de magia branca.

(3). Oráculos de Zoroastro recolhidos na teurgia de Proclus.

Na Babilônia, Pitágoras penetrou nos arcanos da antiga magia. Ao mesmo tempo, naquele antro do despotismo, viu um grande espetáculo: sobre os destroços das religiões decadentes do Oriente, acima de seu sacerdócio dizimado e degenerado, um grupo de iniciados intrépidos, unidos, defendiam sua ciência, sua fé e, tanto quanto possível, a justiça.

De pé diante dos déspotas, como Daniel na cova dos leões, sempre preparados para serem devorados, eles fascinavam e domavam a fera do
poder absoluto, por meio de seu poder intelectual, e com ela disputavam passo a passo o terreno.

Depois de sua iniciação egípcia e caldaica, o filho de Samos sabia muito mais do que seus mestres de Física e do que qualquer grego, padre ou leigo, de seu tempo. Conhecia os princípios eternos do Universo e suas aplicações. A natureza descerrara-lhe seus abismos; os pesados véus da matéria tinham-se dilacerado a seus olhos, para mostrar-lhe as esferas maravilhosas da natureza e da humanidade espiritualizada. No templo de Neit-Ísis, em Mênfis no de Bel, na Babilônia, ele apreendera muitos segredos sobre o passado das religiões, sobre a história dos continentes e das raças. Pudera comparar as vantagens e os inconvenientes do monoteísmo judeu, do politeísmo grego, do trinitarismo hindu. e do dualismo persa. Sabia que todas religiões eram raios de uma mesma verdade, filtrados por diversos graus de inteligência e para diversos estados sociais. Ele possuía a chave, isto é, a síntese de todas estas doutrinas na ciência esotérica. Seu olhar, abrangendo o passado, mergulhando no futuro, julgava o presente com uma singular lucidez. Sua experiência mostrava-lhe a humanidade ameaçada dos maiores flagelos, pela ignorância dos sacerdotes, pelo materialismo dos sábios e pela indisciplina das democracias. Em meio ao afrouxamento universal, ele via crescer o despotismo asiático. E daquela nuvem negra um ciclone formidável iria precipitar-se sobre a Europa indefesa.

Já era tempo de voltar à Grécia, para lá cumprir sua missão, começar sua obra.

Pitágoras estivera confinado na Babilônia durante doze anos. Para sair de lá era preciso uma ordem do rei dos persas. Um compatriota, Demócedes, médico do rei, intercedeu a seu favor e obteve a liberdade do filósofo.

Pitágoras voltou então para Samos, após trinta e quatro anos de ausência. Encontrou sua pátria esmagada sob o domínio de um sátrapa
do grande rei. Escolas e templos estavam fechados; poetas e sábios tinham fugido, como um bando de andorinhas diante do cesarismo persa. Pelo menos ele teve a consolação de recolher o último suspiro de seu primeiro mestre, Hermodamos, e de reencontrar a mãe, Partênis, a única que não duvidara de seu regresso. Pois toda a gente acreditava morto o filho aventuroso do joalheiro de Samos. Ela, porém, jamais duvidara do oráculo de Apolo; e agora compreendia que, sob as vestes brancas de sacerdote egípcio, seu filho se preparava para uma elevada missão. Ela sabia que do templo de Neit-Ísis sairia o mestre benfeitor, o
profeta luminoso, com o qual havia sonhado no bosque sagrado de Delfos, e que o hierofante de Adonai lhe prometera, às sombras dos cedros do Líbano.

Agora sobre as ondas azuladas das Cícladas um barco veloz levava mãe e filho para um novo exílio. Com todos os seus haveres, eles fugiam de Samos, oprimida e perdida. Iam para a Grécia. Não eram as coroas olímpicas, nem louros do poeta que tentavam o filho de Partênis.

Sua obra era mais misteriosa e maior: despertar a alma adormecida dos Deuses nos santuários; restituir ao templo de Apolo a força e o prestígio; depois fundar, em alguma parte, uma escola de ciência e de vida, de onde sairiam, não políticos e sofistas, mas mulheres e homens iniciados, mães verdadeiras e heróis puros!


 

Parte III

O TEMPLO DE DELFOS. A CIÊNCIA APOLÍNEA.
A TEORIA DA ADIVINHAÇÃO. A PITONISA TEOCLÉIA


Da planície da Fócida, subia-se por campinas agradáveis que seguem as margens do Plítios, e entrava-se num vale tortuoso, entre altas montanhas. A cada passo ele se tornava mais estreito, a paisagem mais grandiosa e mais desolada. Atingia-se, enfim, um círculo de montanhas abruptas, coroadas de picos selvagens, verdadeiro funil de eletricidade, castigado por frequentes tempestades. Bruscamente, no fundo da garganta sombria, aparecia a cidade de Delfos, como um ninho de águia, sobre seu rochedo cercado de precipícios e dominado pelos dois cumes do Parnaso. Ao longe viam-se cintilar as Vitórias de bronze, os cavalos também de bronze e as inúmeras estátuas de ouro dispostas em fila na via sagrada, como uma guarda de heróis e Deuses ao redor do templo dórico de Fobos Apolo.

Ruínas do Templo de Delfos

Era o local mais santo da Grécia. Lá profetizava a Pítia. Lá se reuniam os Anfictiões. Lá todos os povos helênicos haviam erguido, em torno do santuário, capelas que encerravam tesouros de oferendas. Lá, procissões de homens, mulheres e crianças vindas de longe subiam a via sacra, para saudar o Deus da Luz. A religião havia consagrado Delfos, desde tempos imemoriais, à veneração dos povos. Sua localização central na Hélade, seu rochedo, ao abrigo dos ataques e de fácil defesa, contribuíram para isto. O Deus estava lá para tocar a imaginação; uma singularidade lhe deu seu prestígio. Em uma caverna, atrás do templo, abria-se uma fenda, de onde saíam vapores frios que provocavam, segundo se dizia, a inspiração e o êxtase. Plutarco narra que em tempos muito remotos um sacerdote, estando sentado à beira daquela fenda, pôs-se a profetizar. No início julgavam-no louco. Mas à medida que suas profecias se foram realizando, deram atenção ao fato.

Os sacerdotes se apoderaram dele e consagraram o local à divindade.

Daí a instituição da Pítia, que se sentava sobre a fenda, sobre um tripé.

Os vapores que saíam do abismo provocavam-lhe convulsões, crises estranhas e aquela segunda visão que se observa nos sonâmbulos notáveis.

Ésquilo – cujas afirmações têm peso, pois era filho de um sacerdote de Elêusis e ele mesmo um iniciado – nos ensina nas Eumênidas, pela boca da Pítia, que Delfos tinha sido consagrado primeiro à Terra, em seguida a Têmis (A Justiça), depois a Febe (a lua mediadora) e, finalmente, a Apolo, o Deus solar. Cada um destes nomes representa, no simbolismo dos templos, longos períodos e abrange séculos. Mas a celebridade de Delfos data de Apolo. Júpiter, diziam os poetas, tendo desejado conhecer o centro da Terra, soltou duas águias, uma do levante e outra do poente. Elas se encontraram em Delfos.

De onde vem este prestígio, esta autoridade universal e inconteste, que fez de Apolo o Deus grego por excelência e faz com que tenha conservado, até para nós, um brilho inexplicável?

A história não nos diz nada sobre este ponto tão importante.

Interrogando-se os oradores, os poetas, os filósofos, eles apenas darão explicações superficiais. A verdadeira resposta a esta questão permanece segredo do templo. Procuremos penetrá-lo.

No pensamento órfico, Dionísio e Apolo eram duas revelações diversas da mesma divindade. Dionísio representava a verdade esotérica, o fundo e o interior das coisas, aberto somente aos iniciados.

Ele continha os mistérios da vida, as existências passadas e futuras, as relações da alma e do corpo, do Céu e da Terra. Apolo personificava a mesma verdade, aplicada à vida terrestre e à ordem social. Inspirador da poesia, da medicina e das leis, era a ciência através da adivinhação, a beleza através da arte, a paz dos povos através da justiça, e a harmonia da alma e do corpo através da purificação. Numa palavra, para o iniciado, Dionísio significava nada menos do que o espírito divino em evolução no Universo; e Apolo, sua manifestação ao homem terrestre.

Os sacerdotes tinham feito com que o povo compreendesse isto por meio de uma lenda. Contavam-lhe que no tempo de Orfeu, Baco e Apolo tinham disputado o tripé de Delfos. Baco cedera-o de bom grado ao irmão e se retirara para um dos cumes de Parnaso, onde as mulheres tebanas celebravam seus mistérios. Na realidade, os dois grandes filhos de Júpiter dividiram entre si o império do mundo. Um reinava sobre o misterioso além; o outro reinava sobre os seres vivos.

Encontramos em Apolo o Verbo solar, a Palavra universal, o grande Mediador, o Vishnu dos hindus, o Mitras dos persas, o Hórus dos egípcios. Mas as velhas idéias do esoterismo asiático se revestiram, na lenda de Apolo, de uma beleza plástica, de um esplendor incisivo, que lhes permitiu infiltrarem-se mais profundamente na consciência humana como as flechas do Deus, serpentes de asas brancas impelidas de seu arco de ouro”, segundo Ésquilo.

Apolo irrompeu, da grande noite, em Delfos. Todas as deusas saúdam seu nascimento. Ele anda, toma o arco e a lira. Seus cabelos cacheados esvoaçam no ar, a aljava ressoa em seus ombros. E o mar palpita e toda a ilha resplandece num banho de fogo e ouro. É a epifania da luz divina, que por sua augusta presença cria a ordem, o esplendor e a harmonia, dos quais a poesia é o maravilhoso eco.


Apolo

O Deus segue para Delfos e fere com suas flechas uma serpente monstruosa que assolava a região, saneia o país e funda o templo, imagem da vitória daquela luz divina sobre as trevas e o mal. Nas religiões antigas, a serpente simbolizava ao mesmo tempo o círculo fatal da vida e o mal que dele resulta. Dessa compreensão advém o seu conhecimento. Apolo, matador da serpente, é o símbolo do iniciado que traspassa a natureza com a ciência, domina-a com sua vontade e, rompendo o círculo fatídico da carne, eleva-se no esplendor do espírito, enquanto os destroços da animalidade humana se contorcem na areia.

Eis por que Apolo é o mestre das expiações, das purificações da alma e do corpo. Salpicado com o sangue do monstro, ele expiou, purificou-se
num exílio de oito anos, sob os loureiros amargos e salubres do vale de
Tempe.

Apolo, educador dos homens, gosta de estar entre eles; sente-se bem nas cidades, entre a juventude masculina, nos concursos de poesia e oratória, mas ele aí fica só temporariamente. No outono, volta à sua pátria, ao país dos hiperbóreos. É o povo misterioso das almas luminosas e transparentes que vivem na eterna aurora de uma felicidade perfeita. Lá estão seus verdadeiros mestres e suas amadas sacerdotisas.

Com eles vive numa comunidade íntima e profunda: e, quando quer fazer aos homens um dom real, envia-lhes do país dos hiperbóreos uma das grandes almas luminosas e a faz nascer na Terra, para ensinar e encantar os mortais. Ele mesmo volta a Delfos em todas as primaveras, quando se entoam peãs e hinos. Chega, visível somente para os iniciados, em sua brancura hiperbórea, num carro puxado por cisnes melodiosos. Volta a habitar o santuário onde a Pítia transmite seus oráculos e os sábios e os poetas a escutam. Então os rouxinóis cantam, a fonte de Castália borbulha em ondas prateadas, os eflúvios de uma luz ofuscante e de uma música celeste penetram no coração do homem e nas veias da natureza.

Nesta lenda dos hiperbóreos manifesta-se em raios brilhantes o fundo esotérico do mito de Apolo. O país dos hiperbóreos é o Além, o empírico das almas vitoriosas, cujas auroras astrais iluminam as zonas multicores. O próprio Apolo personifica a luz imaterial e inteligível, na qual o Sol é apenas a imagem física e de onde decorre toda a verdade.

Os cisnes maravilhosos que o conduzem são os poetas, os divinos gênios, mensageiros de sua grande alma solar, que deixam atrás de si estremecimentos de luz e de melodia. Apolo hiperbóreo personifica, pois, a descida do Céu sobre a Terra, a encarnação da beleza espiritual no sangue e na carne, o afluxo da verdade transcendente por meio da inspiração e da adivinhação.

Mas é tempo de soerguer o véu dourado das lendas e penetrar no próprio templo. Como se praticava a adivinhação? Tocamos aqui os arcanos da ciência apolínea e dos mistérios de Delfos.

Um laço profundo unia, na Antigüidade, a adivinhação e os cultos solares. O culto do sol é a chave de ouro de todos os mistérios considerados mágicos.

A adoração do homem ariano dirigiu-se, desde a origem da civilização, ao Sol como fonte de luz, calor e vida. Mas quando o pensamento dos sábios se elevou do fenômeno à causa, eles conceberam, para além deste fogo sensível e desta luz visível, um fogo imaterial e uma luz inteligível. Identificaram o primeiro com o princípio masculino, com o espírito criador e a essência intelectual do Universo, e a segunda com seu princípio feminino, sua alma formadora, sua substância plástica. Esta instituição remonta a um tempo imemorial. A concepção que menciono mistura-se com as mais velhas mitologias. Ela circula nos hinos védicos sob a forma de Agni, o fogo universal que penetra todas as coisas. Desabrocha na religião de Zoroastro, cujo culto de Mitras representa a parte esotérica. Mitras é o fogo masculino e Mitra, a luz feminina. Zoroastro diz, formalmente, que o Eterno criou, por meio do Verbo vivo, a luz celeste, semente de Ormuz, princípio da luz material e do fogo material. Para o iniciado de Mitras, o Sol é apenas um reflexo grosseiro daquela luz. Em sua gruta escura, com a abóbada pintada de estrelas, ele invoca o sol da graça, o fogo do amor, vencedor do mal, reconciliador de Ormuz e de Arimã, purificador e mediador, que habita a alma dos santos profetas. Nas criptas do Egito, os iniciados procuram este mesmo Sol, sob o nome de Osíris. Quando Hermes pede para contemplar a origem das coisas, inicialmente sente-se mergulhado nas ondas etéreas de uma luz deliciosa, onde se movem todas as formas vivas. Depois, imerso nas trevas da matéria espessa, ouve uma voz e nela reconhece a voz da luz. Ao mesmo tempo, um fogo irrompe das profundezas. Logo o caos se organiza e se ilumina. No livro dos mortos dos egípcios, as almas vagam penosamente em direção àquela luz na barca de Ísis. Moisés adotou plenamente esta doutrina, no Gênese:

Eloim disse: faça-se a luz; e a luz se fez”.

Ora, a criação dessa luz precede a do Sol e das estrelas. Isto quer dizer que na ordem dos princípios e da cosmogonia, a luz inteligível precede a luz material. Os gregos, que dramatizaram e vazaram na forma humana as idéias mais abstratas, exprimiram a mesma doutrina no mito de Apolo hiperbóreo.

O espírito humano chegou pois, pela contemplação interna do Universo, do ponto de vista da alma e da inteligência, a conceber uma luz inteligível, um elemento imponderável que servia de intermediário entre a matéria e o espírito. Seria fácil mostrar que os físicos modernos se aproximaram insensivelmente da mesma conclusão, por um caminho oposto, isto é, buscando a constituição da matéria e vendo a impossibilidade de explicá-la por si mesma. Já no século XVI, Paracelso, estudando as combinações químicas e as metamorfoses dos corpos, chegara a admitir um agente universal e oculto, mediante o qual elas operam. Os físicos dos séculos XVII e XVIII, que conceberam o Universo como uma máquina morta, acreditaram no vazio absoluto dos espaços celestes. Entretanto, quando se reconheceu que a luz não é a emissão de uma matéria radiante, mas a vibração de um elemento imponderável, teve-se de admitir que todo o espaço está repleto de um fluido infinitamente sutil, que penetra todos os corpos e pelo qual se transmitem as ondas de calor e luz. Voltava-se assim às idéias da Física e da teosofia grega.

Newton, que havia passado a vida inteira estudando os movimentos dos corpos celestes, foi mais longe. Chamou a esse éter sensorium Dei, ou o cérebro de Deus, isto é, o órgão pelo qual o pensamento divino age no infinitamente grande e no infinitamente pequeno. Externando esta idéia, que lhe parecia necessária para explicar a simples rotação dos astros, o grande físico vogava em plena filosofia esotérica. O éter que o pensamento de Newton encontrava nos espaços, Paracelso havia encontrado no fundo de seus alambiques e denominara luz astral.

Ora, este fluido imponderável, mas presente por toda a parte, que penetra em tudo, este agente sutil, mas indispensável, esta luz invisível a nossos olhos, mas que está no fundo de todas as cintilações e de todas as fosforescências, um físico alemão constatou-os todos, numa série de experiências sabiamente ordenadas. Reichenbach notara que indivíduos de constituição nervosa muito sensível, colocados numa câmara completamente escura, diante de um ímã, viam, nas duas extremidades, fortes raios de luz vermelha, amarela e azul. Às vezes, estes raios vibravam, num movimento ondulatório. Continuou suas experiências com todas as espécies de corpos, principalmente com cristais. Ao redor de todos esses corpos, os indivíduos viram emanações luminosas. E em torno da cabeça dos homens colocados na câmara escura, viram raios brancos; e de seus dedos saíam pequenas chamas. Na primeira fase do sono, os sonâmbulos algumas vezes viam o seu magnetizador com aqueles mesmos sinais. A pura luz astral só aparece no alto êxtase, mas se polariza em todos os corpos, combina-se com todos os fluidos terrestres e desempenha funções diversas na eletricidade, no magnetismo terrestre e no magnetismo animal (1). O interesse nas experiências de Reichenbach está em ter chegado aos limites e à transição da visão física para a visão astral, que pode conduzir à visão espiritual. Fazem entrever também as sutilezas infinitas da matéria ponderável. Neste caminho, nada nos impede de concebê-la tão fluida, tão sutil e penetrante que se torne de certa maneira homogênea ao espírito e lhe sirva de vestimenta perfeita.

(1). Reichenbach chamou este fluido de odylo. Sua obra foi traduzida para o inglês por Gregory: Researches on magnetism, electricity, heat, light, cristallization and chemical attraction. – Londres, 1850.


Acabamos de ver que a Física moderna teve de reconhecer um agente universal imponderável para explicar o mundo, cuja presença constatou mesmo, voltando assim, sem o saber, para as idéias das teosofias antigas. Procuremos agora definir a natureza e a função do fluido cósmico, segundo a filosofia do oculto em todos os tempos.

Sobre este período capital da cosmogonia, estão de acordo Zoroastro e Heráclito, Pitágoras e São Paulo, os cabalistas e Paracelso.

Ela reina em toda a parte, Cibele-Maia, a grande alma do mundo, a substância vibrante e plástica que manipula à sua vontade o sopro do Espírito criador. Seus oceanos etéreos servem de argamassa entre todos
os mundos. Ela é a grande mediadora entre o invisível e o visível, entre o espírito e a matéria, entre o interior e o exterior no Universo.

Condensada em massas enormes na atmosfera, sob a ação do Sol, ela aí
eclode em forma de raio. Bebida pela Terra, circula em correntes magnéticas. Sutilizada no sistema nervoso do animal, transmite sua vontade aos membros, suas sensações ao cérebro. Ainda mais: esse fluido sutil forma organismos vivos semelhantes aos corpos materiais.

Pois serve de substância ao corpo astral da alma, vestimenta luminosa que o espírito tece sem cessar para si mesmo. Conforme as almas que reveste, conforme os mundos que envolve, este fluido se transforma, afina-se ou se condensa. Não somente ele corporifica o espírito e espiritualiza a matéria, mas também reflete, em seu seio animado, as coisas, as vontades e os pensamentos humanos em uma perpétua miragem. A força e a duração dessas imagens é proporcional à intensidade da vontade que as produz. Na verdade, não há outro meio de se explicar a sugestão e a transmissão do pensamento à distância, este princípio da magia hoje constatado e reconhecido pela ciência (2).


(2). Ver o Boletim da Sociedade de psicologia fisiológica, presidida por M. Charcot, 1885. Ver, sobretudo, o belo livro de M. Ochorowicz, De La Suggestion Mentale, Paris, 1887.


Assim o passado dos mundos tremula na luz astral em imagens incertas, e o futuro aí perambula com as almas vivas que o inelutável destino força a descer à carne. Eis o sentido do véu de Ísis e do manto de Cibele, em que são tecidos todos os seres.

Vê-se agora que a doutrina teosófica da luz astral é idêntica à doutrina secreta do verbo solar nas religiões do Oriente e da Grécia. Vê-se também como essa doutrina se liga à da adivinhação. A luz astral aí se revela como o médium universal dos fenômenos de visão e de êxtase, e os explica. E ao mesmo tempo o veículo que transmite os movimentos do pensamento, e o espelho vivo onde a alma contempla as imagens do mundo material e espiritual. Uma vez transportado para este elemento, o espírito do vidente deixa as condições corporais. A medida do espaço e
do tempo mudam para ele, que participa, de algum modo, da ubiquidade do fluido universal. A matéria opaca torna-se-lhe transparente. E a alma, separando-se do corpo, elevando-se em sua própria luz, chega através do êxtase a penetrar no mundo espiritual, a ver as almas revestidas, de seus corpos etéreos e a se comunicar com elas. Todos os antigos iniciados tinham uma idéia nítida dessa segunda visão ou visão direta do espírito. Temos o testemunho de Ésquilo, que atribui à sombra de Clitemnestra esta frase: “Olha estas feridas, teu espírito pode vê-las; quando se dorme, o espírito tem olhos mais penetrantes; à luz do dia, os mortais não abrangem um vasto campo com sua visão”.

Acrescentamos ainda que esta teoria da clarividência e do êxtase harmoniza-se maravilhosamente com as numerosas experiências cientificamente praticadas pelos sábios e médicos deste século com sonâmbulos lúcidos e clarividentes de todo tipo (3). Em conformidade com estes fatos contemporâneos, tentaremos caracterizar brevemente a sucessão de estados psíquicos, desde a clarividência simples até o êxtase cataléptico.

(3). Sobre esta matéria existe uma literatura abundante, de valor bastante desigual, tanto na França quanto na Alemanha e na Inglaterra.
Citaremos aqui duas obras em que essas questões são tratadas cientificamente por homens dignos de fé:


O estado de clarividência, conforme demonstram milhares de fatos constatados, é um estado psíquico que difere tanto do sono quanto da vigília. Longe de embotarem, as faculdades intelectuais do clarividente aumentam de maneira surpreendente. Sua memória é mais exata, sua imaginação mais viva, sua inteligência mais desperta. Enfim, este é o fato essencial, desenvolve-se um sentido novo, que não é mais um sentido corporal, mas da alma. Não somente os pensamentos do magnetizador se transmitem a ele como no simples fenômeno da sugestão, o qual já sai do plano físico, mas o clarividente lê no pensamento dos assistentes, vê através dos muros, penetra em interiores a centenas de léguas, onde jamais esteve, e também na vida íntima de pessoas que não conhece. Seus olhos estão fechados e nada podem ver, mas seu espírito vê mais longe e melhor do que se os olhos estivessem abertos, parece viajar livremente pelo espaço(4) .

(4). Exemplos numerosos em Gregory: Letters, XVI, XVII e XVIII.

 







Em sua palavra, se a clarividência é um estado anormal do ponto de vista do corpo, é um estado normal e superior do ponto de vista do espírito. Pois sua consciência tornou-se mais profunda, sua visão mais larga. O eu permanece o mesmo, mas ele passou a um plano superior, onde seu olhar, liberto dos órgãos grosseiros do corpo, abrange e penetra um horizonte mais vasto(5). Deve-se notar que alguns sonâmbulos, ao receberem os passes do magnetizador, sentem-se inundados por uma luz cada vez mais brilhante, e que o despertar lhes parece um penoso retomo às trevas.

(5). O filósofo alemão Schelling reconheceu a importância capital do sonambulismo na questão da imortalidade da alma. Ele observa que, no sono lúcido, produz-se uma elevação e uma liberação relativa da alma em relação ao corpo, como jamais acontece no estado normal. Nos sonâmbulos tudo demonstra a mais intensa consciência, como se todo o ser estivesse concentrado num foco luminoso que reúne o passado, o presente e o futuro. Longe de perderem a memória, o passado se esclarece para eles, o próprio futuro mesmo se revela às vezes num clarão intenso. Se isto é possível na vida terrestre – pergunta Schelling – não é certo que nossa personalidade espiritual que nos acompanha na morte, já está presente em nós atualmente, que ela não nasce nesta ocasião, que ela simplesmente é libertada e se revela assim que não está mais ligada ao mundo exterior pelos sentidos? O estado depois da
morte é, pois, mais real do que o estado terrestre. Nesta existência, o acidental, se imiscuindo em tudo, paralisa em nós o essencial. Schelling muito simplesmente chama de clarividência o estado futuro. O espírito,
desembaraçado de tudo que existe de acidental na vida terrestre, torna-se mais vivo e mais forte. O mau torna-se pior e o bom, melhor.

Muito recentemente, M. Charles Du Prel sustentou a mesma tese, com uma grande riqueza de fatos e de observações, num belo livro: Philosophie der Mystik (1886). Ele parte do seguinte fato: “A consciência do eu não esgota seu objeto. A alma e a consciência não são termos adequados. Não se ajustam, pois não têm uma extensão igual. A esfera da alma ultrapassa em muito a da consciência”. Há, então, em nós um eu latente. Este eu latente, que se manifesta rio sono e no sonho, é o verdadeiro eu supraterrestre e transcendente, cuja existência precedeu nosso eu terrestre, ligado ao corpo. O eu terrestre é perecível; o eu transcendente é imortal.

Eis por que São Paulo disse: “Já nesta terra caminhamos para o céu.”








A sugestão, a leitura do pensamento e a visão à distância são fatos que já provam a existência independente da alma e nos transportam acima do plano físico do Universo, sem dele nos desligar completamente. Mas a clarividência tem variedades infinitas e uma escala de estados diversos, muito mais extensa do que a da vigília. À medida que nela se avança, os fenômenos se tornam mais raros e mais extraordinários. Citemos apenas as etapas principais. A retrospecção é uma visão dos acontecimentos passados conservados na luz astral e reavivados pela simpatia do vidente. A adivinhação propriamente dita é uma visão problemática das coisas do futuro, seja por uma introspecção do pensamento dos seres vivos, que contém em germe as ações futuras, seja pela influência oculta de espíritos superiores que mostram o futuro em imagens vivas diante da alma do clarividente. Os dois casos são projeções de pensamento na luz astral. Enfim, o êxtase se define como uma visão do mundo espiritual, onde espíritos bons ou maus aparecem ao vidente sob forma humana e comunicam-se com ele. A alma parece realmente transportada para fora do corpo; parece que a vida quase o deixou e que se enrijece numa catalepsia vizinha da morte. Nada pode exprimir, segundo as narrativas dos grandes extáticos, a beleza e o esplendor dessas visões e nem o sentimento de inefável fusão com a essência divina, a que eles se referem como uma embriaguez de luz e de música. Pode-se duvidar da realidade destas visões, mas é preciso acrescentar que, se no estado médio da clarividência a alma tem uma percepção exata dos lugares distantes e dos ausentes, é lógico admitir-se que, em sua mais alta exaltação, ela possa ter a visão de uma realidade superior e imaterial.

Esta será, segundo nosso pensamento, uma tarefa para o futuro: restituir às faculdades transcendentes da alma humana a sua dignidade e sua função social, reorganizando-as sob o controle da ciência e sobre as bases de uma religião verdadeiramente universal, aberta a todas as verdades. Então a ciência, regenerada pela verdadeira fé e pelo espírito de caridade, atingirá de olhos abertos as esferas onde a filosofia especulativa vagueia, tateando de olhos vendados. Sim, a ciência tornar-se-á vidente e redentora, à medida que nela aumentar a consciência e o amor à humanidade. E talvez, pela “porta do sono e dos sonhos” – como dizia o velho Homero – a divina Psiquê, banida de nossa civilização e que chora em silêncio, sob seu véu, retomará a posse de seus altares.

Seja como for, os fenômenos de clarividência, observados em todas as suas fases por sábios e médicos do século XIX, lançam nova luz sobre o papel da adivinhação da Antigüidade e sobre uma imensidade de fenômenos aparentemente sobrenaturais, de que estão repletos os anais de todos os povos. Certamente, é indispensável distinguir o que pertence à lenda e à História, à alucinação e à visão verdadeira. Mas a psicologia experimental de nossos dias nos ensina a não rejeitarmos sumariamente os fatos que estão na possibilidade da natureza humana, e a estudá-los do ponto de vista das leis constatadas.

Se a clarividência é uma faculdade da alma, já não se pode atirar pura e
simplesmente os profetas, os oráculos e as sibilas para o domínio da superstição. A adivinhação pôde ser conhecida e praticada pelos templos antigos, com princípios fixos, para um fim social e religioso. O estudo comparado das religiões e das tradições esotéricas mostra que esses princípios foram os mesmos por toda a parte, ainda que sua aplicação tenha variado infinitamente. O que desacreditou a arte da adivinhação é que sua corrupção deu margem aos piores abusos, e suas
belas manifestações só foram possíveis em seres de grandeza e pureza excepcionais.

A adivinhação, tal como exercida em Delfos, estava fundada nos princípios que acabamos de expor, e a organização interior do templo também correspondia a eles. Como nos grandes templos do Egito, compunha-se de uma arte e de uma ciência. A arte consistia em penetrar o longínquo, o passado e o futuro, pela clarividência ou pelo êxtase profético; as ciências, em calcular o futuro segundo as leis da evolução universal. Arte e ciência controlavam-se reciprocamente.

Nada diremos desta ciência, chamada genetliologia pelos antigos, e da qual a astrologia da Idade Média é apenas um fragmento mal compreendido, a não ser que ela supunha a enciclopédia esotérica aplicada ao futuro dos povos e dos indivíduos. Muito útil como orientação, sua aplicação permaneceu sempre bastante problemática.

Só os espíritos de primeira grandeza souberam dela fazer uso. Pitágoras aprofundou-a no Egito. Na Grécia, era exercida com dados menos completos e menos precisos. Ao contrário, a clarividência e a profecia tinham avançado bastante.

Sabe-se que esta se exercia em Delfos por intermédio de mulheres jovens e velhas, chamadas pítias ou pitonisas, que desempenhavam papel passivo, de sonâmbulas clarividentes. Os sacerdotes interpretavam, traduziam e ordenavam segundo uma interpretação pessoal esses oráculos, frequentemente confusos. Os historiadores modernos viram na instituição de Delfos somente a exploração da superstição, por um charlatanismo inteligente. Mas, além da adesão de toda a Antiguidade filosófica à ciência divinatória de Delfos, vários oráculos referidos por Heródoto, como aqueles sobre Creso e sobre a batalha de Salamina, depõem a seu favor. Sem dúvida, esta arte teve seu começo, sua florescência e sua decadência. O charlatanismo e a corrupção acabaram por se imiscuir. Testemunha disto foi o rei Cleômenes, que corrompeu a superiora das sacerdotisas de Delfos para despojar Demarates da realeza. Plutarco escreveu um tratado onde pesquisou as razões da extinção dos oráculos; e toda esta degenerescência foi sentida como uma infelicidade por toda a sociedade
antiga. Na época precedente, a adivinhação fora cultivada com uma sinceridade religiosa e uma profundidade científica que a elevaram às alturas de um verdadeiro sacerdócio. No frontão do templo, lia-se a seguinte inscrição: “Conhece-te a ti mesmo”. E esta outra, acima da porta de entrada: “Que não se aproxime quem não tiver as mãos puras”.

Estas palavras diziam ao visitante que as paixões, as mentiras, as hipocrisias terrestres não deviam ultrapassar os umbrais do santuário, e que no interior a verdade divina reinava com uma seriedade terrível.

Pitágoras só foi a Delfos depois de ter passado por todos os templos da Grécia. Estivera com Epimênides, no santuário de Júpiter Idéon; assistira aos jogos olímpicos; presidira aos mistérios de Elêusis, onde o hierofante lhe cedera o lugar. Por toda a parte fora recebido como um mestre. Esperavam-no em Delfos. A arte divinatória definhava e Pitágoras queria devolver-lhe sua profundidade, força e prestígio. Vinha, portanto, menos para consultar Apolo do que para esclarecer seus intérpretes, reanimar seu entusiasmo e despertar sua energia. Agir sobre eles seria agir sobre a alma da Grécia e preparar seu futuro.

Felizmente, ele encontrou no templo um instrumento maravilhoso, que um desígnio providencial parecia ter-lhe reservado.

A jovem Teocléia pertencia ao colégio das sacerdotisas de Apolo.

Originava-se de uma das famílias nas quais a dignidade sacerdotal é hereditária. A atmosfera do santuário, as cerimônias do culto, os peãs, as festas de Apolo pítio e hiperbóreo tinham alimentado sua infância.

Era daquelas jovens que têm aversão inata e instintiva por tudo o que seduz as outras, e por isso não gostam de Ceres e temem Vênus. A pesada atmosfera terrestre as inquieta e o amor físico, vagamente entrevisto, parece-lhes uma violação da alma, uma quebra de seu ser intacto e virginal. Ao contrário, são estranhamente sensíveis a correntes misteriosas, a influências astrais. Quando a Lua incidia sobre os sombrios bosques da fonte de Castália, Teocléia via deslizarem formas brancas. Em pleno dia, ouvia vozes. Quando se expunha aos raios do Sol levante, sua vibração mergulhava-a em uma espécie de êxtase, em que ouvia coros invisíveis. No entanto, era insensível às superstições e às idolatrias populares do culto. As estátuas deixavam-na indiferente e tinha horror aos sacrifícios animais. Não falava a ninguém das aparições que perturbavam seu sono. Sentia, com o instinto das clarividentes, que os sacerdotes de Apolo não possuíam a suprema luz de que ela necessitava. Estes, contudo, não descuidavam dela para convencê-la a tornar-se Pitonisa. Ela sentia-se atraída por um mundo superior, do qual não tinha a chave. Que deuses seriam aqueles que se apoderavam dela mediante sopros e calafrios? Gostaria de sabê-lo, antes de consagrar-se a eles. Pois as grandes almas têm necessidade de ver claramente, mesmo quando se abandonam às potências divinas.

De que profunda comoção, de que pressentimento misterioso deverá ter-se agitado a alma de Teocléia, quando viu Pitágoras pela primeira vez e ouviu sua voz eloquente repercutir entre as colunas do santuário apolíneo! Sentiu a presença do iniciador que esperava e reconheceu seu mestre. Ela queria saber. Ela saberia por ele; e este mundo interior, este mundo que ela carregava consigo ele iria revelá-lo!

– Ele, por seu lado, com seu olhar seguro e penetrante, deve ter reconhecido nela a alma viva e vibrante que procurava para tornar-se intérprete de seu pensamento no templo e nele infundir um novo espírito. Desde o primeiro olhar, desde a primeira palavra, uma corrente invisível ligou o sábio de Samos à jovem sacerdotisa, que o escutava sem nada dizer, bebendo suas palavras, fitando-o com os grandes olhos
atentos. Não sei quem disse que o poeta e a lira se reconhecem em uma
vibração profunda, aproximando-se um do outro. Assim se reconheceram Pitágoras e Teocléia.

Desde o nascer do sol, Pitágoras mantinha longas conversas com os sacerdotes de Apolo, chamados santos e profetas. Ele pediu que a jovem sacerdotisa ali fosse admitida, a fim de iniciá-la em seu ensinamento secreto e prepará-la para desempenhar sua missão. Ela pôde então acompanhar as lições que o mestre dava todos os dias no santuário. Pitágoras estava no vigor da idade. Trazia a veste branca disposta à maneira egípcia; uma faixa púrpura cingia-lhe a larga fronte.

Quando falava, seus olhos graves e lentos pousavam no interlocutor e o envolviam numa luz tépida. Em torno dele, a atmosfera parecia tornar-se mais leve e inteiramente intelectual.

As conversações do sábio de Samos com os mais altos representantes da religião grega foram da maior importância. Não se tratava somente de adivinhação e de inspiração, mas do futuro da Grécia e dos destinos do mundo inteiro. Os conhecimentos, os títulos e os poderes que ele adquirira nos templos de Mênfis e da Babilônia conferiam-lhe a maior autoridade. Tinha o direito de falar como superior e como guia aos inspiradores da Grécia. Fê-lo com a eloquência de seu gênio, com o entusiasmo de sua missão. Para que melhor compreendessem, começou por narrar sua juventude, suas lutas, sua iniciação egípcia. Falou-lhes do Egito, mãe da Grécia, velho como o mundo, imutável como uma múmia coberta de hieróglifos, no fundo de suas pirâmides, que possuía em sua tumba o segredo dos povos, dos idiomas, das religiões. Desenrolou diante de seus olhos os mistérios da grande Ísis, terrestre e celeste, mãe dos Deuses e dos homens; e, fazendo-os passar por suas provas, mergulhou-os com ele na luz de Osíris. Depois foi a vez da Babilônia, dos magos caldeus, de suas ciências ocultas, de seus templos profundos e maciços, onde evocam o fogo vivo onde se movem os demônios e os Deuses.

Ao escutar Pitágoras, Teocléia experimentava sensações surpreendentes. Tudo o que ele dizia ficava gravado com letras de fogo em seu espírito. Aquelas coisas pareciam-lhe ao mesmo tempo maravilhosas e conhecidas. Aprendendo-as, acreditava recordar. As palavras do mestre faziam-na folhear as páginas do Universo como em um livro. Ela não via mais os Deuses sob suas efígies humanas, mas em suas essências, que formam as coisas e os espíritos. Flutuava, subia, descia com eles nos espaços. Às vezes, tinha a ilusão de não mais sentir os limites de seu corpo e de se dissolver no infinito. Assim, sua imaginação entrava pouco a pouco no mundo invisível; e as marcas antigas que encontrava em sua própria alma diziam-lhe que era esta a verdade, a única realidade. O resto era apenas aparência. Ela sentia que em breve seus olhos interiores abrir-se-iam para contemplá-la diretamente.

Daquelas alturas o mestre a trouxe bruscamente de volta à terra, narrando as infelicidades do Egito. Depois de ter discorrido sobre a grandeza da ciência egípcia, ele mostrou-a sucumbindo sob a invasão persa. Narrou os horrores de Cambises, os templos saqueados, os livros
sagrados jogados à fogueira, os sacerdotes de Osíris mortos ou dispersos, o monstro do despotismo persa concentrando sob sua mão de ferro toda a velha barbárie asiática; as raças errantes semi-selvagens do centro da Ásia e do fundo da Índia esperando somente uma ocasião para precipitar-se sobre a Europa. Sim, esse ciclone que aumentava devia um dia eclodir sobre a Grécia, tão seguramente quanto o raio deve sair de uma nuvem que se condensa no ar. A Grécia dividida estaria preparada para resistir a esse choque terrível? Ela nem sequer suspeitava disso. Os povos não evitam seus destinos, e, se não vigiarem incessantemente, os Deuses os precipitam. A sábia nação de Hermes, o Egito, não desmoronara após seis mil anos de prosperidade? E a Grécia, a bela Jônia, passaria mais depressa ainda! Chegará o tempo em que o Deus solar abandonará este templo, cujas pedras os bárbaros derrubarão, enquanto os pastores apascentarão seus rebanhos nas ruínas de Delfos...

Ante estas sinistras profecias, a fisionomia de Teocléia transformou-se, exibindo uma expressão de pavor. Ela se deixou cair por terra e, abraçada a uma coluna, olhos fixos, abismada em seus pensamentos, parecia o gênio da Dor chorando sobre o túmulo da Grécia.

Mas estes, continuou Pitágoras, são segredos que devem ficar sepultados no fundo dos templos. O iniciado atrai a morte ou a repele à sua vontade. Formando a cadeia mágica das vontades, os iniciados prolongam também a vida dos povos. Cabe a vós retardar a hora fatal, cabe a vós fazer brilhar a Grécia, cabe a vós fazer resplandecer nela o verbo de Apolo. Os povos são o que deles fazem os seus Deuses. Mas os Deuses só se revelam àqueles que os invocam. O que é Apolo? O Verbo do Deus único que se manifesta eternamente no mundo. A verdade é a alma de Deus, seu corpo é a luz. Os sábios, os videntes, os profetas são os únicos que a veem. Os homens só veem sua sombra. Os espíritos glorificados, que denominamos heróis e semideuses, habitam esta luz, em legiões, em esferas inumeráveis. Eis o verdadeiro corpo de Apolo, o sol dos iniciados, e sem seus raios nada de grande se faz sobre a Terra. Como o ímã atrai o ferro, com nossos pensamentos, com nossas preces, com nossas ações, atraímos a inspiração divina. A vós cabe transmitir à Grécia o verbo de Apolo; e a Grécia brilhará com uma luz imortal!”

Foi com discursos semelhantes que Pitágoras conseguiu devolver aos sacerdotes de Delfos a consciência de sua missão. Teocléia absorvia-os com uma paixão silenciosa e concentrada. Transformava-se a olhos vistos, sob a influência do pensamento e da vontade do mestre, como sob um lento encantamento. De pé, em meio aos anciãos espantados, ela desfazia sua cabeleira negra e a afastava da testa, como se ali sentisse correr fogo. Já seus olhos, muito abertos e transfigurados, pareciam contemplar os gênios solares e planetários, em suas órbitas esplêndidas e intensa irradiação.

Um dia ela caiu espontaneamente num sono profundo e lúcido. Os cinco profetas cercaram-na; ela permaneceu insensível à sua voz e ao seu toque. Pitágoras aproximou-se e disse: “Levanta-te e vai onde meu pensamento te enviar. Pois de agora em diante és Pitonisa!”

À voz do mestre, um tremor percorreu-lhe todo o corpo e a soergueu numa longa vibração. Seus olhos estavam fechados; mas ela via interiormente.

Pitágoras perguntou-lhe:

– Onde estás?

– Eu subo... subo cada vez mais.

– E agora?

– Nado na luz de Orfeu...

– O que vês no futuro?

– Grandes guerras... homens de bronze... brancas vitórias... Apolo volta para habitar seu santuário e eu serei sua voz!... Mas, tu, seu mensageiro... Ai! Ai! tu vais deixar-me... e levarás sua luz para a Itália.

A vidente, de olhos fechados, falou durante longo tempo com sua voz musical, ofegante, ritmada. Depois, com um soluço, caiu como morta.

Assim Pitágoras, vertia os puros ensinamentos no seio de Teocléia e afinava-a como uma lira para o sopro dos Deuses. Uma vez exaltada a esta altura de inspiração, ela tornou-se uma chama, graças à qual ele pôde sondar seu próprio destino, desvendar o possível futuro, dirigindo-se às plagas sem margem do invisível. Esta contraprova palpitante das verdades que ele ensinava encheu os sacerdotes de admiração, despertou seu entusiasmo e reanimou sua fé. O templo tinha agora uma pitonisa inspirada, sacerdotes iniciados nas ciências e nas artes divinas. Delfos poderia transformar-se num centro de vida e de ação.

Pitágoras permaneceu ali um ano inteiro. Foi só depois de ter instruído os sacerdotes em todos os segredos de sua doutrina e de ter formado Teocléia para o seu ministério que ele partiu para a Magna Grécia.


1º Letters on animal magnetism, de William Gregory, Londres, 1850. – Gregory era professor de Química na Universidade de Edimburgo. Seu livro é um estudo aprofundado dos fenômenos do magnetismo animal, desde a sugestão até a visão à distância e clarividência lúcida, em indivíduos observados por ele mesmo, de acordo com métodos científicos e com minuciosa exatidão.

2º Die Mystischen Erscheinungen der menschlichen Natur, von Maximilian Perty, Leipzig, 1872. – M. Perty foi professor de Filosofia e de
Medicina na Universidade de Berna. Seu livro oferece um imenso repertório de todos os fenômenos ocultos que têm algum valor histórico. O capítulo bastante notável sobre a clarividência (Schlafwachen), volume I, encerra vinte histórias de mulheres sonâmbulas e cinco de homens sonâmbulos, narradas pelos médicos que os trataram. A história da clarividente Weiner, tratada pelo autor, é das mais curiosas. – Ver também os tratados de magnetismo de Dupotet, Deleuze e o livro extremamente curioso: Die Sherin von Prévorst, de Justinis Kerner.







IV

A ORDEM E A DOUTRINA

A cidade de Crotona ocupava a extremidade do golfo de Tarento, perto do promontório Laciniano, diante do alto mar. Era, com Síbaris, a cidade mais florescente da Itália meridional. Era admirada por sua constituição dórica, seus atletas vencedores nos jogos olímpicos, seus médicos rivais dos asclepíades. Os sibaritas devem sua imortalidade ao luxo e à indolência. Os crotoniatas seriam talvez esquecidos, apesar de suas virtudes, se não tivessem tido a glória de oferecer asilo à grande escola de filosofia esotérica, conhecida pelo nome de seita pitagórica, que se pode considerar mãe da escola platônica e avó de todas as escolas idealistas. Por mais nobres que sejam as descendentes, a avó as
supera em muito. A escola platônica procede de uma iniciação incompleta; a escola estóica perdeu a verdadeira tradição. Os outros sistemas de filosofia antiga e moderna são especulações mais ou menos felizes, enquanto que a doutrina de Pitágoras estava baseada em uma ciência experimental e acompanhada de uma organização completa da vida.

Como as ruínas da cidade desaparecida, os segredos da ordem e o pensamento do mestre estão hoje profundamente enterrados.

Procuraremos, contudo, fazê-los reviver. Será para nós ocasião de penetrar no coração da doutrina teosófica, arcano das religiões e das filosofias, e erguer uma ponta do véu de Ísis, com a clareza do gênio grego.

Várias razões levaram Pitágoras a escolher esta colônia dórica para centro da ação. Seu fim não era unicamente ensinar a doutrina esotérica a um círculo de discípulos escolhidos, mas ainda aplicar seus princípios à educação da juventude e à vida do Estado. Esse plano comportava a fundação de um instituto para a iniciação laica, com a intenção oculta de transformar, pouco a pouco, a organização política das cidades, à imagem daquele ideal filosófico e religioso. É certo que nenhuma das repúblicas da Hélade ou do Peloponeso teria tolerado esta inovação. O filósofo foi acusado de conspirar contra o Estado. As cidades gregas do golfo de Tarento, menos minadas pela demagogia, eram mais liberais. Pitágoras não se enganou contando ali encontrar um acolhimento favorável para suas reformas, por parte do Senado de Crotona. Devemos acrescentar que suas pretensões se estendiam para além da Grécia. Adivinhando a evolução das idéias, ele previa a queda do helenismo e sonhava em depositar no espírito humano os princípios de uma religião científica. Fundando sua escola no golfo de Tarento, disseminava as idéias esotéricas na Itália e conservava, no vaso precioso de sua doutrina, a essência purificada da sabedoria oriental para os povos do Ocidente.

Ao chegar a Crotona, que tendia então à vida voluptuosa de sua vizinha, Síbaris, Pitágoras promoveu uma verdadeira revolução. Porfírio e Jamblico nos pintam suas apresentações iniciais mais como as de um
mágico do que de um filósofo. Reuniu os jovens no templo de Apolo e conseguiu, com sua eloquência, arrancá-los do deboche. Reuniu as mulheres no templo de Juno e as persuadiu a levarem suas roupas douradas e seus ornamentos a este mesmo templo, como troféus à derrota da vaidade e do luxo. Cercava de graça a austeridade de seus ensinamentos. De sua sabedoria emanava uma chama comunicativa. A beleza de sua fisionomia, a nobreza de sua pessoa, o encanto de seu rosto e de sua voz completavam sua sedução. As mulheres comparavam-no a Júpiter, os jovens, a Apolo hiperbóreo. Ele cativava, arrebatava a multidão pasmada que o ouvia, fazendo-a apaixonar-se pela virtude e pela verdade.

O Senado de Crotona ou Conselho dos mil inquietou-se com esta ascendência. Intimou Pitágoras a explicar diante dele sua conduta e os meios que empregava para dominar os espíritos. Para Pitágoras, esta foi
uma oportunidade para desenvolver suas idéias sobre a educação e demonstrar que, longe de ameaçar a constituição dórica de Crotona, elas não fariam mais que fortalecê-la.

Quando conquistou para seu projeto os cidadãos mais ricos e a maioria do Senado, propôs-lhes a criação de um instituto, para si e seus discípulos. Essa confraria de iniciados leigos levaria vida comunitária, em um edifício construído especialmente com esse objetivo, mas sem abandonar a vida civil. Entre eles, aqueles que já mereciam o nome de mestres podiam ensinar as ciências físicas, psíquicas e religiosas.

Quanto aos jovens, seriam admitidos nas lições dos mestres e nos diversos graus de iniciação, segundo sua inteligência e boa vontade, sob
o controle do chefe da ordem. Para começar, deviam submeter-se às regras da vida comunitária e passar todo o dia no instituto, sob a supervisão dos mestres. Aqueles que quisessem entrar formalmente na ordem entregariam sua fortuna a um curador, com a liberdade de retomá-la quando lhes aprouvesse. Haveria no Instituto uma fala para as mulheres, com iniciação paralela, mas diferenciada e adaptada aos deveres de seu sexo.

O projeto foi adotado com entusiasmo pelo Senado de Crotona. Alguns anos depois, erguia-se nos arredores da cidade um edifício cercado de imensos pórticos e belos jardins. Os habitantes de Crotona chamaram-no de Templo das Musas, E na realidade havia, no centro da construção, junto à modesta habitação do mestre, um templo dedicado àquelas divindades.

Assim nasceu o instituto pitagórico, que se tornou ao mesmo tempo um colégio de educação, uma academia de ciências e uma pequena cidade-modelo, sob a direção de um grande iniciado, Pela teoria e pela prática, pelas ciências e pelas artes reunidas, chegava-se lentamente à ciência das ciências, à harmonia mágica da alma e do intelecto com o Universo, que os pitagóricos consideravam como o arcano da filosofia e da religião. A escola pitágorica tem para nós um interesse supremo, porque foi a mais notável tentativa de iniciação leiga. Síntese antecipada do helenismo e do cristianismo, ela enxertou o fruto da ciência na árvore da vida; conheceu a realização interna e viva da verdade, que somente a fé profunda pode proporcionar. Realização efêmera, mas de uma importância capital, revelou-se exemplo fecundo.

Para fazermos uma idéia do que foi, penetremos no instituto pitagórico com um noviço e acompanhemos, passo a passo, sua iniciação.

  




AS PROVAS

Brilhava sobre uma colina, entre ciprestes e oliveiras, a alva morada dos irmãos iniciados. Quem viesse de baixo, ladeando a costa, veria seus pórticos, seus jardins, seu ginásio. O templo das Musas ultrapassava as duas alas do edifício com sua colunata circular, de uma
elegância etérea. Do terraço dos jardins exteriores dominava-se a cidade, o Pritaneu, o porto, o local das assembléias. Ao longe, o golfo estendia-se entre as cotas pontiagudas como uma taça de ágata, e o mar Jônio arrematava o horizonte com sua Unha azulada. Algumas vezes viam-se mulheres vestidas de cores diversas saírem da ala esquerda e desceram para o mar, em longas filas, pela alameda dos ciprestes. Iam cumprir seus ritos no templo de Ceres. Frequentemente, também da ala direita viam-se homens, em vestes brancas, subirem para o templo de Apolo. Não era o menor atrativo para a imaginação investigadora da juventude pensar que a escola dos iniciados estava colocada sob a proteção daquelas duas divindades, das quais uma, a Grande Deusa, era possuidora dos mistérios profundos da Mulher e da Terra, e a outra, o Deus solar, revelava os do Homem e do Céu.

Sorria pois acima da cidade populosa a pequena cidade dos eleitos. Sua tranquila serenidade atraía os nobres instintos na juventude, mas nada se via do que se passava no interior, e sabia-se que não era fácil fazer-se admitir ali, Uma simples cerca viva servia como defesa aos jardins pertencentes ao instituto de Pitágoras e a porta de entrada permanecia aberta durante o dia. Porém havia lá uma estátua de Hermes em cujo pedestal se lia: Eskato bébéloi: Para trás os profanos! Todo mundo respeitava esta ordem dos Mistérios.

Pitágoras era muito exigente na admissão dos noviços, dizendo que “nem toda a madeira era própria para fazer um Mercúrio”. Os jovens que quisessem entrar para a associação deviam submeter-se a um período de prova e de ensaio. Apresentados por seus pais ou por um dos mestres, era-lhes permitido, no início, entrar no ginásio pitagórico, onde os noviços entregavam-se aos jogos próprios de sua idade. O jovem notava, ao primeiro olhar, que esse ginásio não se assemelhava ao da cidade. Nada de gritos violentos, nada de grupos brigões, nada da fanfarronice ridícula ou da vã exibição da força dos atletas imaturos, desafiando-se entre si ou mostrando seus músculos. Havia grupos de jovens afáveis e distintos, passeando aos pares sob os pórticos ou jogando na arena. Eles o convidavam com graça e simplicidade a tomar parte em sua conversação, como se fosse um dos seus, sem tolhê-lo com um olhar desconfiado ou um sorriso malicioso. Na arena, exercitava-se a corrida, o arremesso do dardo e do disco. Executavam-se também combates simulados sob forma de danças dóricas; mas Pitágoras. Havia severamente banido de seu instituto a luta corporal, dizendo que era supérfluo e mesmo perigoso desenvolver o orgulho e o ódio com a força e a agilidade; que os homens destinados a praticar as virtudes da amizade não deviam começar por se lançarem por terra, rolando na areia como animais selvagens; que um verdadeiro herói sabia combater com coragem, sem furor; que o ódio nos torna inferiores a qualquer adversário.

O novato ouvia estas máximas do mestre repetidas pelos noviços, muito orgulhosos de lhe comunicarem sua sabedoria precoce. Ao mesmo tempo, eles o exortavam a manifestar suas opiniões, a contradizê-los livremente. Dessa forma estimulado, o pretendente ingênuo mostrava logo, abertamente, sua verdadeira natureza. Feliz por estar sendo ouvido e admirado, ele perorava e se desoprimia à vontade.

Durante todo esse tempo, os mestres observavam-no de perto, sem repreendê-lo. Pitágoras vinha de improviso estudar seus gestos e suas palavras. Dava particular atenção ao modo de andar e ao riso dos jovens. O riso, segundo ele, manifesta o caráter de uma maneira indubitável; nenhuma dissimulação pode embelezar o riso do Homem mau. Ele realizara um estudo tão profundo da fisionomia humana que podia ler no fundo da alma (1).

(1). Orígenes acredita que Pitágoras tenha sido o inventor da fisiognomonia.

Mediante estas observações minuciosas, o mestre fazia uma avaliação precisa de seus futuros discípulos. Após alguns meses vinham as provas decisivas. Imitavam as provas da iniciação egípcia, porém bastante suavizadas e adaptadas à natureza grega, cuja impressionabilidade não suportaria os pavores mortais das criptas de Mênfis e Tebas. Faziam o aspirante pitagórico passar a noite numa caverna, nos arredores da cidade, onde se dizia que havia monstros e aparições. Os que não tinham força para suportar as impressões fúnebres da solidão e da noite, os que recusavam entrar ou fugiam antes da manhã, eram considerados fracos para a iniciação e despedidos.

A prova moral era mais séria. Numa bela manhã, bruscamente, sem nenhuma preparação, encerrava-se o candidato a discípulo numa cela triste e nua. Deixavam-lhe uma ardósia e ordenavam-lhe friamente que encontrasse o significado de um dos símbolos pitagóricos, por exemplo: “O que significa o triângulo inscrito no círculo?” ou “por que o dodecaedro compreendido na esfera é o algarismo do Universo?” Ele passava doze horas na cela. com sua ardósia e seu problema, sem nenhuma outra companhia além de pão seco e um jarro de água.

Depois levavam-no para uma sala, diante dos noviços reunidos. Nessa circunstância, estes tinham ordem de escarnecer sem piedade do infeliz
que, aborrecido e faminto, parecia um culpado. “– Eis, diziam eles, o novo filósofo. Seu semblante parece inspirado! Ele vai nos contar suas meditações. Não nos escondas o que descobriste. Vais passar por todos os símbolos. Com mais um mês deste regime, tu te tornarás um grande sábio!

Nesse momento o mestre observava com profunda atenção as atitudes e a fisionomia do jovem. Irritado pelo jejum, coberto de sarcasmos, humilhado por não ter resolvido um enigma incompreensível, ele precisava fazer um esforço enorme para se dominar. Alguns choravam de raiva, outros respondiam com palavras cínicas; e outros, fora de si, quebravam a ardósia com furor, cobrindo de injúrias a escola, o mestre e seus discípulos. Pitágoras aparecia então e dizia com calma que, tendo suportado tão mal a prova do amor-próprio, pedia-lhe para não mais voltar a uma escola da qual tinha tão mau conceito e cujas virtudes elementares eram a amizade e o respeito aos mestres. O candidato recusado ia embora envergonhado, e algumas vezes tornava-se inimigo terrível da ordem, como o famoso Cilon, que depois amotinou o povo contra os Pitagóricos e contribuiu para a catástrofe da ordem. Aqueles que, ao contrário, suportavam com firmeza os ataques, que respondiam às provocações por meio de reflexões justas e espirituais, e declaravam estar dispostos a recomeçar cem vezes a prova para obterem uma única parcela da sabedoria, estes eram solenemente admitidos no noviciado e recebiam as felicitações entusiastas de seus novos condiscípulos.








PRIMEIRO GRAU – PREPARAÇÃO
O noviciado e a vida pitagórica


Somente então começava o noviciado chamado Preparação (paraskéié), que durava pelo menos dois anos e podia prolongar-se até cinco. Os noviços ou ouvintes (akusikoi) eram submetidos, durante as lições, à regra do absoluto silêncio. Não tinham nem o direito de fazer uma objeção aos mestres, nem de discutir seus ensinamentos. Deviam recebê-los com respeito, e depois meditar longamente sobre eles. Para gravar esta regra no espírito do ouvinte novato, mostravam-lhe uma estátua de mulher envolta num longo véu, com um dedo pousado nos lábios: a Musa do silêncio.

Pitágoras não acreditava que a mocidade fosse capaz de compreender a origem e o fim das coisas. Pensava que exercitá-la na dialética e no raciocínio, antes de ter-lhe dado o sentido da verdade, formaria cabeças vazias e sofistas pretensiosos. Sonhava em desenvolver em seus alunos, antes de tudo, a faculdade primordial e superior do homem: a intuição. E para isso não ensinava coisas misteriosas ou difíceis. Falava dos sentimentos naturais, dos primeiros deveres do homem em sua entrada na vida, e mostrava sua relação com as leis universais. Como inculcava primordialmente nos jovens o amor pelos pais, exaltava este sentimento assimilando a idéia de pai à de Deus, o grande criador do Universo. “Não há nada de mais venerável, dizia, do que a qualidade de pai”. Homero denominou Júpiter rei dos Deuses, mas, para mostrar toda a sua grandeza, denominou-o “pai dos Deuses e dos homens”. Comparava a mãe à natureza generosa e benfeitora. Como Cibele celeste produz os astros, como Deméter gera os frutos e as flores da Terra, assim a mãe nutre a criança com todas as alegrias. O filho devia, pois, honrar em seu pai e em sua mãe os representantes, as imagens terrestres daquelas grandes divindades.

Mostrava ainda que o amor pela pátria vem do amor que se sentiu na infância pela mãe. Os pais não nos são dados por acaso, como acredita o vulgo, mas por uma ordem antecedente e superior, chamada fortuna ou necessidade. É preciso honrá-los, mas deve-se escolher seu amigo.

Os noviços eram convidados a se reunirem dois a dois conforme suas afinidades. O mais jovem devia procurar no mais velho as virtudes que desejava para si e os dois companheiros deviam exercitar-se para uma vida melhor. Dizia o mestre: O amigo é um outro eu. Deve-se honrá-lo como a um Deus”. Se a regra pitagórica impunha ao noviço ouvinte uma submissão absoluta em face dos mestres, devolvia-lhe sua plena liberdade no encanto da amizade, dela fazendo o estimulante de todas as virtudes, a poesia da vida, o caminho do ideal.

As energias individuais eram assim despertadas; a moral tornava-se viva e poética; a regra, aceita com amor, deixava de ser uma violência e tornava-se a própria afirmação da individualidade. Pitágoras queria que a obediência fosse uma aceitação. Além do mais, o ensino moral preparava o ensino filosófico. Pois as relações que se estabeleciam entre os deveres sociais e as harmonias do Cosmos deixavam entrever a lei das analogias e das concordâncias universais. Nesta lei reside o princípio dos Mistérios, da doutrina oculta e de toda a filosofia. O espírito do aluno habituava-se assim a encontrar a marca de uma ordem invisível na realidade visível. Máximas gerais, prescrições sucintas abriam perspectivas sobre este mundo superior. De manhã e à
noite soavam versos dourados aos ouvidos do aluno, com os acordes da
lira: Dedica aos Deuses imortais o culto consagrado, e conserva tua fé.

Comentando-se esta máxima, mostrava-se que os Deuses, diversos na aparência, eram na realidade os mesmos entre todos os povos, pois correspondiam às mesmas forças intelectuais e anímicas, atuantes em todo o Universo. O sábio podia, portanto, honrar os Deuses de sua pátria tendo, de sua essência, uma concepção diferente da do vulgo. Tolerância para com todos os cultos; unidade dos povos na humanidade; unidade das religiões na ciência esotérica. . . Estas idéias
novas se desenhavam vagamente no espírito do noviço, como divindades grandiosas entrevistas no esplendor do poente. E a lira de ouro continuava seus graves ensinamentos: Reverencia a memória, dos heróis-benfeitores, dos espíritos semideuses.

Por trás destes versos, o noviço via reluzir, como que através de um véu, a divina Psiquê, a alma humana. A rota celeste brilhava como um foguete de luz. No culto dos heróis e dos semideuses, o iniciado contemplava a doutrina da vida futura e o mistério da evolução universal. Não se revelava este grande segredo ao noviço. Mas ele era preparado para compreendê-lo, ouvindo falar de uma hierarquia de seres superiores à humanidade, chamados heróis e semideuses, que são seus guias e seus protetores. Acrescentava-se que eles serviam de intermediários entre o homem e a divindade, que por meio deles ele poderia, gradativamente, se aproximar dela, praticando as virtudes heróicas e divinas. “Mas, como se comunicar com estes gênios invisíveis? De onde vem a alma? Para onde vai ela? E por que este sombrio mistério da morte?” O noviço não ousava formular estas questões, mas elas transpareciam em seus olhares. E como única resposta seus mestres mostravam-lhe combatentes na Terra, estátuas nos templos, e almas glorificadas no céu, “na cidadela ígnea dos Deuses”, onde Hércules chegara.

No fundo dos mistérios antigos, todos os Deuses conduziam ao Deus único e supremo. Essa revelação, com todas as suas consequências, era a chave do Cosmos. Por isso ela era inteiramente reservada à iniciação propriamente dita. O noviço nada sabia dela. Só o deixavam entrever esta verdade através do que lhe diziam sobre as potências da Música e do Número. Os números, ensinava o mestre, contêm o segredo das coisas, e Deus é a harmonia universal. Os sete modos sagrados, construídos sobre as sete notas do heptacórdio, correspondem às sete cores da luz, aos sete planetas e aos sete modos de existência que se reproduzem em todas as esferas da vida material e espiritual, desde a menor até a maior. As melodias destes modos, sabiamente infundidas, deviam afinar a alma e torná-la suficientemente harmoniosa para vibrar ao sopro da verdade.

À purificação da alma correspondia necessariamente a do corpo, alcançada pela higiene e pela severa disciplina dos costumes. Vencer as
paixões era o primeiro dever do iniciado. Quem não fez de seu próprio ser uma harmonia não pode refletir a harmonia divina. Entretanto, o ideal da vida pitagórica nada tinha da vida ascética, uma vez que o casamento era considerado uma coisa santa. Porém recomendava-se a castidade aos noviços e a moderação aos iniciados, como um elemento de força e perfeição.Não cedas à volúpia senão quando consentires em ser inferior a ti mesmo”, dizia o mestre. E acrescentava que a volúpia não existe espontaneamente, comparando-a “ao canto das sereias, que desaparecem quando alguém delas se aproxima, deixando no local apenas ossos partidos e carnes ensanguentadas, sobre um recife gasto pelas ondas, ao passo que a verdadeira alegria é semelhante ao concerto das musas, que deixa na alma uma celeste harmonia”.

Pitágoras acreditava nas virtudes da mulher iniciada, mas não confiava na mulher natural. A um discípulo que lhe perguntou quando lhe seria permitido aproximar-se de uma mulher, ele respondeu ironicamente: “Quando estiveres cansado de teu repouso.”

O dia pitagórico ordenava-se da seguinte maneira: assim que o disco ardente do sol saía das ondas azuis do mar Jônio e dourava as colunas do templo das Musas, acima da morada dos iniciados, os jovens pitagóricos, cantavam um hino a Apolo, executando uma dança dórica de caráter másculo e sagrado. Após as abluções de rigor, faziam um passeio ao templo, guardando silêncio. Cada despertar é uma ressurreição, que tem sua flor de inocência. A alma devia recolher-se no começo do dia e permanecer virgem para a lição da manhã. No bosque sagrado, agrupavam-se em torno do mestre ou de seus intérpretes, e a lição decorria sob a frescura das grandes árvores ou à sombra dos pórticos. Ao meio-dia faziam uma prece aos heróis, aos gênios benfazejos. A tradição esotérica supunha que os bons espíritos preferem se aproximar da terra com os raios do sol, enquanto os maus espíritos procuram a sombra e se espalham na atmosfera quando vem a noite. A refeição frugal do meio-dia compunha-se geralmente de pão, mel e azeitonas. A tarde era consagrada aos exercícios de ginástica, depois ao estudo, à meditação e a um trabalho mental sobre a lição da manhã.

Após o pôr-do-sol faziam uma oração coletiva, cantavam um hino aos Deuses cosmogônicos, a Júpiter celeste, a Minerva Providência, a Diana protetora dos mortos. Durante esse tempo, o estirax, o maná ou o incenso queimavam no altar ao ar livre, e o hino, misturado ao perfume
que dali exalava, subia docemente ao crepúsculo, enquanto as primeiras estrelas varavam o pálido firmamento. O dia terminava com a refeição da noite, depois da qual o mais jovem fazia uma leitura comentada pelo mais velho.

Assim decorria o dia pitagórico, límpido com uma fonte, claro como uma manhã sem nuvens. O ano se ritmava segundo as grandes festas astronômicas. Assim a volta de Apolo hiperbóreo e a celebração dos mistérios de Ceres reuniam os noviços e os iniciados de todos os graus, homens e mulheres. Viam-se ali moças tocando liras de marfim, mulheres casadas em peplos púrpura e açafrão executando coros alternados, acompanhados de cantos, com movimentos harmoniosos da estrofe e da ante-estrofe, que mais tarde foram imitados pela tragédia.

Em meio destas grandes festas, em que a divindade parecia presente na graça das formas e dos movimentos, na melodia incisiva dos coros, o noviço tinha como que um pressentimento das forças ocultas, das leis todo-poderosas do Universo animado, do céu profundo e transparente.

Os casamentos, os ritos fúnebres tinham um caráter mais íntimo, não menos solene. Uma cerimônia original era realizada para impressionar a
imaginação. Quando um noviço saía voluntariamente do instituto para retomar a vida vulgar, ou quando um discípulo havia traído um segredo da doutrina, o que aconteceu somente uma vez, os iniciados erguiam-lhe um túmulo no recinto consagrado, como se ele tivesse morrido. O mestre dizia: “Ele está mais morto do que os mortos, pois voltou para a vida má; seu corpo passeia entre os homens, mas sua alma está morta. Choremos por ela”. E este túmulo, erguido para um ser vivo, perseguia-o como seu próprio fantasma e como um sinistro augúrio.







SEGUNDO GRAU – PURIFICAÇÃO (2)
Os Números. - A Teogonia.


(2). Katharsis (Catarse) em grego.

Era um dia feliz, “um dia de ouro”, como diziam os antigos, aquele em que Pitágoras recebia o noviço em sua morada e o aceitava solenemente nas fileiras de seus discípulos. O noviço entrava primeiro em contatos seguidos e diretos com o mestre. Penetrava no pátio interno de sua habitação, reservado a seus fiéis. Daí o nome de esotéricos (os de dentro) oposto ao de exotéricos (os de fora). A verdadeira iniciação começava.

Essa revelação consistia numa exposição completa e racional da doutrina oculta, desde seus princípios contidos na ciência misteriosa dos números até às últimas consequências da evolução universal, os destinos e os fins supremos da divina Psiquê, da alma humana. Esta ciência dos números era conhecida sob diversos nomes nos templos do Egito e da Ásia. Como ela fornecia a chave de toda a doutrina, escondiam-se cuidadosamente do vulgo. As cifras, as letras, as figuras geométricas ou as representações humanas que serviam de sinais àquela álgebra do mundo oculto só eram entendidas pelo iniciado. Este somente revelava o seu significado ao adepto depois do juramento do silêncio.

Pitágoras formulou esta ciência em um livro escrito pessoalmente chamado hiéros logos, a palavra sagrada. Este livro não chegou até nós.

Mas os escritos posteriores dos pitagóricos, Filolaus, Arquitas e Hiérocles, os diálogos de Platão, os tratados de Aristóteles, de Porfírio e de Jamblico, dão-nos a conhecer seus princípios. Se eles permaneceram ocultos, para os filósofos modernos, é porque só se pode compreender seu significado e seu alcance pela comparação de todas as doutrinas esotéricas do Oriente.

Pitágoras chamava seus discípulos de matemáticos, porque seu ensinamento superior começava pela doutrina dos números. Esta matemática sagrada, ou ciência dos princípios, era ao mesmo tempo mais transcendente e mais viva do que a matemática profana, a única conhecida por nossos sábios e filósofos. Nela, o número não era considerado uma quantidade abstrata, mas a virtude intrínseca e ativa do uno supremo, de Deus, fonte da harmonia universal. A ciência dos números era a das forças vivas, das faculdades divinas em ação nos mundos e no homem, no macrocosmo e no microcosmo...

Penetrando-as, distinguindo-as e explicando seu jogo, Pitágoras elaborava nada menos do que uma teogonia ou urna teologia racional.

Uma teologia verdadeira deveria fornecer os princípios de todas as ciências. Ela só será a ciência de Deus se mostrar a unidade e o encadeamento das ciências da natureza. Só merece este nome sob a condição de constituir o órgão e a síntese de todas as outras. Ora, era justamente esta a função que desempenhava nos templos egípcios a ciência do verbo sagrado, formulada e aperfeiçoada por Pitágoras, sob o nome de ciência dos números. Ela acreditava poder fornecer a chave do ser, da ciência e da vida. O adepto, guiado pelo mestre, devia começar por contemplar-lhe os princípios com sua própria inteligência, antes de seguir suas múltiplas aplicações na imensidade concêntrica das esferas da evolução.

Um poeta moderno pressentiu esta verdade, quando fez Fausto descer até as Mães, para dar vida ao fantasma de Helena. Fausto toma a chave mágica, a Terra abre-se a seus pés, a vertigem dele se apodera, e ele mergulha na vida dos espaços. Finalmente, chega ao reino das Mães, que vigiam as formas originárias do grande Todo e fazem brotar os seres do molde dos arquétipos. Estas Mães são os Números de Pitágoras, as forças divinas do mundo. O poeta transmitiu-nos a comoção de seu próprio pensamento diante deste mergulho nos abismos do Insondável. Para o iniciado antigo, em que a visão direta da inteligência despertava pouco a pouco como um novo sentido, esta revelação interior parecia antes uma ascensão ao grande sol incandescente da Verdade, de onde ele contemplava, na plenitude da Luz, os seres e as formas, projetados no turbilhão das vidas por uma irradiação vertiginosa.

Não se chegava em um só dia a esta posse interna da verdade, em que o homem realiza a vida universal pela concentração de suas faculdades. Eram necessários anos de exercício, e a concordância tão difícil da inteligência e da vontade. Antes de manipular a palavra criadora – e quão poucos ali chegam! – é preciso soletrar o verbo sagrado, letra por letra, sílaba por sílaba Pitágoras tinha o hábito de ministrar estes ensinamentos no templo das Musas. Os magistrados de Crotona mandaram-no construir, atendendo a seu pedido expresso e conforme suas indicações, muito perto de sua morada, em um jardim fechado. Os discípulos do segundo grau ali penetravam sozinhos com o mestre. No interior do templo circular viam-se as nove Musas em mármore. De pé, no centro, velava Héstia, envolta num véu, solene e misteriosa. Com a mão esquerda ela protegia a chama de um lume, com a mão direita mostrava o céu. Para os gregos como para os romanos, Héstia ou Vesta é a guardiã do princípio divino presente em todas as coisas. Consciência do fogo sagrado, ela tem seu altar no templo de Delfos, no Pritaneu de Atenas, no lume menor. No santuário de Pitágoras, ela simbolizava a Ciência divina e central ou Teogonia. Ao redor dela, as Musas esotéricas traziam, além de seus nomes tradicionais e mitológicos, o nome das ciências ocultas e das artes sagradas, que elas guardavam. Urânia representava a astronomia e a astrologia; Polínia, a ciência das almas da outra vida e a arte da adivinhação; Melpômene, com sua máscara trágica, a ciência da vida e da morte, transformações e renascimentos.

Estas três Musas superiores reunidas constituíam a cosmogonia ou física celeste. Calíope, Clio e Euterpe presidiam à ciência do homem ou psicologia, com as artes correspondentes: Medicina, Magia, Moral. O último grupo, Terpsícore, Erato e Tália, abrangia a física terrestre, a ciência dos elementos, das pedras, das plantas e dos animais. Assim, num primeiro estágio, o organismo das ciências, calcado sobre o organismo do Universo, aparecia ao discípulo no círculo vivo das Musas iluminadas pela chama divina.

Depois de ter conduzido seus discípulos àquele pequeno santuário, Pitágoras abria o livro do Verbo e começava seu ensinamento esotérico. As Musas, dizia ele, são apenas as efígies terrestres dos poderes divinos, cuja beleza imaterial e sublime ides agora contemplar em vós mesmos. Assim como elas vêem o Fogo de Héstia, do qual emanam e que lhes dá o movimento, o ritmo e a melodia, assim também deveis mergulhar no Fogo central do Universo, no Espírito divino, para expandir-vos com ele nas suas manifestações visíveis”. Então, com mão forte e audaciosa, Pitágoras arrancava seus discípulos ao mundo das formas e das realidades. Apagava o tempo e o espaço e os fazia descer com ele até a grande Mônada, a essência do Ser incriado.

Pitágoras denominava o Uno primeiro, composto de harmonia, o Fogo masculino que atravessa tudo, o Espírito que se move por si, o Indivisível e o grande Não-Manifesto, cujos mundos efêmeros manifestam o pensamento criador, o único, o Eterno, o Imutável, oculto sob as coisas múltiplas que passam e que mudam. “A essência em si mesma escapa ao homem, diz o pitagórico Filolaus. Ele somente conhece as coisas deste mundo, onde o finito se combina com o infinito.

E como pode conhecê-las? Porque há entre ele e as coisas uma harmonia, uma relação, um princípio comum. Esse princípio lhe é dado pelo Uno, o qual lhe dá, com sua essência, a medida e a inteligibilidade.

Ele é a medida comum entre o objeto e o sujeito, a razão das coisas pela qual a alma participa da razão última do Uno (3)”. Mas, como se aproximar d’Ele, do Ser que não se pode apreender? Alguém já viu o mestre do tempo, a alma dos sóis, a fonte das inteligências? Não. E somente confundindo-se com ele é que se penetra em sua essência. Ele é semelhante a um fogo invisível colocado no centro do Universo, cuja chama ágil circula em todos os mundos e movimenta a circunferência.


(3). Na matemática transcendental, demonstra-se algebricamente que zero multiplicado pelo infinito é igual a Um. Zero, na ordem das idéias absolutas, significa o Ser indeterminado. O Infinito, o Eterno, na linguagem dos templos, marcava-se por um círculo ou por uma serpente a morder a cauda. Isto significava o Infinito movendo-se por si mesmo. Ora, no momento em que Infinito se determina, ele produz todos os números que contém em sua grande unidade e que governa numa harmonia perfeita.
Este é o sentido transcendente do primeiro problema da teogonia pitagórica, a razão pela qual a grande Mônada contém todas as pequenas e todos os números brotam da grande unidade em movimento.


Acrescentava que a obra da iniciação consistia em aproximar-se do grande Ser, assemelhando-se a ele, tornando-se tão perfeito quanto possível, dominando as coisas pela inteligência, chegando a ser ativo como ele e não passivo como elas. Vosso próprio Ser, vossa alma, não é um microcosmo, um pequeno Universo? Mas ela está repleta de tempestades e discórdias. Pois bem, trata-se de realizar a unidade da harmonia. Então, somente então, Deus descerá em vossa consciência e participareis de seu poder, e fareis de vossa vontade a pedra do lar, o altar de Héstia, o trono de Júpiter!”

Portanto, Deus, a substância indivisível, tem por número a Unidade que contém o Infinito, por nome o de Pai, de Criador ou de Eterno-Masculino, por sinal o Fogo vivo, símbolo do Espírito, essência do Todo. Eis o primeiro dos princípios.

Mas as faculdades divinas são semelhantes ao lótus místico que o iniciado egípcio, deitado em seu sepulcro, vê surgir na negra noite. A princípio não passa de um ponto brilhante, depois abre-se como uma flor e o centro incandescente desabrocha como uma rosa de luz com mil
pétalas.

Pitágoras dizia que a grande Mônada age como Díada criadora.

No momento em que se manifesta, Deus é duplo, essência indivisível e substância divisível; princípio masculino ativo, animador, e princípio feminino passivo ou matéria plástica animada. A Díada representava, pois, a união do Eterno-Masculino e do Eterno-Feminino em Deus, as duas faculdades divinas essenciais e correspondentes. Orfeu exprimira profeticamente essa idéia no seguinte verso:

Júpiter é o Esposo e a Esposa divina.

Intuitivamente, todos os politeísmos tiveram consciência desta idéia, representando a Divindade ora sob a forma masculina, ora sob a forma feminina.

E esta Natureza viva, eterna, esta grande Esposa de Deus, não é somente a natureza terrestre, mas a natureza celeste invisível a nossos olhos carnais, a Alma do mundo, a Luz primordial, alternadamente Maia, Ísis. e Cibele, que, vibrando sob o impulso divino, encerra as essências de todas as almas, os tipos espirituais de todos os seres. Em seguida é Deméter, a terra viva e todas as terras com os corpos que encerram, em que aquelas almas vêm se encarnar. É depois a Mulher, companheira do Homem. Na humanidade a Mulher representa a Natureza; e a imagem perfeita de Deus não é só o Homem, mas o Homem e a Mulher. Daí sua invencível, sedutora e fatal atração; daí a embriaguez e o Amor, onde se representa o sonho das criações infinitas e o obscuro pressentimento de que o Eterno-Masculino e o Eterno-Feminino gozam de uma união perfeita no seio de Deus. “Honra, portanto, à Mulher, sobre a terra e no céu”, dizia Pitágoras com todos os
iniciados antigos; “ela nos faz compreender a grande Mulher, a Natureza. Que ela seja sua imagem santificada e que nos ajude a galgar os degraus que nos levam até a grande Alma do Mundo, que gera, conserva e renova, até a divina Cibele, que arrasta a multidão das almas em seu manto de luz.”

A Mônada representa a essência de Deus; a Díada, sua faculdade geradora e reprodutora. Esta gera o mundo, manifestação visível de Deus no espaço e no tempo. Ora, o mundo real é tríplice. Porque, assim como o homem se compõe de três elementos distintos, mas fundidos um no outro: o corpo, a alma e o espírito, assim também o Universo é dividido em três esferas concêntricas: o mundo natural, o mundo humano e o mundo divino. A Tríada ou lei do ternário é, portanto, a lei constitutiva das coisas e a verdadeira chave da vida, pois ela se acha em todos os graus da escada da vida, desde a constituição da célula orgânica, através da constituição fisiológica do corpo animal, do funcionamento do sistema sangüíneo e do sistema cerebrospinal, até a constituição hiperfísica do homem, a do universo e de Deus. Assim, como por encanto ela abre ao espírito maravilhado a estrutura interna do Universo. Mostra as correspondências infinitas do macrocosmo e do microcosmo. Age como uma luz, que passaria nas coisas para torná-las transparentes, e faz reluzir os mundos pequenos e grandes como outras tantas lanternas mágicas.

Expliquemos esta lei pela correspondência essencial do homem e do Universo.

Pitágoras admitia que o espírito do homem ou do intelecto conserva de Deus sua natureza imortal, invisível, absolutamente ativa: o espírito é aquilo que se move por si mesmo. Ele considera o corpo sua parte mortal, divisível e passiva. Pensava que aquilo que chamamos alma está estreitamente unido ao espírito, formado porém de um terceiro elemento intermediário que provém do fluido cósmico. A alma se assemelha, portanto, a um corpo etéreo que o espírito tece e constrói para si mesmo. Sem este corpo etéreo, o corpo material não poderia se manifestar e não passaria de uma massa inerte e sem vida (4). A alma tem uma forma semelhante à do corpo que ela vivifica, e a ele sobrevive após a dissolução ou morte. Ela se torna então, segundo expressão de Pitágoras, repetida por Platão, o carro sutil que leva o espírito às esferas divinas ou deixa-o cair nas regiões tenebrosas da matéria, conforme seja mais ou menos boa ou má. Ora, a constituição e a evolução do homem repetem-se em círculos crescentes em toda a escala dos seres e em todas as esferas. Assim como a humana Psiquê luta contra o espírito que a atrai e o corpo que a retém, também a humanidade evolui entre o mundo natural e animal, em que mergulha por meio de suas raízes terrestres, e o mundo divino dos puros espíritos, onde está sua fonte celeste e à qual ela aspira elevar-se. E o que se passa na humanidade ocorre em todas as terras e em todos os sistemas solares, em proporções sempre diversas, em modos sempre novos. Estendei o círculo até o infinito – e, se puderdes, abrangei com um só conceito os mundos sem limite. O que encontrareis ali? O pensamento criador, o fluido astral e dos mundos em evolução: o espírito, a alma e o corpo da divindade. Levantando véu por véu e sondando as faculdades da própria divindade, lá vereis a Tríada e a Díada envolvendo-se na sombria profundidade da Mônada como uma florescência de estrelas nos abismos da imensidade.

(4). Encontra-se doutrina idêntica no iniciado São Paulo, que fala do corpo espiritual.


Por esta rápida exposição, pode-se perceber a importância capital que Pitágoras atribuía à lei do ternário. Pode-se dizer que ela constitui a pedra angular da ciência esotérica. Todos os grandes iniciadores religiosos tiveram consciência disto, todos os teósofos o pressentiram.







Um oráculo de Zoroastro diz:

O número três por toda a parte reina no Universo.

E a Mônada é seu princípio.

O mérito incomparável de Pitágoras é ter formulado esta lei com a clareza do gênio grego. Fez dela o centro de sua teogonia e o fundamento das ciências. Já velada nos escritos esotéricos de Platão e completamente incompreendida pelos filósofos posteriores, esta concepção somente foi compreendida, nos tempos modernos, por alguns raros iniciados das ciências ocultas(5). Vê-se desde então que base larga e sólida a lei do ternário universal oferecia à classificação das
ciências, à edificação da cosmogonia e da psicologia.

(5). Como primeiro dessa série deve-se citar Fabre d'Olivet (Vers dores de Pythagore). Esta concepção viva das forças do Universo, atravessando-o de alto a baixo, nada tem a ver com as especulações vazias dos puros metafísicos, como, por exemplo, a tese, a antítese e a síntese de Hegel, simples jogos do espírito.


Assim como o ternário universal se concentra na unidade de Deus ou na Mônada, também o ternário humano se concentra na consciência do eu e na vontade, que reúne todas as faculdades do corpo, da alma e do espírito em sua viva unidade. O ternário humano e divino resumido na Mônada constitui a Tétrada sagrada. Mas o homem só realiza sua própria unidade de uma maneira relativa. Pois sua vontade, que age sobre todo o seu ser, não pode, entretanto, agir simultânea e plenamente em seus três órgãos, ou seja, no instinto, na alma e no intelecto. O universo e o próprio Deus apenas lhe aparecem alternada e
sucessivamente refletidos por estes três espelhos:

1. Visto através do instinto e do caleidoscópio dos sentidos, Deus é múltiplo e infinito como suas manifestações. Daí o politeísmo, onde o número dos deuses não é limitado;

2. Visto através da alma racional, Deus é duplo, isto é, espírito e matéria. Daí o dualismo de Zoroastro, dos maniqueus e de várias outras
religiões;

3. Visto através do intelecto puro, ele é triplo, ou seja, espírito, alma e corpo, em todas as manifestações do universo. Daí os cultos trinitários da Índia (Brahma, Visnu, Siva) e a própria trindade do cristianismo (Pai, Filho, Espírito Santo);

4. Concebido pela vontade que resume o todo, Deus é único; é o monoteísmo hermético de Moisés em todo o seu rigor. Aqui, nada de personificações, nada de encarnação. Saímos do universo visível e entramos no Absoluto. O Eterno reina só sobre o mundo reduzido a pó.

A diversidade das religiões provém, portanto, do fato de que o homem só realiza a divindade através do seu próprio ser, que é relativo e finito, enquanto Deus realiza a todo instante a unidade dos três mundos da harmonia do Universo.

Esta última aplicação demonstraria, por si só, a virtude, de certa forma mágica, do Tetragrama na ordem das idéias. Não somente aí se encontravam os princípios das ciências, a lei dos seres e seu modo de evolução, mas ainda a razão das religiões diversas e de sua unidade superior. Era verdadeiramente a chave universal. Daí o entusiasmo com
que Lísis dela fala no Vers dorés; e compreende-se agora por que os Pitagóricos juravam por este grande símbolo:

Juro por aquele que gravou em nossos corações
A Tétrada sagrada, imenso e puro símbolo,
Fonte da Natureza e modelo dos Deuses.

Pitágoras levava muito mais longe o ensino dos números. Em cada um deles definia um princípio, uma lei, uma força ativa do Universo. Mas afirmava que os princípios essenciais estão contidos nos quatro primeiros números, uma vez que adicionando-os ou multiplicando-os obtêm-se todos os outros. Do mesmo modo a infinita variedade dos seres que compõem o Universo é produzida pelas combinações das três forças primordiais: matéria, alma, espírito, sob o impulso criador da unidade divina que os mistura e os diferencia, concentra-os e ativa-os. Como os principais mestres da ciência esotérica, Pitágoras atribuía grande importância ao número sete e ao número dez. Sete, sendo composto de três e de quatro, significa a união do homem com divindade. É a cifra dos adeptos, dos grandes iniciados, e, como exprime a realização completa em qualquer coisa por sete graus, ele representa a lei da evolução. O número dez, formado pela adição dos quatro primeiros e que contém o precedente, é o número perfeito por excelência, pois representa todos os princípios da divindade evoluídos e reunidos numa nova unidade.

Terminando o ensino de sua teogonia, Pitágoras mostrava aos discípulos as nove Musas, personificando as ciências, agrupadas três a três, presidindo ao tríplice ternário evoluído em nove mundos, e formando, com Héstia, a Ciência divina, guardiã do Fogo primordial: a Década sagrada.

 






TERCEIRO GRAU – PERFEIÇÃO(6)
Cosmogonia e psicologia. – A evolução da alma.


(6). Em grego: Teleiótés.


O discípulo recebera do mestre os princípios da ciência. Esta primeira iniciação havia derrubado as escamas espessas da matéria que encobriam os olhos de seu espírito. Descerrando o véu brilhante da mitologia, ela o arrancara ao mundo visível para lançá-lo loucamente nos espaços sem limites e mergulhá-lo no sol da Inteligência, de onde a
Verdade se irradia sobre os três mundos.

Mas a ciência dos números era apenas o preâmbulo da grande iniciação. Armado desses princípios, o discípulo iria agora descer das alturas do Absoluto para as profundezas da natureza, para lá colher o pensamento divino na formação das coisas e na evolução da alma através dos mundos. A cosmogonia e a psicologia esotéricas atingiam os maiores mistérios da vida, segredos perigosos e cuidadosamente guardados, das ciências e das artes ocultas. Por isso Pitágoras gostava de dar essas lições longe da luz profana, à noite, na praia, nos terraços do templo de Ceres, ao murmúrio leve do mar jônico, de uma cadência melodiosa, sob as distantes fosforescências do Cosmo estrelado; ou então, nas criptas do santuário, onde candeias egípcias de nafta espalhavam uma claridade uniforme e suave. As mulheres iniciadas assistiam a estas reuniões noturnas. Algumas vezes, sacerdotes ou sacerdotisas, procedentes de Delfos ou de Elêusis, vinham confirmar os ensinamentos do mestre pela narrativa de suas experiências ou pela  palavra lúcida do sono clarividente.

A evolução material e espiritual do mundo são dois movimentos inversos, mas paralelos e concordantes em toda a escalada do ser. Um não se explica sem o outro, e, vistos em conjunto, explicam o mundo. A evolução material representa a manifestação de Deus na matéria pela alma do mundo que a elabora. A evolução espiritual representa a elaboração da consciência das mônadas individuais e suas tentativas de
se reunirem, através do ciclo das vidas, ao espírito divino do qual emanam. Ver o Universo do ponto de vista físico ou do ponto de vista espiritual não é considerar dois objetos diferentes; é considerar o mundo pelos dois pólos opostos. Do ponto de vista terrestre, a explicação racional do mundo deve começar pela evolução material, uma vez que é sob este ângulo que ele nos aparece; mas, fazendo-nos ver o trabalho do Espírito universal na matéria e acompanhar o desenvolvimento das mônadas individuais, esta explicação conduz insensivelmente ao ponto de vista espiritual e nos faz passar do lado de fora para o lado de dentro das coisas, do avesso para o direito do mundo.

Assim, pelo menos, procedia Pitágoras, que considerava o Universo um ser vivo, animado por uma grande alma e penetrado por uma grande inteligência. A segunda parte de seu ensino começava, portanto, pela cosmogonia.

De acordo com as divisões do céu que constam dos fragmentos esotéricos dos pitagóricos, sua astronomia seria semelhante à astronomia de Ptolomeu: a Terra imóvel e o Sol girando ao redor, com os planetas e o céu todo. Mas o princípio mesmo desta astronomia nos adverte de que ela é puramente simbólica. No centro de seu Universo, Pitágoras coloca o Fogo (do qual o Sol é apenas um reflexo). Ora, em todo o esoterismo do Oriente o Fogo é o sinal representativo do Espírito, da Consciência divina, universal. O que nossos filósofos consideram geralmente como a Física de Pitágoras e de Platão não vai além de uma descrição metafórica de sua filosofia secreta, luminosa para os iniciados mas completamente impenetrável ao vulgo, fazendo-a passar, portanto, por uma simples física. Porém, devemos procurar nela uma espécie de cosmografia da vida das almas, e não outra coisa. A região sublunar designa a esfera onde se exerce a atração terrestre e é chamada o círculo das gerações. Os iniciados entendiam que a Terra é para nós a região da vida corporal. Nela se dão todas as operações que acompanham a encarnação e a desencarnação das almas. A esfera dos seis planetas e do Sol corresponde às categorias ascendentes de espíritos. O Olimpo, concebido como uma esfera rolante, é chamado o céu dos inalteráveis, por ser assimilado à esfera das almas perfeitas.

Essa astronomia infantil encobre, portanto, uma concepção do Universo
espiritual.

Todavia, tudo nos leva a crer que os antigos iniciados, e particularmente Pitágoras, tinham do Universo físico noções muito mais exatas. Aristóteles diz positivamente que os Pitagóricos acreditavam no movimento da Terra ao redor do Sol. Copérnico afirma que a idéia da rotação da Terra em tomo de seu eixo veio-lhe lendo, em Cícero, que um certo Hicetas, de Siracusa, mencionara o movimento diurno da Terra. A seus discípulos do terceiro grau, Pitágoras ensinava o duplo movimento da Terra. Sem dispor das medidas exatas da ciência moderna, ele sabia, como os sacerdotes de Mênfis que os planetas resultantes do Sol giram em torno dele; que as estrelas são outros sistemas solares governados pelas mesmas leis que o nosso e cada um dos quais tem seu lugar no imenso Universo. Sabia também que cada mundo solar forma um pequeno universo que tem sua correspondência no mundo espiritual e seu céu próprio. Os planetas serviam para marcar essa escala. Porém estas noções, que teriam subvertido a mitologia popular e que a multidão teria tachado de sacrílegas, jamais eram abordadas na escritura vulgar. Ensinavam-nas somente sob o mais profundo segredo (7).


(7). Certas definições estranhas, sob forma de metáfora, que nos foram transmitidas que provêm do ensinamento secreto do mestre, deixam entrever, em seu sentido oculto, a concepção grandiosa que Pitágoras tinha do Cosmo.
Falando das constelações, ele chamava a grande e a pequena Ursa de: as mãos de Réa-Cibele. Ora, Réa-Cibele significa esotericamente a luz astral que rola, a divina esposa do fogo universal ou do Espírito criador que, concentrando-se nos sistemas solares, atrai as essências imateriais dos seres, apodera-se delas e faz com que entrem no turbilhão das vidas. – Ele chamava também os planetas de os cães de Proserpina. Esta expressão singular só tem sentido esotericamente. Proserpina, a deusa das almas, presidia sua encarnação na matéria. Pitágoras chamava os planetas de cães de Proserpina porque eles guardam as almas encarnadas como o Cérbero mitológico guarda as almas no inferno.


O Universo visível, dizia Pitágoras, o céu com todas as suas estrelas, é só unia forma passageira da alma do mundo, da grande Maia, que concentra a matéria esparsa nos espaços infinitos, depois a dissolve e espalha como fluido cósmico imponderável. Cada turbilhão solar possui uma parcela dessa alma universal, que evolui em seu seio durante milhões de séculos, com força de impulsão e medida especiais.

Quanto às potências, aos reinos, aos espaços e às almas vivas que aparecerão sucessivamente nos astros desse pequeno mundo, elas vêm de Deus, descendem do Pai. Isto é, como de uma evolução material anterior de um sistema solar extinto. Dessas potências invisíveis, algumas, absolutamente imortais, dirigem a formação deste mundo; outras aguardam sua eclosão no sono cósmico ou no sonho divino, para
entrarem nas gerações visíveis, segundo sua posição e segundo a lei eterna. Entretanto, a alma solar e seu fogo central, que move diretamente a grande Mônada manipulam a matéria em fusão. Os planetas são filhos do Sol. Cada um deles, elaborado pelas forças de atração e de rotação inerentes à matéria, está dotado de uma alma semiconsciente nascida da alma solar e tem seu caráter distinto, sua função particular na evolução. Como cada planeta é uma expressão diversa do pensamento de Deus, como exerce uma função especial na cadeia planetária, os antigos sábios identificaram os nomes dos planetas com os dos grandes deuses, que representam as faculdades divinas em ação no Universo.

Os quatro elementos, de que são formados os astros e todos os seres, designam quatro estados graduados da matéria. O primeiro, sendo mais denso e mais pesado, é o mais refratário ao espírito; o último, sendo o mais refinado, apresenta com ele grande afinidade. A Terra representa o estado sólido; a água, o estado líquido; o ar, o estado gasoso; o fogo, o estado imponderável. O quinto elemento, o elemento etérico, representa um estado tão sutil e vivaz da matéria que não é mais atômico, e é dotado de penetração universal. É o fluido cósmico originário, a luz astral ou a alma do mundo.

Pitágoras falava também a seus discípulos do Egito e da Ásia.

Sabia que a Terra em fusão era primitivamente cercada por uma atmosfera gasosa, que, liquefeita por seu resfriamento sucessivo, tinha formado os mares. Conforme seu hábito, ele resumia metaforicamente esta idéia, dizendo que os mares eram produzidos pelas lágrimas de Saturno (o tempo cósmico).

Mas eis os reinos aparecendo, os germes invisíveis flutuando na aura etérea da terra, turbilhonando em seu invólucro gasoso, e depois sendo atraídos para o seio profundo dos mares e sobre os primeiros continentes que emergiram. Os mundos vegetal e animal, ainda confundidos, apareceram quase ao mesmo tempo. A doutrina esotérica admite a transformação das espécies animais, não somente segundo a lei secundária da seleção, mas ainda segundo a lei primária da percussão da Terra pelas potências celestes, e de todos os seres vivos pelos princípios inteligíveis e pelas forças invisíveis. Quando uma espécie nova aparece no globo, é que uma raça de almas de um tipo superior se encarna em dada época nos descendentes da espécie antiga, para fazê-la subir um degrau, remoldando-a e transformando-a à sua imagem. É assim que a doutrina esotérica explica o aparecimento do homem na Terra.

Do ponto de vista da evolução terrestre, o homem é a última ramificação e o coroamento de todas as espécies anteriores. Porém este ponto de vista não é suficiente para explicar sua entrada em cena, como
não seria suficiente para explicar o aparecimento da primeira alga ou do
primeiro crustáceo no fundo dos mares. Todas essas criações sucessivas supõem, como cada nascimento, a percussão da Terra pelos poderes invisíveis que criam a vida. A criação do homem supõe o reino anterior de uma humanidade celeste, que preside à eclosão da humanidade terrestre e envia-lhe, como ondas de uma maré formidável, novas torrentes de almas que se encarnam em seus flancos e fazem brilhar os primeiros raios de uma luz divina naquele ser saturado de animalidade, forçado para viver, a lutar com todas as potências da natureza.

Pitágoras, formado pelos templos do Egito, tinha noções precisas sobre as grandes revoluções do globo. A doutrina indiana e egípcia conhecia a existência do antigo continente austral que produzira a raça vermelha e uma poderosa civilização, chamada Atlântida pelos gregos.

Atribuía a emergência e a imersão alternada dos continentes à oscilação dos pólos, e admitia que a humanidade tenha atravessado assim seis dilúvios. Cada ciclo interdiluviano resulta na predominância de uma grande raça humana. No meio dos eclipses parciais da civilização e das faculdades humanas, existe um movimento geral ascendente.

Eis, pois, a humanidade constituída e as raças que seguem sua evolução através dos cataclismos do globo. E sobre este globo que acreditamos ser a base imutável do mundo e que flutua por si mesmo levado no espaço, sobre estes continentes que emergem dos mares para novamente desaparecerem no meio desses povos que passam, dessas civilizações que se desmoronam, qual é o grande, o pungente, o eterno mistério? É esse o grande problema interior, aquele de cada um e de todos. E o problema da alma, que descobre em si mesma um abismo de trevas e de luz, que se contempla com uma mistura de encantamento e de pavor e se diz: “Eu não sou deste mundo, pois ele não é suficiente para me explicar. Não venho da Terra; vou para outro lugar. Mas para onde?” É o mistério de Psiquê, no qual se encerram todos os outros.

A cosmogonia do mundo visível, dizia Pitágoras, nos conduziu à história da Terra, e esta, ao mistério da alma humana. Com ele chegamos ao santuário dos santuários, ao arcano dos arcanos. Uma vez despertada sua consciência, a alma se transforma por si mesma no mais extraordinário dos espetáculos. Mas esta consciência é apenas a superfície iluminada de seu ser, onde ela pressente abismos obscuros e insondáveis. Em sua profundidade desconhecida, a divina Psiquê contempla, com olhar fascinado, todas as vidas e todos os mundos: passado, presente e futuro que a eternidade reúne. “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo dos Deuses.” Eis o segredo dos sábios iniciados. Mas, para penetrar por esta porta estreita da imensidão do Universo invisível, despertemos em nós a vida reta da alma purificada e armemo-nos do facho da inteligência da ciência dos princípios e dos Números sagrados.

Pitágoras passava assim da cosmogonia física à cosmogonia espiritual. Após a evolução da Terra, ele narrava a evolução da alma através dos mundos. Fora da iniciação, esta doutrina é conhecida sob o nome de transmigração das almas. Sobre nenhuma outra parte da doutrina oculta se têm dito maiores disparates do que sobre aquela, de tal forma que a literatura antiga e moderna só a conhecem por meio de deturpações pueris. O próprio Platão que, de todos os filósofos, mais contribuiu para popularizá-la, dela nos deu apenas interpretações fantasiosas e às vezes extravagantes, talvez pelo fato de sua prudência ou de seus juramentos terem-no impedido dizer tudo o que sabia.

Poucas pessoas imaginam hoje que esta doutrina possa ter tido para os
iniciados um aspecto científico, ou possa ter aberto perspectivas infinitas e dado à alma consolações divinas. A doutrina da vida ascensional da alma através da série das existências é o traço comum das tradições esotéricas e o coroamento da teosofia. Acrescento que ela tem para nós uma importância capital. Atualmente, o homem rejeita com igual desprezo a imortalidade abstrata e vaga da filosofia e o céu infantil da religião primária. No entanto, a sequidão e a nulidade do materialismo lhe causam horror. Ele aspira inconscientemente à consciência de uma imortalidade orgânica, que corresponda ao mesmo tempo às exigências de sua razão e às necessidades indestrutíveis de sua alma. Compreende-se, de resto, porque os iniciados das religiões antigas, mesmo tendo completo conhecimento destas verdades, mantiveram-nas tão secretas. Pois elas são de natureza a provocar vertigem nos espíritos não cultivados. Ligam-se estreitamente aos profundos mistérios da geração espiritual, dos sexos e da geração da carne, de que dependem os destinos da humanidade futura.

Portanto, esperava-se com uma espécie de frêmito aquele momento decisivo do ensinamento esotérico. Pela palavra de Pitágoras, como por um lento encantamento, a matéria espessa parecia perder seu peso, as coisas da Terra tornavam-se transparentes, as do céu, visíveis ao espírito. Esferas azuis e douradas, sulcadas de essências luminosas, desenrolavam seus orbes até o infinito.

Nessa hora os discípulos, homens e mulheres, agrupavam-se em torno do mestre, em uma parte subterrânea do templo de Ceres chamada cripta de Proserpina, e escutavam com uma emoção palpitante a história celeste de Psiquê.

O que é a alma humana? Uma parcela da grande alma do mundo, uma centelha do espírito divino, uma Mônada imortal. Mas, se seu possível futuro abre-se nos esplendores insondáveis da consciência divina, sua misteriosa eclosão remonta às origens da matéria organizada. Para tornar-se o que é na humanidade atual, foi preciso que ela atravessasse todos os reinos da natureza, toda a escala dos seres, desenvolvendo-se gradualmente por uma série de inumeráveis existências. O espírito que fermenta os mundos e condensa a matéria cósmica em massas enormes manifesta-se com intensidades diversas e uma concentração sempre maior nos reinos sucessivos da natureza.

Força cega e indistinta no mineral, individualizada na planta, polarizada na sensibilidade e no instinto dos animais, ela tende para a Mônada consciente nessa lenta elaboração. E a Mônada elementar é visível no mais inferior dos animais. O elemento anímico e espiritual existe, pois, em todos os reinos, embora somente em quantidade infinitesimal nos reinos superiores. As almas que existem em estado de germes nos reinos inferiores aí permanecem sem sair, durante imensos períodos. E só depois de grandes revoluções cósmicas é que elas passam para um reino superior, mudando de planeta. Tudo o que elas podem fazer durante o período de vida num planeta é subir algumas espécies.

Onde começa a mônada? Seria o mesmo que perguntar a hora em que se formou a nebulosa, ou um sol brilhou pela primeira vez. Seja como for, o que constitui a essência de qualquer homem teve de evoluir durante milhões de anos, através de uma cadeia de planetas e reinos inferiores, conservando, porém, através de todas essas existências um princípio individual que a acompanha por toda a parte. Esta individualidade obscura, mas indestrutível, constitui a marca divina da mônada, na qual Deus quer manifestar-se pela consciência.

Quanto mais ascende na série dos organismos, mais a mônada desenvolve os princípios latentes que já possui. A força polarizada torna-se sensível; a sensibilidade torna-se instinto, e o instinto, inteligência. E à medida que se acende a chama vacilante da consciência esta alma torna-se mais independente do corpo, mais capaz de levar uma existência livre. A alma fluida e não polarizada dos minerais e dos vegetais está ligada aos elementos da Terra. A dos animais, fortemente atraída pelo fogo terrestre, ali permanece certo tempo após deixar seu cadáver; depois volta para a superfície do globo, para se reencarnar em sua espécie, sem jamais abandonar as baixas camadas do ar. Estas são povoadas de elementos ou almas animais, que desempenham sua função na vida atmosférica e uma grande influência oculta sobre o homem.

Somente a alma humana vem do céu e para lá retorna após a morte.

Mas em que época de sua longa existência cósmica a alma elementar tornou-se humana? Qual cadinho incandescente, qual chama etérea lhe teria possibilitado tal passagem? Essa transformação só seria possível, num período interplanetário, pelo reencontro de almas humanas já plenamente formadas, que desenvolveram na alma elementar seu princípio espiritual e lhe imprimiram seu divino protótipo como uma marca de fogo em sua substância plástica.

Mas quantas viagens, quantas encarnações, quantos ciclos planetários ainda a atravessar para que a alma humana, assim formada, se torne o homem que conhecemos! Segundo as tradições esotéricas da Índia e do Egito, os indivíduos que compõem a humanidade atual teriam começado sua existência humana em outros planetas, onde a matéria é muito menos densa do que no nosso. O corpo do homem era então quase vaporoso; suas encarnações, rápidas e fáceis. Suas faculdades de percepção espiritual direta teriam sido muito poderosas e sutis naquela primeira fase humana. A razão e a inteligência, ao contrário, estariam em estado embrionário. Neste estado semicorporal, semi-espiritual, o homem via os espíritos, tudo era esplendor e encanto para seus olhos, música para seus ouvidos. Ele ouvia até a harmonia das esferas. Não pensava, não refletia, quase não queria. Deixava-se viver, bebendo os sons, as formas e a luz, flutuando, como em um sonho, da vida para a morte e da morte para a vida. Eis os que os órficos chamavam o céu de
Saturno. Foi só encarnando-se em planetas cada vez mais densos, segundo a doutrina de Hermes, que o homem se materializou.

Encarnando-se em uma matéria mais espessa, a humanidade perdeu seu sentido espiritual. Mas, mediante luta cada vez mais forte com o mundo exterior, ela desenvolveu poderosamente a razão, a inteligência e a vontade. A Terra é o último degrau dessa descida na matéria, que Moisés chama de saída do paraíso, e Orfeu, de queda do círculo sublunar. Daí o homem pode voltar a subir penosamente os círculos em uma série de existências novas e recuperar seus sentidos espirituais, por meio do livre exercício do intelecto e da vontade. Somente então, dizem os discípulos de Hermes e de Orfeu, o homem adquire, por sua ação, a consciência e a posse do divino. Somente então ele se torna filho de Deus. E aqueles que, na Terra, tiveram este nome precisaram, antes de aparecerem entre nós, de descer e tornar a subir a terrível espiral.

O que é, pois, a humilde Psiquê, em sua origem? Um sopro que passa, um germe que flutua, um pássaro levado pelos ventos, que emigra de existência em existência. Entretanto, de naufrágio em naufrágio, através de milhões de anos, ela tornou-se a filha de Deus e não reconhece outra pátria além do céu! Eis por que a poesia grega, de um simbolismo tão profundo e tão luminoso, comparou a alma ao inseto alado: ora verme da terra, ora borboleta celeste. Quantas vezes tem ela sido crisálida e quantas vezes, borboleta? Jamais o saberá, mas sente que possui asas!

Tal é o vertiginoso passado da alma humana. Ele nos explica sua condição presente e nos permite entrever seu futuro.

Qual é a situação da divina Psiquê na vida terrestre? A menor reflexão mostra que seria impossível imaginar algo mais estranho e mais trágico. Desde que, penosamente, despertou na atmosfera espessa da Terra, a alma sentiu-se enlaçada nas sinuosidades do corpo. Não vive, não respira, não pensa, senão através dele. Entretanto, o corpo não é a alma. À medida que se desenvolve, ela sente crescer em si mesma uma luz vacilante, algo invisível e imaterial que ela chama seu espírito, sua consciência. Sim, o homem possui o sentimento inato de sua tríplice natureza, pois que ele distingue, em sua própria linguagem instintiva, corpo e alma; a alma e o espírito. Porém a alma cativa e atormentada se
debate entre seus dois companheiros, como no amplexo de uma serpente de mil anéis e um gênio invisível que a chama, mas cuja presença só se faz sentir pelas batidas de asas e por clarões fugidios.

Ora, este corpo a absorve a tal ponto que ela só vive através de suas sensações e paixões. Ela rola com ele nas orgias sangrentas da cólera ou na grosseira embriaguez das volúpias carnais, até que ela mesma se espante consigo pelo silêncio profundo do companheiro invisível.

Atraída por este, a alma se perde em tal elevação de pensamento que esquece a existência do corpo, até que ele lhe recorde sua presença mediante um apelo tirânico. E, no entanto, uma voz interior lhe diz que entre ela e o hóspede invisível o liame é indissolúvel, enquanto a morte romperá sua ligação com o corpo. E, sacudida entre os dois em sua luta eterna, a alma busca inutilmente a felicidade e a verdade. Inutilmente ela busca a si mesma nas sensações que passam, nos pensamentos que lhe escapam, no mundo que se modifica como uma miragem. Não encontrando nada que dure, atormentada, arrastada como uma folha ao vento, ela duvida de si mesma e de um mundo divino que apenas se revela por sua dor e sua incapacidade para atingi-lo.

A ignorância humana está escrita nas contradições dos pretensos sábios, e a tristeza humana, na sede insondável do olhar humano.

Enfim, qualquer que seja a extensão de seus conhecimentos, o nascimento e a morte encerram o homem entre dois limites fatais. São duas portas de trevas, além das quais ele nada vê. A chama de sua vida se acende ao entrar por uma, e se extingue ao sair por outra. Dar-se-ia o mesmo com a alma? Se não, o que lhe acontecerá?

A resposta que os filósofos já deram a esse problema pungente tem sido muito diversa. A dos teosofistas iniciados de todos os tempos é essencialmente a mesma. Está de acordo com o sentimento universal e com o espírito íntimo das religiões, que exprimiram a verdade apenas em forma de símbolos ou superstições. A doutrina esotérica abre perspectivas bem mais vastas e suas afirmações relacionam-se com as leis da evolução universal.

Eis o que os iniciados, instruídos pela tradição e por inúmeras experiências da vida psíquica, têm dito ao homem: o que se agita em ti, o que chamas tua alma, é um duplo etéreo do corpo, que encerra em si mesmo um espírito imortal. O espírito constrói e tece para si, por sua própria atividade, seu corpo espiritual. Pitágoras denomina-o o carro sutil da alma, porque ele está destinado a transportá-lo da terra após a morte. Este corpo espiritual é o órgão do espírito, seu invólucro sensitivo, seu instrumento volitivo, e serve para animar o corpo, que sem ele permaneceria inerte. Nas aparições dos moribundos ou mortos, esse duplo torna-se visível. Mas isto supõe sempre, no vidente, um estado nervoso especial. A sutileza, a potência, a perfeição do corpo espiritual variam segundo a qualidade do espírito que ele encerra. E existe entre as substâncias das almas, tecidas na luz astral mas impregnadas dos fluidos imponderáveis da terra e do céu, nuances mais
numerosas, diferenças maiores do que entre todos os corpos terrestres e
todos os estados da matéria ponderável. Esse corpo astral, embora muito mais sutil e mais perfeito que o corpo terrestre, não é imortal. como a Mônada que ele contém. Muda, apura-se, de acordo com os meios que atravessa. O espírito molda-o, transforma-o perpetuamente à sua imagem, mas jamais o abandona. Se dele se despoja pouco a pouco, é para se revestir de substâncias mais etéreas.

Isto ensinava Pitágoras, que não concebia a entidade espiritual abstrata, a mônada sem forma. O espírito em ato, tanto no fundo dos céus como na terra, deve ter um órgão. Esse órgão é a alma viva, bestial
ou sublime, obscura ou radiosa, mas com a forma humana, a imagem de Deus.

O que acontece quando sobrevém a morte? No limiar da agonia, a alma geralmente pressente sua separação do corpo. Revê toda sua existência terrestre em quadros resumidos, em rápida sucessão e com assustadora nitidez. Mas quando a vida se esgota e cessa no cérebro, ela se perturba e perde totalmente a consciência. Se é uma alma santa e pura, seus sentidos espirituais já estão despertados pelo desligamento gradual da matéria. Antes de morrer, de alguma maneira, talvez pela introspecção de seu próprio estado, ela já teve o pressentimento da presença de outro mundo. Perante as solicitações silenciosas, os apelos longínquos, os vagos raios do Invisível, a terra já Perdeu sua consistência. E quando a alma escapa, enfim, do cadáver frio, feliz por sua libertação, sente arrebatar-se em meio a uma intensa luz, para a família espiritual à qual pertence.

Mas o mesmo não acontece com o homem comum, cuja vida se dividiu entre os instintos materiais e as aspirações superiores. Ele desperta semiconsciente, como no torpor de um pesadelo. Não tem mais braços para apertar, nem voz para gritar, mas recorda, sofre, existe em um limbo de trevas e de pavor. A única coisa que percebe é a presença de seu cadáver, do qual está desligado, mas pelo qual ainda experimenta uma invencível atração, pois, é por seu intermédio que vivia. E agora, o que é ele? Procura-se com pavor nas fibras geladas de seu cérebro, no sangue congelado de suas veias, e não se encontra mais. Está morto? Está vivo? Queria ver, queria agarrar-se a alguma coisa. Mas não vê, não toca em nada. As trevas o envolvem. Ao redor dele, nele, tudo é caos. Vê apenas uma coisa, e esta coisa o atrai e causa-lhe horror... a fosforescência sinistra de seu próprio despojo... E o pesadelo recomeça.

Este estado pode prolongar-se por meses, anos. Sua duração depende da força dos instintos materiais da alma. Porém, boa ou má, infernal ou celeste, essa alma pouco a pouco tomará consciência de si mesma e de seu novo estado. Uma vez livre do corpo, ela se evadirá nos sorvedouros da atmosfera terrestre, cujas correntes elétricas transportam-na de um lado para outro, onde ela começa a perceber os errantes multiformes, mais ou menos semelhantes e ela mesma, como se fossem clarões fugazes em uma bruma espessa. Começa então uma luta vertiginosa, enfurecida, da alma ainda entorpecida, para subir às camadas superiores do ar, para livrar-se da atração terrestre e alcançar no céu de nosso sistema planetário a região que lhe é própria e que somente guias amigos podem mostrar-lhe. Mas até que possa ouvi-los e vê-los decorre um longo tempo. Esta fase da vida da alma tem recebido nomes diversos nas religiões e nas mitologias. Moisés denomina-a Horeb; Orfeu, Erebo; o cristianismo, Purgatório ou o vale da sombra da morte. Os iniciados gregos identificavam-na com o cone de sombra que a terra arrasta sempre atrás de si e que vai até a lua, denominando-a, por esta razão, o abismo de Hécate. Nesse poço tenebroso turbilhonam, segundo os órficos e os pitagóricos, as almas que procuram, por meio de esforços desesperados, alcançar o círculo da lua, e que a violência dos ventos torna a lançar aos milhares para a Terra. Homero e Virgílio comparam-nas a turbilhões de folhas, a bandos de pássaros enlouquecidos pela tempestade.

A lua desempenhava um grade papel no esoterismo antigo. Em sua face voltada para o céu, supunha-se que as almas purificavam seu corpo astral antes de continuarem sua ascensão celeste. Supunha-se também que os heróis e os gênios permaneciam algum tempo em sua face voltada para a terra, a fim de se revestirem de um corpo apropriado ao nosso mundo antes de se reencarnarem. Também se atribuía à Lua o poder de magnetizar a alma para a encarnação terrestre e de desmagnetizá-la para o céu. De maneira geral, estas asserções, às quais
os iniciados atribuíam um sentido ao mesmo tempo real e simbólico, significavam que a alma deve passar por um estado intermediário de purificação e se desembaraçar das impurezas da terra antes de prosseguir sua viagem.

Porém, como descrever a chegada da alma pura em seu mundo? A Terra desapareceu como um sonho. Um sono novo, um desvanecimento delicioso envolve a alma, como uma carícia. Ela nada mais vê a não ser o seu guia alado, que a leva com a rapidez de um relâmpago pelas profundezas do espaço. O que dizer de seu despertar nos vales de um astro etéreo, sem a elementar atmosfera, onde tudo, montanhas, flores, vegetação, se constitui de uma natureza deliciosa, sensível e eloquente? O que dizer, sobretudo, das formas luminosas, homens e mulheres, que  a cercam como uma procissão sagrada, para iniciá-la no santo mistério de sua nova vida? São deuses ou deusas? Não, são almas como ela mesma.

E a maravilha está em que o pensamento íntimo delas desabrocha-lhes na face; que a ternura, o amor, o desejo ou o temor brilham através daqueles corpos diáfanos numa gama de colorações luminosas. Ali, corpos e faces não são mais as máscaras da alma, mas a alma transparente aparece em sua forma verdadeira e brilha no dia claro de sua verdade pura. Psiquê reencontrou sua pátria divina; pois a luz secreta onde ela se banha, que dela emana e que volta para ela no sorriso dos bem-amados e das bem-amadas, aquela luz de felicidade é a
alma do mundo... ela sente ali a presença de Deus! Agora não haverá mais obstáculos. Ela amará, saberá, viverá, sem qualquer outro limite que não seja seu próprio impulso. Que felicidade estranha e maravilhosa! Sente-se unida a todas as suas companheiras por afinidades profundas. Porque na vida do além aqueles que não se amam
se evitam e só aqueles que se compreendem se procuram. Ela celebrará com as outras os divinos mistérios em templos mais belos, numa comunhão mais perfeita. Surgirão poemas vivos sempre renovados, onde cada alma será uma estrofe e onde cada uma reviverá sua existência na das outras. Depois, fremente, ela se lançará para a luz do alto, atendendo ao apelo dos Enviados, dos Gênios alados, daqueles que
se chamam Deuses porque escaparam do círculo das gerações.

Conduzida por estas inteligências sublimes, ela se esforçará para soletrar o grande poema do Verbo oculto, para compreender o que puder apreender da sinfonia do universo. Receberá os ensinamentos hierárquicos dos círculos do Amor divino; procurará ver as Essências que derramam nos mundos os Gênios animadores; contemplará os espíritos glorificados, raios vivos do Deus dos Deuses, e não poderá suportar seu esplendor ofuscante, que faz empalidecer os sóis como se fossem lâmpadas enfumaçadas! E quando, espantada, ela voltar dessas viagens resplandecentes – pois estremece diante daquelas imensidões –,
ouvirá ao longe o apelo das vozes amadas e recairá nas plagas douradas
de seu astro, sob o véu róseo de um sono embalador, pleno de formas brancas, de perfumes e melodia.

Assim é a vida celeste da alma que nosso espírito adensado pela Terra mal consegue imaginar, mas que os iniciados adivinham, os videntes vêem e a lei das analogias e das concordâncias universais demonstra. Nossas imagens grosseiras, nossa linguagem imperfeita tentam em vão traduzi-la, mas cada alma viva sente-lhe o germe em suas profundezas ocultas. Se, no estado atual, nos é impossível realizá-la, a filosofia do oculto formula suas condições psíquicas. A idéia de astros etéreos, invisíveis para nós, mas constitutivos de nosso sistema solar e que servem de morada às almas felizes, encontra-se frequentemente nos arcanos da tradição esotérica. Pitágoras denomina-a uma contrapartida da Terra: a antichtone iluminada pelo Fogo central, isto é, pela luz divina. No final do Fédon, Platão descreve longamente, embora de forma disfarçada, essa terra espiritual. Diz que ela é leve como o ar e cercada por uma atmosfera etérea.

Na outra vida, a alma conserva, portanto, toda sua individualidade. De sua existência terrestre, ela só guarda lembranças nobres e deixa as outras caírem no esquecimento que os poetas chamaram as ondas do Lethê. Liberta de suas nódoas a alma humana sente sua consciência retornar. De fora do Universo ela voltou para seu interior. Cibele-Maia, a alma do mundo, retomou-a em seu seio com uma aspiração profunda. Ali Psiquê realizará seu sonho, aquele sonho interrompido a todo o instante e recomeçado sem cessar na Terra. Ela o realizará na medida de seu esforço terrestre e de sua luz conquistada, mas amplia-lo-á ao cêntuplo. As esperanças esmagadas reflorescerão na aurora de sua vida divina. Os sombrios poentes da Terra se abrasarão em radiosos clarões. Sim, que o homem só tenha vivido uma hora de entusiasmo ou de abnegação, esta única nota pura, arrancada à gama dissonante de sua vida terrestre, se repetirá em seu além em progressões maravilhosas, em harmonias eolianas. As felicidades fugidias que obtemos dos encantamentos da música, dos êxtases do amor ou dos transportes da caridade são apenas as notas debulhadas de uma sinfonia que ouviremos então. Será que esta vida é apenas um longo sonho, uma grandiosa alucinação? Porém o que há de mais verdadeiro do que aquilo
que a alma sente em si mesma e que ela realiza mediante sua comunhão divina com outras almas? Os iniciados, que são idealistas consequentes e transcendentes, sempre pensaram que as únicas coisas reais e duráveis da Terra são as manifestações da Beleza, do Amor e da Verdade espirituais. Como o Além não pode ter outro objeto que não seja essa Verdade, essa Beleza e esse Amor, para aqueles que deles fizeram o objeto de sua vida, eles estão persuadidos de que o céu será mais verdadeiro do que a Terra.

A vida celeste da alma pode durar centenas ou milhares de anos, de acordo com sua posição e sua força impulsora. Mas cabe apenas às mais perfeitas, às mais sublimes, àquelas que atravessaram o círculo das gerações, prolongá-la indefinidamente. Estas não somente atingiram o repouso temporário, mas a ação imortal na verdade.

Criaram suas próprias asas. São invioláveis, porque são a luz.

Governam os mundos, porque veem através deles. Quanto às outras, são levadas, por uma lei inflexível, a se reencarnarem para se submeterem a uma nova prova elevando-se a um escalão superior ou caindo mais baixo ainda, se falharem.

Como a vida terrestre, a vida espiritual tem seu começo, seu apogeu e sua decadência. Quando esta vida se esgota, a alma sente-se dominada por lentidão, vertigem e melancolia. Uma força invencível a atrai de novo para as lutas e os sofrimentos da Terra. Esse desejo é um misto de apreensões terríveis e de imensa dor por deixar a vida divina.

Mas chegou a hora. A lei deve ser cumprida. O peso aumenta, a escuridão a invade e só vê suas companheiras luminosas através de um véu, que cada vez mais espesso a faz pressentir a separação iminente.

Ouve seus tristes adeuses. As lágrimas das bem-aventuranças que ama penetram-na como um orvalho celeste que deixará em seu coração a sede ardente de uma felicidade desconhecida. Então, com juramentos solenes, ela promete recordar. . . recordar a luz no mundo das trevas, a verdade no mundo da mentira, o amor no mundo do ódio. A volta, a coroa imortal, só existe a este preço!

Ela desperta numa atmosfera espessa. Astro etéreo, almas diáfanas, oceanos de luz, tudo desapareceu. Ei-la de volta à Terra, no abismo do nascimento e da morte. Entretanto ela ainda não perdeu a lembrança celeste, e o guia alado, ainda visível a seus olhos, mostra-lhe a mulher que será sua mãe. Esta traz dentro de si o germe de uma criança. E este germe só viverá se um espírito vier animá-lo. Então, durante nove meses, realiza-se o mistério mais impenetrável da vida terrestre: a encarnação e a maternidade.

A fusão misteriosa opera-se lentamente, sabiamente, órgão por órgão, fibra por fibra. À medida que a alma mergulha nesse antro quente embebido de vapor e pululante, à medida que se sente presa nos meandros das vísceras de mil pregas, a consciência de sua vida divina apaga-se e extingue-se; pois entre ela e a luz do alto interpõem-se as ondas do sangue, os tecidos da carne que a estreitam e envolvem em trevas. Aquela luz longínqua já não é mais do que um clarão agonizante.

Afinal, uma dor horrível comprime-a, aperta-a num torno. Uma convulsão sangrenta arranca-a à alma materna e fixa-a num corpo palpitante. A criança nasceu, miserável efígie terrestre, e grita de pavor.

Mas a lembrança celeste penetrou nas profundezas ocultas do Inconsciente, e só reviverá pela Ciência ou pela Dor, pelo Amor ou pela Morte!

A lei da encarnação e da desencarnação revela-nos pois o verdadeiro sentido da vida e da morte. Constitui o núcleo essencial na evolução da alma, e nos permite acompanhá-la para trás e para frente, até o mais profundo da natureza e da divindade; pois essa lei nos revela o ritmo e a medida, a razão e o fim de sua imortalidade. Abstrata ou fantástica, ela torna-a viva e lógica, mostrando as correspondências da vida e da morte. O nascimento terrestre é uma morte do ponto de vista espiritual; a morte, uma ressurreição celeste. A alternância das duas vidas é necessária ao desenvolvimento da alma, e cada uma das duas é ao mesmo tempo a consequência e a explicação da outra. Todo aquele que se penetrou dessas verdades encontra-se no coração dos mistérios, no centro da iniciação.

Entretanto, perguntarão, o que nos prova a continuidade da alma, da mônada, da entidade espiritual através de todas essas existências, uma vez que delas ela perde sucessivamente a memória?

E o que vos prova, responderemos, a identidade da vossa personalidade, durante a vigília e durante o sono? Despertais cada manhã de um estado tão estranho, tão inexplicável como a morte. Ressuscitais desse nada para recair nele à noite. Era o nada? Não. Pois sonhastes, e vossos sonhos foram para vós tão reais quanto a realidade da vigília. Uma alteração das condições fisiológicas do cérebro modificou as relações entre a alma e o corpo e deslocou vosso ponto de vista psíquico. Permanecestes o mesmo indivíduo, mas estivestes em outro meio e vivestes outra existência. Nos magnetizados, nos sonâmbulos e nos clarividentes, o sono desenvolve faculdades novas que nos parecem miraculosas, mas que são as faculdades naturais da alma desligada do corpo. Uma vez despertos, esses clarividentes não se lembram mais do que viram, do que disseram ou fizeram durante o sono lúcido. Mas em outro de seus sonos recordam-se perfeitamente do que aconteceu no sono anterior, e predizem às vezes com exatidão matemática o que acontecerá no próximo. Parecem ter duas consciências, duas vidas alternadas inteiramente distintas, cada uma com sua continuidade racional, envolvendo uma mesma individualidade como cordões de cores diversas em torno de um fio invisível.

Foi pois num sentido bastante profundo que os antigos poetas iniciados denominaram o sono o irmão da morte. Um véu de esquecimento separa o sono da vigília, como o nascimento da morte. E assim como nossa existência terrestre divide-se em duas partes sempre alternadas, também a alma se alterna, na imensidão de sua evolução cósmica, entre a encarnação e a vida espiritual, entre a terra e os céus.

Essa passagem alternativa de um plano do Universo para outro, essa inversão dos pólos de seu ser não é menos necessária ao desenvolvimento da alma do que a alternativa da vigília e do sono é necessária à vida corporal do homem. Temos necessidade das ondas do Lethê ao passar de uma existência para outra. Nesta, um véu salutar nos esconde o passado e o futuro. O esquecimento porém não é total, e a luz atravessa o véu. As idéias inatas provam, por si sós, uma existência anterior. Todavia há mais: nascemos com um mundo de vagas recordações, de impulsos misteriosos, de pressentimentos divinos. Em crianças nascidas de pais mansos e tranquilos às vezes irrompem paixões selvagens que o atavismo não é suficiente para explicar e que vêm de uma existência precedente. Nas vidas mais humildes muitas vezes há inexplicáveis e sublimes fidelidades a um sentimento, a uma idéia. Não virão elas das promessas e dos juramentos da vida celeste?

Pois a lembrança oculta que dela a alma guardou é mais forte do que todas as razões terrestres. Conforme se prenda a esta lembrança ou a abandone, ela vence ou sucumbe. A verdadeira fé é aquela muda fidelidade da alma a si mesma. Compreende-se assim que Pitágoras, como todos os teósofos, tenha considerado a vida corporal como uma elaboração necessária da vontade, e a vida celeste como um crescimento espiritual e uma realização.

As vidas sucedem-se e não se assemelham, mas encadeiam-se com uma lógica impiedosa. Se cada uma delas tem sua lei própria e seu destino especial, sua sequencia é regida por uma lei geral que se poderia chamar de repercussão das vidas (8). Segundo esta lei, as ações de uma vida repercutem fatalmente na seguinte. Não somente o homem renascerá com os instintos e as faculdades que desenvolveu em sua precedente encarnação, mas o próprio gênero de sua existência será determinado em grande parte pelo bom ou mau emprego que ele teria feito de sua liberdade na vida anterior. Não há palavra, não há ação que não tenha eco na eternidade, diz um provérbio. Segundo a doutrina esotérica, esse provérbio aplica-se literalmente de uma vida à outra.

(8). A lei chamada Karma, dos brâmanes e budistas.

Para Pitágoras, as injustiças aparentes do destino, as deformidades, as misérias, os golpes da sorte, as infelicidades de todo gênero encontram sua explicação no fato de cada existência ser a recompensa ou o castigo da precedente. Uma vida criminosa engendra uma vida de expiação; uma vida imperfeita, uma vida de provas. Uma vida boa determina uma missão; uma vida superior, uma missão criadora. A sanção moral, que se aplica com imperfeição aparente do ponto de vista de uma única existência, aplica-se, no entanto, com perfeição admirável e justiça minuciosa na série de existências. Nessa série pode haver progressão rumo à espiritualidade e à inteligência, como pode haver progressão rumo à bestialidade e à matéria. À medida que a alma progride, adquire maior participação na escolha de suas reencarnações. A alma inferior submete-se. A alma média escolhe entre aquelas que lhe são oferecidas.

A alma superior, que se impõe uma missão, elege-a por devotamento.

Quanto mais a alma se eleva, mais ela conserva em suas encarnações a consciência clara, irrecusável, da vida espiritual, que reina além de nosso horizonte terrestre, que a envolve como uma esfera de luz e envia seus raios em nossas trevas. A tradição pretende mesmo que os iniciadores de primeira linha, os divinos profetas da humanidade, tenham recordado suas precedentes vidas terrestres. Segundo a lenda, Gautama Buda, Sáquia-Muni, teria encontrado em seus êxtases o fio das suas existências passadas. E conta-se que Pitágoras dizia dever a um favor especial dos Deuses o fato de lembrar-se de algumas de suas vidas anteriores.

Já dissemos que, na série das vidas, a alma pode retroceder ou avançar, conforme se entregue à sua natureza inferior ou à divina. Daí uma consequência importante, cuja verdade a consciência humana sempre sentiu com um estremecimento estranho. Em todas as existências há lutas a sustentar, escolhas a fazer, decisões a tomar, cujos resultados são incalculáveis. Mas, na rota ascendente do bem, que atravessa uma série considerável de encarnações, deve existir uma vida, um ano, um dia, uma hora talvez, em que a alma, alcançando a plena consciência do bem e do mal, pode elevar-se, por um derradeiro e supremo esforço, a uma altura tal que não terá mais de descer, iniciando o caminho dos pináculos. O mesmo acontece no caminho descendente do mal. Há um ponto do qual a alma perversa pode ainda voltar.

Contudo, uma vez transposto esse ponto, a insensibilidade é definitiva. De existência em existência, ela rolará até o fundo das trevas e perderá sua humanidade. O homem tornar-se-á demônio, o demônio, animal, e sua indestrutível mônada será forçada a recomeçar a penosa, assustadora evolução através da série dos reinos ascendentes e inumeráveis existências. Eis o verdadeiro inferno, segundo a lei da evolução. E não é ele tão terrível e até mais lógico que o das religiões esotéricas?

A alma pode, portanto, subir ou descer na série das vidas. Quanto à humanidade terrestre, sua marcha opera-se segundo a lei de uma progressão ascendente, que faz parte da ordem divina. Esta verdade, que supomos ser descoberta recente, era conhecida e ensinada nos Mistérios antigos. “Os animais são parentes do homem e o homem é parente dos deuses”, dizia Pitágoras. Ele desenvolvia filosoficamente o que ensinavam também os símbolos de Elêusis: o progresso dos reinos ascendentes, a aspiração do mundo vegetal ao mundo animal, do mundo animal ao mundo humano e a sucessão, na humanidade, de raças cada vez mais perfeitas. Esse progresso não se realiza de maneira uniforme, mas em ciclos regulares e crescentes, contidos uns nos outros. Cada povo tem sua juventude, sua maturidade e seu declínio. Ocorre o mesmo com raças inteiras: a raça vermelha, a raça negra e a raça branca, têm reinado sucessivamente no globo. A raça branca, ainda em plena juventude, não atingiu sua maturidade em nossos dias.

Em seu apogeu, ela desenvolverá, no próprio seio, uma raça aperfeiçoada, pelo restabelecimento da iniciação e pela seleção espiritual dos casamentos.

Assim se sucedem as raças, assim progride a humanidade. Os iniciados antigos iam muito mais longe do que os modernos em suas previsões.

Admitiam que chegaria um momento em que a grande massa  dos indivíduos que compõem a humanidade atual passaria a um outro planeta, a fim de lá começar um novo ciclo. Na série dos ciclos que constituem a cadeia planetária, a humanidade inteira desenvolverá os princípios intelectuais, espirituais e transcendentes que os grandes iniciados cultivaram em si mesmos já nesta vida, e os levará assim a uma florescência mais geral. Não é preciso dizer que tal desenvolvimento abrange não somente milhares, mas milhões de anos, e que provocará mudanças inimagináveis na condição humana. Para caracterizá-las, Platão disse que nesse tempo os Deuses habitarão realmente os templos dos homens. É lógico admitir que na cadeia planetária, isto é, nas evoluções sucessivas de nossa humanidade em outros planetas, suas encarnações se tornem de uma natureza cada vez mais etérea, o que as aproximará insensivelmente do estado puramente espiritual, daquela oitava esfera que está fora do círculo das gerações, e pela qual os antigos teósofos designavam o estado divino. É natural também que, não tendo todos o mesmo impulso, pois muitos ficam no caminho ou caem fora, o número dos eleitos vá diminuindo sempre nessa prodigiosa ascensão. Ela causa vertigem a nossas inteligências limitadas pela Terra; mas as inteligências celestes contemplam-na sem medo, como nós contemplamos uma única vida.

A evolução das almas, assim compreendida, não estaria de acordo com a unidade do Espírito, o princípio dos princípios; com a homogeneidade da Natureza, a lei das leis; com a continuidade do movimento, a força das forças? Visto através do prisma da vida espiritual, um Sistema Solar não constitui somente um mecanismo material, mas um organismo vivo, um reino celeste, em que as almas viajam de mundo em mundo como o próprio sopro de Deus que o anima.

Qual é pois o fim último do homem e da humanidade, segundo a doutrina esotérica? Após tantas vidas, mortes, renascimentos, calmarias e despertares pungentes, existirá um término para os labores de Psiquê?

Sim, dizem os iniciados, quando a alma tiver definitivamente vencido a matéria; quando, desenvolvendo todas as suas faculdades espirituais, ela tiver encontrado em si mesma o princípio e o fim de todas as coisas.

Então, não sendo mais necessária a encarnação, ela entrará no estado divino, mediante sua união completa com a inteligência divina. Se mal podemos pressentir a vida espiritual da alma após cada vida terrestre, como poderemos imaginar esta vida perfeita que deverá resultar de toda
a série de suas existências espirituais? O céu dos céus será para suas venturas precedentes o que o Oceano é para os rios. Para Pitágoras, a apoteose do homem não era a imersão na inconsciência, mas a atividade criadora na consciência suprema. A alma transformada em puro espírito não perde sua individualidade; completa-a, pois reúne-se a seu arquétipo em Deus. Ela se lembra de todas as existências anteriores, que lhe parecem outros tantos degraus para atingir o degrau máximo, de onde ela abrange e penetra o universo. Nesse estado, o homem não é mais homem, como dizia Pitágoras. É semideus; porque reflete em todo o seu ser a luz inefável, com a qual Deus preenche toda a imensidade.

Para ele, saber é poder; amar é criar; ser é irradiar a verdade e a beleza. E esse término, será ele definitivo? A Eternidade espiritual tem outras medidas além do tempo solar. Mas tem também suas etapas, suas normas e seus ciclos. Acontece apenas que eles ultrapassam inteiramente as concepções humanas. Porém a lei das analogias progressivas nos reinos ascendentes da natureza permite-nos afirmar que o espírito, tendo chegado a este estado sublime, não pode mais voltar atrás e que se os mundos visíveis mudam e passam, o mundo invisível, que é sua razão de ser, sua fonte e sua embocadura – e do qual participa a divina Psiquê –, é imortal.

Com essas perspectivas luminosas, Pitágoras terminava a história da divina Psiquê. A última palavra tinha expirado nos lábios do sábio, mas o sentido da incomunicável verdade permanecia suspenso na atmosfera imóvel da cripta. Cada um acreditava ter acabado o sonho das vidas para despertar na grande paz, no doce oceano da vida única e sem limites. As lâmpadas de nafta iluminavam tranquilamente a estátua de Perséfona, em pé, como ceifadora celeste, e faziam reviver sua história simbólica nas pinturas sagradas do santuário. Às vezes uma sacerdotisa entrava em êxtase sob o domínio da voz harmoniosa de Pitágoras, e parecia encarnar nas atitudes e na fisionomia radiante a inefável beleza de sua visão. E os discípulos, tomados de emoção religiosa, assistiam em silêncio. Mas logo o mestre, com um gesto lento e seguro, trazia de novo para a terra a profândida inspirada. Pouco a pouco, seus traços se descontraíam, ela tombava nos braços das companheiras e caía em profunda letargia, da qual despertava confusa, triste e como que esgotada pelo esforço despendido.

Então subiam todos na cripta para os jardins de Ceres, para a frescura da aurora que começava a branquear o mar, sob o céu estrelado.






QUARTO GRAU – EPIFANIA
O adepto. – A mulher iniciada. – O amor e o casamento.

Acabamos de atingir, com Pitágoras, o apogeu da iniciação antiga.

Desta altura, a Terra parece inundada de sombra como um astro agonizante. Dali descortinam-se as perspectivas siderais, desenrola-se, como um conjunto maravilhoso, a visão de cima, a epifania do Universo (9). Porém a finalidade desse ensinamento não era absorver o homem na contemplação ou no êxtase. O mestre levara seus discípulos a passear pelas regiões incomensuráveis do Cosmo, mergulhara-os nos abismos do invisível. Da assustadora viagem, os verdadeiros iniciados deviam voltar à terra melhores, mais fortes e mais preparados para as provas da vida.

(9). Epifania ou visão do alto; autópsia ou visão direta; teofania ou manifestação de Deus, são idéias correlatas e expressões diversas para marcar o estado de perfeição no qual o iniciado, tendo unido sua alma a Deus, contempla a verdade total.


À iniciação da inteligência devia suceder à da vontade, a mais difícil de todas. Pois trata-se agora de o discípulo deixar a verdade descer no mais profundo de seu ser, de pô-la em prática durante a vida.

Para atingir este ideal, era preciso, segundo Pitágoras, reunir três perfeições: realizar a verdade na inteligência, a virtude na alma, a pureza no corpo. Uma higiene sábia, uma continência moderada deviam manter a pureza corporal, necessária não como fim, mas como meio.

Todo o excesso corporal deixa um traço e uma nódoa no corpo astral, organismo vivo da alma, e por conseguinte, no espírito. Pois o corpo astral concorre para todos os atos do corpo material. É ele mesmo que os executa, porque sem ele o corpo material não passa de uma massa inerte. É preciso, portanto, que o corpo seja puro para que a alma o seja
também. É preciso, em seguida, que a alma, incessantemente iluminada pela inteligência, adquira a coragem, a abnegação, o devotamento e a fé, em uma palavra, a virtude, e da mesma faça uma segunda natureza que substitua a primeira. É preciso, finalmente, que o intelecto atinja a sabedoria pela ciência, de tal sorte que saiba distinguir em tudo o bem e o mal, e ver Deus tanto no menor dos seres como no conjunto dos mundos. A essa altura, o homem torna-se adepto e, se possui energia suficiente, entra na posse de faculdades e poderes novos. Os sentidos internos da alma se abrem, a vontade resplandece nos outros. Seu magnetismo corporal, penetrado dos eflúvios de sua alma astral, eletrizado por sua vontade, adquire um poder aparentemente miraculoso. Às vezes, cura doentes pela imposição das mãos ou somente por sua presença. Muitas vezes, penetra nos pensamentos dos homens apenas com o olhar. Algumas vezes, em estado de vigília, vê acontecimentos que ocorrem longe (10). Age à distância pela concentração do pensamento e da vontade sobre as pessoas que estão ligadas a ele por laços de simpatia pessoal, e lhes faz aparecer sua imagem à distância, como se seu corpo astral pudesse transportar-se para fora do corpo material. A aparição dos moribundos ou dos mortos aos amigos é exatamente o mesmo fenômeno. Só que a aparição que o moribundo ou a alma do morto produz geralmente, por um desejo inconsciente, na agonia ou na segunda morte, o adepto a produz em plena saúde e em plena consciência. Todavia, ele apenas o consegue durante o sono e, quase sempre, durante um sono letárgico.

(10). Citaremos dois fatos célebres deste gênero, absolutamente autênticos. O primeiro passa-se na Antigüidade e seu herói é o ilustre filósofo-mágico Apolônio de Tiana.

1º fato – Segunda visão de Apolônio de Tiana – “Enquanto esses acontecimentos (o assassinato do imperador Domiciano) passavam-se em Roma, Apolônio os via em Éfeso. Domiciano foi atacado por Clemente, ao meio-dia. No mesmo dia, no mesmo momento, Apolônio discursava nos jardins junto ao Xisto. De repente ele abaixou um pouco a voz, como se tivesse sido tomado de um pavor súbito. Continuou o discurso, mas sua linguagem não tinha a força de sempre, como acontece com alguém que fala pensando em outra coisa. Depois calou-se como se tivesse perdido o fio do discurso, olhou assustado para o chão, deu três ou quatro passos para frente e gritou: “Abate o tirano!” Dir-se-ia que ele via não a imagem do fato em um espelho, mas o fato em si mesmo, com toda a sua realidade. Os efesianos (Éfeso inteira assistia ao discurso de Apolônio) ficaram muito espantados. Apolônio deteve-se, como se procurasse ver o resultado de um acontecimento duvidoso. Finalmente, exclamou: “Coragem, cidadãos de Éfeso, o tirano foi morto hoje. Eu disse hoje? Por Minerva! Ele foi morto no mesmo instante em que me interrompi.” Os habitantes de Éfeso julgaram que Apolônio tivesse perdido a razão. Desejavam ardentemente que tivesse dito a verdade, mas temiam que algum perigo lhes resultasse desse discurso. . . porém logo os mensageiros vieram anunciar-lhes a boa nova e testemunhar em favor do conhecimento de Apolônio. O assassinato do tirano, o dia e a hora em que foi perpetrado, o autor, todos estes detalhes estavam perfeitamente de acordo com aqueles que os deuses lhes haviam mostrado no dia de seu discurso aos efesianos.” – Vida de Apolônio por Filostrato, traduzida por Chassang.

2º fato – Segunda visão de Swedenborg. – O segundo fato relaciona-se com o maior vidente dos tempos modernos. Pode-se discutir a realidade objetiva das visões de Swedenborg, mas não se pode duvidar de sua segunda visão, atestada por inúmeros fatos. A visão que Swedenborg teve, a trinta léguas de distância, do incêndio de Estocolmo, teve grande repercussão na segunda metade do século XVIII. O célebre filósofo alemão, Kant, mandou fazer uma investigação em Gothenburgo, na Suécia, cidade onde ocorreu o fato, e eis o que ele escreveu a uma de suas amigas: “O fato que segue parece-me ter a maior força demonstrativa e pôr fim a toda espécie de dúvida. Foi no ano de 1759. M. de Swedenborg, lá pelo fim do mês de setembro, num sábado, às quatro horas da tarde, voltando da Inglaterra, tomou a direção de Gothenburgo. M. William Castel convidou-o para sua casa, com um grupo de quinze pessoas. À tarde, às seis horas, M. de Swedenborg, que saíra, voltou ao salão, pálido e consternado, dizendo que naquele mesmo instante tinha grassado um incêndio em Estocolmo em Sudermaln e que o fogo se espalhava com violência na direção de sua casa... Disse que a casa de um dos amigos, cujo nome citou, já estava reduzida a cinzas, e que a sua própria estava em perigo. Às oito horas, depois de uma nova saída, disse com alegria: “Graças a Deus, o incêndio foi extinto na terceira casa antes da minha.” Nessa mesma noite, informaram disso o governador. No domingo pela manhã, Swedenborg foi chamado por este funcionário, que o interrogou a respeito. Swedenborg descreveu exatamente o incêndio, o começo, a duração e o fim. No mesmo dia, a novidade se espalhou por toda a cidade, que muito se comoveu, tanto mais porque o governador se ocupara do assunto e muitas pessoas se preocupavam com bens e amigos. Na tarde de segunda-feira chegou a Gothenburgo um estafeta que o comércio de Estocolmo havia despachado durante o incêndio. Nessas cartas, o incêndio era descrito exatamente da maneira como fora contado. O que se pode alegar contra a autenticidade deste acontecimento? O amigo que me escreveu examinou tudo isto, não somente em Estocolmo mas por cerca de dois meses em Gothenburgo, mesmo. Ele conhecia ali as famílias mais importantes e pôde se informar completamente na própria cidade, na qual vive ainda a maioria das testemunhas oculares, devido ao pouco tempo decorrido (9 anos), desde 1859.” – Carta à senhorita Charlotte de Knobloch, citada por Matter. Vie de Swedenborg.

Enfim, o adepto sente-se cercado e protegido por seres invisíveis, superiores e luminosos, que lhe emprestam sua força e o ajudam em sua missão. Raros são os adeptos, mais raros ainda aqueles que alcançam este poder. A Grécia só conheceu três: Orfeu, na aurora do helenismo; Pitágoras, em seu apogeu; Apolônio de Tiana, em seu declínio. Orfeu foi o grande inspirado e o grande iniciador da religião grega; Pitágoras, o organizador da ciência esotérica e da filosofia das escolas; Apolônio, o estóico moralizador e o mágico popular da decadência. Mas em todos os três, apesar dos graus e através das nuances, brilha o raio divino: o espírito apaixonado pela salvação das almas, a indomável energia revestida de mansidão e serenidade. Todavia, não vos aproximeis muito dessas grandes frontes calmas. Elas queimam em silêncio. Sente-se sob a fornalha uma vontade ardente, mas sempre contida.

Pitágoras representa para nós, portanto, um adepto de primeira ordem, com o espírito científico e a fórmula filosófica que mais se aproximam do espírito moderno. Mas ele não podia nem pretendia fazer de seus discípulos adeptos perfeitos. Uma grande época tem sempre um grande inspirador em sua origem. Seus discípulos e os alunos de seus discípulos formam a cadeia imantada e propagam seu pensamento pelo mundo. No quarto grau da iniciação, Pitágoras se contentava, pois, em ensinar a seus fiéis as aplicações de sua doutrina à vida. Porque a Epifania, a visão do alto, dava um conjunto de visões profundas e gerais
sobre as coisas terrestres.

A origem do bem e do mal permanece um mistério incompreensível para quem não percebeu a origem e o fim das coisas.

Uma moral que não considera os supremos destinos do homem só será utilitária e bastante imperfeita. Além do mais, a liberdade humana não existe de fato para aqueles que são sempre escravos de suas paixões, e não existe de direito para aqueles que não acreditam nem na alma nem em Deus, e para quem a vida é um relâmpago entre dois nadas. Os primeiros vivem na servidão da alma acorrentada às paixões; os segundos, na servidão da inteligência limitada ao mundo físico. Não acontece o mesmo com o homem religioso, nem com o verdadeiro filósofo, e menos ainda com o teósofo iniciado, que realiza a verdade na trindade de seu ser e na unidade de sua vontade. Para compreender a origem do bem e do mal, o iniciado contempla os três mundos com os olhos do espírito. Vê o mundo tenebroso da matéria e da animalidade, onde domina o inelutável Destino. Vê o mundo luminoso do Espírito, que para nós é o mundo invisível, a imensa hierarquia das almas libertadas, onde reina a lei divina, e que são a Providência em ato. Entre
os dois, ele vê numa penumbra a humanidade, que mergulha, pela base, no mundo natural e que toca, por seus pináculos, o mundo divino. Ela tem por gênio: A Liberdade. Porque, no momento em que o homem percebe a verdade e o erro, está livre para escolher: juntar-se à Providência, cumprindo a verdade, ou tombar sob a lei do destino, seguindo o erro. O ato da vontade unido ao ato intelectual é somente um ponto matemático, mas desse ponto brota o universo espiritual.

Todo espírito sente parcialmente pelo instinto o que o teósofo compreende totalmente pelo intelecto: que o Mal é aquilo que faz descer o homem para a fatalidade da matéria; que o Bem é aquilo que o faz subir à lei divina do Espírito. Seu verdadeiro destino é subir sempre, cada vez mais alto e por seu próprio esforço. Para isto, porém, é preciso que ele seja livre também para descer. O círculo da liberdade amplia-se até o infinitamente grande, à medida que se sobe; e diminui, até o infinitamente pequeno, à medida que se desce. Quanto mais o homem sobe, mais se torna livre, pois penetra mais profundamente na luz, e mais força adquire para o bem. Quanto mais desce, mais se torna escravo; pois cada queda no mal diminui a inteligência do verdadeiro e a capacidade do bem.

O Destino reina, portanto, sobre o passado; a Liberdade, sobre o futuro; e a Providência sobre os dois, ou seja, sobre o presente sempre existente, que se pode denominar Eternidade (11). Da ação combinada do Destino, da Liberdade e da Providência resultam os destinos inumeráveis, infernos e paraísos das almas. O mal, estando em desacordo com a lei divina, não é obra de Deus, mas do homem, e só tem uma existência relativa, aparente e transitória. O bem, estando de acordo com a lei divina, existe só real e eternamente. Nem os sacerdotes de Delfos e de Elêusis, nem os filósofos iniciados jamais quiseram revelar essas profundas idéias ao povo, que poderia compreendê-las erroneamente e abusar delas. Nos Mistérios, representava-se simbolicamente essa doutrina pelo esfacelamento de Dionísio. Porém um véu impenetrável ocultava aos profanos o que se chamava de os sofrimentos de Deus.

(11). Esta idéia ressalta logicamente do ternário humano e divino, da trindade do microcosmo e do macrocosmo, que expusemos nos capítulos precedentes. A correlação metafísica do Destino, da Liberdade e da Providência foi admiravelmente deduzida por Fabre d'Olivet, em seu comentário aos Vers dorés de Pythagore.

As maiores discussões religiosas e filosóficas rolam sobre a questão da origem do bem e do mal. Acabamos de ver que a doutrina esotérica possui-lhe a chave em seus arcanos.

Existe outra questão capital, de que depende o problema social e político; a da desigualdade das condições humanas. O espetáculo do mal e da dor tem em si alguma coisa de assustador. Pode-se acrescentar que sua distribuição, aparentemente arbitrária e injusta, é a origem de todos os ódios, de todas as revoltas, de todas as negações.

Ainda aqui, a doutrina profunda traz em nossas trevas terrestres sua luz soberana de paz e esperança. A diversidade das almas, das condições, dos destinos, pode-se justificar efetivamente apenas pela pluralidade das existências e pela doutrina da reencarnação. Se o homem nasce pela primeira vez nesta vida, como explicar os inúmeros males que parecem cair ao acaso sobre ele? Como admitir que há uma justiça eterna, uma vez que alguns nascem numa condição que arrasta fatalmente à miséria e à humilhação, enquanto que outros nascem afortunados e vivem felizes? Mas, se é verdade que vivemos outras vidas antes e que viveremos outras após a morte, se é verdade que através de todas essas existências reina a lei de recorrência e de repercussão – então as diferenças de alma, de condição, de destino, apenas serão efeitos das vidas anteriores e aplicações múltiplas dessa lei. As diferenças de condição provêm de um emprego desigual da liberdade nas vidas precedentes, e as diferenças intelectuais provêm de que os homens que atravessam a terra em um século pertencem a graus de evolução extremamente diversos. Estes graus se escalonam. Desde a semi-animalidade das pobres raças em regressão até os estados angélicos dos santos e até a realeza divina do gênio. Na realidade, a terra se assemelha a um navio, e nós todos que a habitamos, a viajantes que vêm de países longínquos e se dispersam por etapas em todos os pontos do horizonte. A doutrina da reencarnação dá uma razão
de ser, segundo a justiça e a lógica eterna, aos males mais assustadores e às felicidades mais almejadas. O idiota nos parecerá compreensível se
raciocinarmos que seu embrutecimento, do qual tem uma semiconsciência e com a qual sofre, é a punição de um emprego criminoso da inteligência em outra vida. Todas as nuances de sofrimentos físicos ou morais, de felicidade e de infelicidade, em suas inúmeras variedades, aparecerão como eflorescências naturais e sabiamente graduais dos instintos e das ações, das faltas e das virtudes
de um longo passado, pois a alma conserva em suas profundezas ocultas tudo o que ela acumula em suas diversas existências. De acordo com a hora e a influência, as camadas antigas reaparecem e desaparecem. E o destino, isto é, os espíritos que o dirigem, proporcionam o gênero de reencarnação, quanto a seu lugar e sua qualidade. Lísis exprime esta verdade, ocultando-a sob um véu, em seus versos dourados: Verás que os males que devoram os homens são o fruto de sua escolha; e que esses infelizes procuram longe de si os bens cuja fonte carregam.

Longe de enfraquecer o sentimento de fraternidade e de solidariedade humana, essa doutrina só pode fortificá-lo. Devemos a todos ajuda, simpatia e caridade, pois somos todos da mesma raça, embora em graus diversos. Todo o sofrimento é sagrado, porque a dor é o cadinho das almas. Toda a simpatia é divina, porque ela nos faz sentir, como que por um eflúvio magnético, a cadeia invisível que liga todos os mundos. A virtude da dor é a razão do gênio. Sim, sábios e santos, profetas e divinos criadores resplandecem com uma beleza mais comovente para aqueles que sabem que também eles resultam da evolução universal. Esta força que nos espanta, quantas vidas, quantas
vitórias não foram necessárias para conquistá-la? Esta luz inata do gênio, de quais céus já atravessados ela lhe vem? Não o sabemos. Mas estas vidas existiram e esses céus existem. Não está, pois, enganada a consciência dos povos. Os profetas não mentiram quando chamaram os
homens de filhos de Deus, enviados do céu profundo. Porque sua missão foi requerida pela eterna Verdade, legiões invisíveis os protegem e o Verbo vivo fala neles!

Há entre os homens uma diversidade que provém da essência primitiva dos indivíduos. Há uma outra, acabamos de dizê-lo, que provém do grau de evolução espiritual que eles atingiram. De acordo com este último ponto de vista, os homens podem situar-se em quatro classes, que compreendem todas as subdivisões e todas as nuances.

1º. Na grande maioria dos homens, a vontade age sobretudo no corpo. Podemos chamá-los de instintivos. São próprios não somente para os trabalhos corporais, mas ainda para o exercício e o desenvolvimento de sua inteligência no mundo físico; consequentemente, para o comércio e a indústria;

2º. No segundo grau do desenvolvimento humano, a vontade e portanto a consciência, reside na alma, ou seja, na sensibilidade acionada pela inteligência, que constitui o entendimento. São os anímicos e os passionais. Segundo seu temperamento, estão preparados para se tornarem homens de guerra, artistas ou poetas. Na grande maioria, os homens de letras e os sábios são desta espécie: vivem nas idéias relativas, modificadas pelas paixões ou limitadas por um horizonte pequeno, sem se elevarem até à Idéia pura e à Universalidade;

3º Numa terceira classe de homens, muito mais raros, a vontade age soberanamente no intelecto puro; desembaraça a inteligência da tirania das paixões e dos limites da matéria, o que dá a todas as suas concepções um caráter de universalidade. São os intelectuais. Esses homens constituem os heróis mártires da pátria, os poetas de primeira ordem; finalmente, e sobretudo, os verdadeiros filósofos e os sábios, aqueles que, segundo Pitágoras e Platão, deveriam governar a humanidade. Nesses homens, a paixão não está extinta, porque sem ela nada se faz; ela constitui o fogo e a eletricidade no mundo moral. Neles, porém, as paixões tornam-se servas da inteligência, enquanto que na categoria anterior a inteligência é, na maioria das vezes, serva das paixões;

4º O mais alto ideal humano é realizado por uma quarta classe de homens, que, ao império da inteligência sobre a alma e sobre o instinto,
acrescentaram o da vontade sobre todo o seu ser. Pelo domínio e posse de todas as suas faculdades, eles exercem o grande poder. Realizaram a unidade na trindade humana. Graças a esta concentração maravilhosa, que reúne todas as potencialidades da vida, sua vontade, projetando-se nos outros, adquire uma força quase ilimitada, uma magia radiante e criadora. Na história, estes homens receberam nomes diversos. São os homens primordiais, os adeptos, os grandes iniciados, gênios sublimes que transformam a humanidade. São de tal maneira raros que se pode contá-los na história. A Providência semeia-os de tempos em tempos, com longos intervalos, como os astros no céu (12).

(12). Essa classe de homens corresponde aos quatro graus da iniciação pitagórica, e constitui a base de todas as iniciações, até a dos franco-maçons primitivos, que possuíam algumas migalhas da doutrina esotérica. – Ver Fabre d'Olivet, Les Vers dorés de Pythagore.

É evidente que esta última categoria escapa a toda regra, a toda classificação. Mas uma constituição da sociedade humana que não considere as três primeiras categorias, que não proporcione a cada uma delas sua função normal e os meios necessários para se desenvolver, é somente exterior e não orgânica. Numa época primitiva, que remonta provavelmente aos tempos védicos, os brâmanes da Índia fundaram a divisão da sociedade em castas com base no princípio ternário. Mas, com o tempo, essa divisão tão justa e fecunda transformou-se em privilégio sacerdotal e aristocrático. O princípio da vocação e da iniciação deu lugar ao da hereditariedade. As castas fechadas acabaram por petrificar-se, seguindo-se irremediavelmente a decadência da Índia.

O Egito, que conservou, sob o domínio de todos os faraós, a constituição ternária com as castas móveis e abertas, o princípio da iniciação aplicada ao sacerdócio, o princípio do exame em todas as funções civis e militares, viveu cinco a seis mil anos sem mudar de constituição. Quanto à Grécia, seu temperamento instável fê-la passar rapidamente da aristocracia para a democracia e desta para a tirania.

Ela girou neste círculo vicioso como um doente que passa da febre à  letargia e volta à febre. Talvez tivesse necessidade desta excitação para produzir sua obra inigualável, a tradução da sabedoria profunda mas obscura do Oriente para uma linguagem clara e universal; a criação do Belo pela Arte, e a fundação da ciência aberta e racional sucedendo à iniciação secreta e intuitiva. Ela deveu ao princípio da iniciação sua organização religiosa e suas mais altas inspirações. Social e politicamente falando, pode-se dizer que viveu sempre no provisório e no excessivo. Em sua qualidade de adepto, Pitágoras tinha compreendido, do cume da iniciação, os princípios eternos que regem a sociedade e prosseguia, no plano de uma grande reforma, segundo essas verdades. Veremos dentro em pouco como ele e sua escola naufragaram nas tempestades da democracia.

Dos puros pináculos da doutrina, a vida dos mundos se desenrola de acordo com o ritmo da Eternidade. Esplêndida Epifania! Mas aos raios mágicos do firmamento desvendado, a terra, a humanidade, a vida abrem-nos também suas profundezas secretas. É preciso encontrar o infinitamente grande no infinitamente pequeno, para sentir a presença de Deus. Isto é o que sentiam os discípulos de Pitágoras, quando o mestre lhes mostrava, para coroar seu ensinamento, como a eterna Verdade se manifesta na união do Homem e da Mulher no casamento. A
beleza dos números sagrados que eles tinham ouvido e contemplado no Infinito, iam encontrá-la no próprio coração da vida, e Deus emergiria para eles do grande mistério dos Sexos e do Amor.

A antiguidade compreendera uma verdade essencial, que as idades seguintes menosprezaram. A mulher, para bem cumprir suas funções de esposa e de mãe, tem necessidade de uma orientação, de uma iniciação especial. Daí a iniciação puramente feminina, isto é, inteiramente reservada às mulheres. Ela existia na Índia, nos tempos védicos, em que a mulher era sacerdotisa no altar doméstico. No Egito, ela remonta aos mistérios de Ísis. Orfeu organizou-a na Grécia. Até à extinção do paganismo, vemo-la florescer nos mistérios dionisíacos, assim como nos templos de Juno, Diana, Minerva e Ceres. Esta iniciação consistia em ritos simbólicos, cerimônias, festas noturnas, e depois em um ensinamento especial, ministrado por sacerdotisas mais velhas ou pelo grande sacerdote, e que tratava das coisas mais íntimas da vida conjugal. Davam-se conselhos e regras sobre as relações sexuais, as épocas do ano e do mês favoráveis às concepções felizes. Dava-se a maior importância à higiene física e moral da mulher durante a gravidez, para que a obra sagrada, a criação do filho, se cumprisse segundo as leis divinas. Em resumo, ensinava-se a ciência da vida conjugal e a arte da maternidade, que se estendia até muito além do nascimento. Até a idade de sete anos, os filhos ficavam no gineceu, sob a direção exclusiva da mãe, e onde o marido não penetrava. A sábia antiguidade considerava a criança uma planta delicada, que tem necessidade, para não se atrofiar, da quente atmosfera maternal. O pai a deformaria; eram necessários os beijos e carícias da mãe para desabrochar. Era necessário o amor forte, envolvente da mulher, que defendesse dos perigos externos esta alma que a vida assustava. Por cumprir em plena consciência estas altas funções, consideradas divinas pela Antiguidade, que a mulher era verdadeiramente a sacerdotisa da família, a guardiã do fogo sagrado da vida, a Vesta do lar. A iniciação feminina pode, portanto, ser considerada a verdadeira razão da beleza da raça, da força das gerações, da duração das famílias na Antiguidade greco-romana (13).

(13). Montesquieu e Michelet são quase que os únicos autores a notarem a virtude das esposas gregas. Nenhum deles mostrou a causa que indico aqui.


Estabelecendo uma ala para as mulheres em seu Instituto, Pitágoras não fez mais que purificar e aprofundar o que já existia antes dele. As mulheres iniciadas por ele recebiam, com os ritos e os preceitos, os princípios supremos de sua função. Ele dava assim, àquelas que eram dignas disso, a consciência de seu papel. Revelava-lhes a transfiguração do amor no casamento perfeito, que é a penetração de duas almas no próprio centro da vida e da verdade. O homem, em sua força, não é o representante do princípio e do espírito criador? A mulher, em todo o seu poder, não personifica a natureza na sua força plástica, em suas realizações maravilhosas, terrestres e divinas? Pois bem, quando esses dois seres chegarem a se penetrar completamente, corpo, alma, espírito, eles formarão juntos um resumo do Universo. Mas para crer em Deus a mulher tem necessidade de vê-lo viver no homem; e para isto é preciso que o homem seja iniciado. Só ele é capaz, por sua inteligência profunda da vida, por sua vontade criadora, de fecundar a alma feminina, de transformá-la pelo ideal divino. E este ideal, a mulher amada devolve-lhe multiplicado em seus pensamentos vibrantes, em suas sensações sutis, em suas profundas adivinhações. Ela envia-lhe sua imagem transfigurada pelo entusiasmo, torna-se seu ideal, pois o realiza pelo poder de seu amor em sua própria alma. Por meio dela, ele se torna vivo e visível, faz-se carne e sangue. Se o homem cria pelo desejo e pela vontade, a mulher, física e espiritualmente, gera por amor.

Em seu papel de amante, esposa, mãe ou inspirada, ela não é menor, e é mais divina ainda, do que o homem. Pois amar é esquecer. A mulher que se esquece e que se entrega em seu amor é sempre sublime.

Ela encontra nesse aniquilamento seu renascimento celeste, sua coroa de luz e irradiação imortal de seu ser.

O amor reina como senhor na literatura moderna, há dois séculos.

Não é o amor puramente sensual que se ilumina à beleza do corpo, como nos poetas antigos. Não é o culto insípido de um ideal abstrato e convencional, como na Idade Média. Não! É o amor ao mesmo tempo sensual e psíquico que, deixado em total liberdade e em plena fantasia individual, avança. Mais frequentemente os dois sexos se guerreiam no amor. Revoltas da mulher contra o egoísmo e a brutalidade do homem; desprezo do homem pela falsidade e a vaidade da mulher; gritos da carne, cóleras impotentes das vítimas da volúpia, dos escravos do deboche. No meio disto, paixões profundas, atrações terríveis, tanto mais poderosas quanto mais são entravadas pelas convenções mundanas e instituições sociais. Daí aqueles amores plenos de tormenta, de destruições morais, de catástrofes trágicas, sobre os quais se desenrolam, quase que exclusivamente, o romance e o drama modernos.

Dir-se-ia que o homem, cansado, não encontrando Deus nem na ciência nem na religião, procura-o perdidamente na mulher. E faz muito bem.

Entretanto, é só através da iniciação das grandes verdades que Ele o encontra n’Ela e Ela n’Ele. Entre estas almas que se ignoram reciprocamente e que se ignoram a si mesmas, que às vezes se deixam, amaldiçoando-se, existe uma sede imensa de se penetrarem e de encontrar nesta fusão a felicidade impossível. Apesar das aberrações e dos excessos que disso resultam, essa procura desesperada é necessária.

Ela sai de um divino inconsciente e será um ponto vital para a reedificação do futuro. Porque quando o homem e a mulher se encontrarem a si mesmos e um ao outro pelo amor profundo e pela iniciação, sua fusão será a força radiante e criadora por excelência.

O amor psíquico, o amor-paixão da alma somente há pouco tempo entrou na literatura e, por esta, na consciência universal. Mas tem sua fonte na iniciação antiga. Se a literatura grega mal o deixa transparecer,
era por ser uma exceção raríssima. Isso também decorre do segredo profundo dos mistérios. Todavia, a tradição religiosa e filosófica conservou os traços da mulher iniciada. Por trás da poesia e da filosofia oficiais, algumas figuras de mulheres aparecem meio veladas, mas luminosas. Já conhecemos a pitonisa Teocléia, que inspirou Pitágoras.

Mais tarde virá a sacerdotisa Corina, rival muitas vezes feliz de Píndaro, o qual foi o mais iniciado dos líricos gregos. Finalmente, a misteriosa Diotima aparece no banquete de Platão, para fazer a suprema revelação sobre o Amor. Ao lado dessas missões excepcionais, a mulher grega exerceu seu verdadeiro sacerdócio no lar e no gineceu. Sua criação própria foram justamente os heróis, os artistas, os poetas, dos quais admiramos os cantos, os mármores e as ações sublimes. Foi ela que os concebeu no mistério do amor, que os moldou em seu seio com o desejo da beleza, que os fez desabrochar sob a proteção materna.

Acrescentemos que para a mulher e o homem verdadeiramente iniciados, a criação do filho tem um sentido infinitamente mais belo, um
alcance maior do que para nós. Quando o pai e a mãe sabem que a alma da criança preexiste a seu nascimento terrestre, a concepção torna-se um ato sagrado, o apelo de uma alma à encarnação.

Entre a alma encarnada e a mãe, existe quase sempre um profundo grau de semelhança. Assim como as mulheres más e perversas atraem os espíritos demoníacos, assim também as mães ternas atraem os espíritos divinos. Esta alma invisível que se espera, que está para vir e que vem tão misteriosamente e tão seguramente, não será ela algo divino? Seu nascimento, seu aprisionamento na carne será doloroso; pois se entre ela e seu céu abandonado um véu grosseiro se interpõe, e se ela deixa de lembrar, ah! ela não poderia sofrer menos! Por isso, santa e divina é a tarefa da mãe, que deve criar para ela uma nova morada, dulcificar-lhe a prisão e facilitar-lhe a prova. Assim, o ensinamento de Pitágoras, que começara nas profundezas do Absoluto pela trindade divina, terminava no centro da vida pela trindade humana.

No Pai, na Mãe e no Filho o iniciado sabia reconhecer agora o Espírito, a Alma e o Coração do Universo vivo. Esta última iniciação constituía para ele o fundamento da obra social concebida à altura e em toda a beleza do ideal, edifício para o qual cada iniciado devia trazer sua pedra.








V

A FAMÍLIA DE PITÁGORAS. A ESCOLA E SEUS DESTINOS

Entre as mulheres que seguiam o ensinamento do mestre, havia uma jovem de grande beleza. Seu pai, natural de Crotona, chamava-se Brontinos; ela, Teano. Pitágoras aproximava-se então dos sessenta anos.

Mas o grande domínio sobre as paixões e uma vida pura, consagrada inteiramente à sua missão, haviam conservado intacta sua força viril. A juventude da alma, aquela chama imortal que o grande iniciado haure em sua vida espiritual e alimenta mediante as forças ocultas da natureza, brilhava nele e subjugava a todos os que o cercavam. O mago grego não estava no declínio, mas no apogeu de sua potência. Teano foi atraída para Pitágoras pela irradiação quase sobrenatural que emanava de sua pessoa. Grave, reservada, ela procurara junto ao mestre a explicação dos mistérios, que amava sem compreender. Mas, quando à luz da verdade, ao doce calor que a envolvia pouco a pouco, ela sentiu sua alma desabrochar do fundo de si mesma como a rosa mística de mil pétalas, quando ela sentiu que essa eclosão vinha dele e de sua palavra,
apaixonou-se silenciosamente pelo mestre, com um entusiasmo sem limites e com um amor ardente.

Pitágoras não tinha procurado atraí-la. Sua afeição pertencia a todos os discípulos. Sonhava apenas com sua escola, com a Grécia e com o futuro do mundo. Como muitos dos grandes adeptos, tinha renunciado à mulher para entregar-se todo à sua obra. A magia de sua vontade, a posse espiritual de tantas almas que ele formara e que a ele permaneciam ligadas como a um pai adorado, o incenso místico de todos esses amores inexprimidos que subiam até ele, e esse perfume delicado de simpatia humana que unia os irmãos pitagóricos – tudo isto
substituía para ele a volúpia, a felicidade, o amor.

Um dia, meditava sozinho sobre o futuro de sua Escola, na cripta de Proserpina. Viu então aproximar-se séria e resoluta, a bela virgem, com quem jamais falara em particular. Ela ajoelhou-se diante dele e abaixou a cabeça, suplicando ao mestre – a ele que tudo podia – que a livrasse de um amor impossível e infeliz, que consumia seu corpo e devorava sua alma. Pitágoras quis saber o nome daquele a quem ela amava. Após longas hesitações, Teano confessou que era ele, mas que, preparada para tudo, se submeteria à sua vontade. Pitágoras nada respondeu. Encorajada por esse silêncio, ela ergueu a cabeça e lançou-lhe um olhar suplicante, de onde escapavam a seiva de uma vida e o perfume de uma alma ofertada em holocausto ao mestre.

O sábio ficou abalado. Seus sentidos, ele sabia vencer, sua imaginação, ele lançara por terra. Mas, o clarão daquela alma penetrara a sua. Naquela virgem amadurecida pela paixão, transfigurada pelo pensamento de um devotamento absoluto, ele tinha encontrado sua companheira e entrevisto uma realização mais completa de sua obra.

Pitágoras fez a jovem levantar-se com um gesto comovido, e Teano pôde ver nos olhos do mestre que seus destinos estavam para sempre unidos.

Por seu casamento com Teano, Pitágoras apôs o selo da realização à sua obra. A associação, a fusão das duas vidas foi completa. Um dia perguntaram à esposa do mestre quanto tempo é necessário a uma mulher para tornar-se pura após ter tido contato com um homem. Ela respondeu: “Se for com seu marido, ela já está na mesma hora; se for com um outro, não ficará jamais”. Muitas mulheres argumentarão, sorrindo, que para dizer estas palavras é preciso ser mulher de Pitágoras e amá-lo como Teano.

Elas têm razão. Não é o casamento que santifica o amor. É o amor que justifica o casamento. Teano penetrou tão completamente no pensamento de seu marido que, após sua morte, ela tornou-se o centro da ordem pitagórica, e é citada por um autor grego como autorizada na doutrina dos Números. Ela deu a Pitágoras dois filhos: Arimneste e Telauges, e uma filha: Damo. Telauges tornou-se mais tarde o mestre de Empédocles e transmitiu-lhe os segredos da doutrina. A família de Pitágoras foi para a ordem um verdadeiro modelo.

Chamaram sua casa de o templo de Ceres e seu pátio de o templo das Musas. Nas festas domésticas e religiosas, a mãe dirigia o coro das mulheres e Damo, o coro das jovens. Damo foi, em todos os pontos, digna de seus pais. Pitágoras havia-lhe confiado alguns escritos, sob a proibição expressa de mostrá-los a quem quer que fosse fora da família.

Depois da dispersão dos pitagóricos, Damo ficou em extrema pobreza.

Ofereceram-lhe então uma elevada quantia pelo precioso manuscrito.

Porém, fiel à vontade do pai, ela sempre recusou entregá-lo.

Pitágoras viveu trinta anos em Crotona. Em vinte anos este homem admirável adquiriu um poder tal que aqueles que o chamavam de semideus não exageravam. Seu poder era um prodígio. Nenhum outro filósofo obteve algo semelhante. Sua influência não se fazia sentir somente na escola de Crotona e em suas ramificações nas outras cidades das costas italianas, mas também na política de todos esses pequenos estados.

Pitágoras era um reformador em toda a acepção da palavra.

Crotona, a colônia aqueana, tinha uma constituição aristocrática. O conselho dos mil, composto das grandes famílias, exercia o poder Legislativo e supervisionava o poder Executivo. As assembleias populares existiam, mas com poderes restritos. Pitágoras, que desejava para o Estado ordem e harmonia, não gostava da opressão oligárquica nem do caos da demagogia. Aceitando a constituição dórica, ele procurou simplesmente introduzir nela uma nova organização. A idéia era ousada: criar, acima do poder político, um poder científico, com voz deliberativa e consultiva nas questões vitais, tornando-se a chave do poder, o regulador supremo do Estado. Acima do conselho dos mil, ele organizou o conselho dos trezentos, escolhidos pelo primeiro mas recrutados só entre os iniciados. Eram agora em número suficiente para
a tarefa. Porfírio conta que dois mil cidadãos de Crotona renunciaram à vida habitual e reuniram-se para viver em comunidade, com as mulheres e os filhos, depois de terem entregue seu patrimônio ao grupo.

Pitágoras queria pois à frente do Estado um governo científico menos misterioso, mas também tão elevado quanto o sacerdócio egípcio. O que ele realizou por um momento passou a ser o sonho de todos os iniciados que se ocuparam de política: introduzir o princípio da iniciação e do exame do governo do Estado, e reconciliar, nesta síntese superior, o princípio eletivo ou democrático com um governo constituído pela seleção dos inteligentes e virtuosos. O conselho dos trezentos formou, então, uma espécie de ordem política, científica e religiosa, da qual Pitágoras era o chefe reconhecido. O indivíduo alistava-se nele mediante um juramento solene e terrível de sigilo absoluto, como se fazia nos Mistérios. Essas sociedades ou hetairias estenderam-se de Crotona, onde se achava a sociedade-mãe, até quase todas as cidades da Magna-Grécia, exercendo uma poderosa ação política. A ordem pitágorica tendia também a tornar-se a cabeça do Estado em toda a Itália meridional. Tinha ramificações em Tarento, Heracléia, Metaponto, Regium, Himero, Catânia, Agrigento, Síbaris e, segundo Aristóxene, até entre os etruscos. Quanto à influência de Pitágoras no governo destas grandes e ricas cidades, não se poderia imaginar nada de mais elevado, liberal e pacífico. Em toda a parte onde aparecia, ele restabelecia a ordem, a justiça, a concórdia. Chamado para junto de um tirano da Sicília, conseguiu, com sua eloquência, que ele se decidisse a renunciar às riquezas mal adquiridas e abdicasse do poder usurpado. Quanto às cidades, ele as tornava livres e independentes, depois de terem estado subjugadas umas às outras. Tão benéfica era sua ação que, quando ele chegava nas cidades, diziam: “Não é para ensinar, mas para curar”.

A influência soberana de um grande espírito e de um grande caráter, essa magia de alma e de inteligência excita invejas tanto mais terríveis, ódios tanto mais violentos, quanto mais ela for inatacável. O império de Pitágoras durava já um quarto de século. E o adepto infatigável atingia a idade dos noventa anos, quando veio a reação. A fagulha partiu de Síbaris, a rival de Crotona. Houve lá um levante popular e o partido aristocrático foi vencido. Quinhentos exilados pediram asilo em Crotona mas os sibaritas exigiram sua extradição.

Temendo a cólera de uma cidade inimiga, os magistrados de Crotona iam atender àquela exigência, quando Pitágoras interveio. A suas instâncias, recusaram a entregar aqueles infelizes suplicantes aos adversários implacáveis. Diante desta recusa, Síbaris declarou guerra a Crotona. Mas a armada de Crotona, comandada por um discípulo de Pitágoras, o célebre atleta Mílon, derrotou completamente os sibaritas.

Seguiu-se o desastre de Síbaris, A cidade foi tomada, saqueada, completamente destruída e transformada em deserto.

É impossível admitir que Pitágoras aprovasse semelhantes represálias. Elas violentam seus princípios e de todos os iniciados.

Contudo, nem ele nem Mílon puderam refrear as paixões desencadeadas de um exército vitorioso, atiçadas por antigas invejas e superexcitadas por um ataque injusto.

Toda vingança, seja de indivíduos, seja de povos, provoca um choque em resposta às paixões desencadeadas. A Nêmesis desta foi terrível. As consequências recaíram sobre Pitágoras, e toda a sua ordem.

Após a tomada de Síbaris, o povo pediu a divisão das terras. Não contente de tê-la obtido, o partido democrático propôs na constituição uma mudança que retirava do Conselho dos Mil seus privilégios e suprimia o Conselho dos Trezentos, só admitindo uma única autoridade: o sufrágio universal. Naturalmente os pitagóricos que faziam parte do Conselho dos Mil opuseram-se a uma reforma contrária a seus princípios e que solapava pela base a paciente obra do mestre.

Os pitagóricos já eram objeto daquele ódio surdo que o mistério e a superioridade sempre excitam na multidão. Sua atitude política sublevou contra eles os furores da demagogia, e um ódio pessoal contra o mestre causou a explosão.

Um certo Cílon tinha-se candidatado outrora à Escola. Pitágoras, bastante severo na admissão dos discípulos, recusou-o por causa de seu caráter violento e voluntarioso. O candidato recusado tornou-se um
adversário rancoroso. Quando a opinião pública começou a voltar-se contra Pitágoras, aquele organizou um grupo de oposição aos pitagóricos, uma grande sociedade popular. Conseguiu atrair os principais líderes do povo e preparou nas assembléias uma revolução que começaria pela expulsão dos pitagóricos. Perante uma multidão agitada, Cílon sobe à tribuna popular e lê trechos extraídos do livro secreto de Pitágoras, intitulado: A Palavra Sagrada (hiéros logos). Os textos foram desfigurados e deturpados. Alguns oradores tentam defender os irmãos do silêncio, que respeitam até os animais.

Respondem-lhes com gargalhadas. Cílon sobe e torna a subir à tribuna, procurando demonstrar que o catecismo religioso dos pitagóricos atenta
contra a liberdade.

Dizer isto é pouco, acrescenta o tribuno. Quem é esse mestre, esse pretenso semideus, ao qual se obedece cegamente e basta que dê uma ordem para que todos os seus irmãos gritem: ‘O mestre disse!’ Não é ele o tirano de Crotona e o pior dos tiranos, um tirano oculto? De que é feita esta amizade indissolúvel que une todos os membros das hetairias pitagóricas, senão de desdém e de desprezo pelo povo? Eles repetem sempre as palavras de Homero, ou seja, que o príncipe deve ser o pastor de seu povo. Para eles, então, o povo não passa de um vil rebanho. Sim, a própria existência da ordem é uma conspiração permanente contra os direitos populares. Enquanto ela não for destruída, não haverá liberdade em Crotona!”

Um dos membros da assembléia popular, animado por um sentimento de lealdade, gritou: “Que se permita, pelo menos, a Pitágoras e aos pitagóricos que se justifiquem perante nossa tribuna, antes de condená-los”. Mas Cílon respondeu com altivez: “Esses pitagóricos não vos roubaram o direito de julgar e decidir os negócios públicos? Com que direito eles solicitariam hoje serem ouvidos? Eles não vos consultaram quando vos despojaram do direito de exercer a justiça! Pois bem, chegou a vossa vez de atingi-los sem ouvi-los!”

Retumbaram aplausos em resposta a estas saídas veementes; os espíritos se exaltavam cada vez mais.

Uma tarde, quando os quarenta principais membros da ordem estavam reunidos na casa de Mílon, o tribuno sublevou seus bandos.

Cercaram a casa. Os pitagóricos, e o mestre entre eles, barricaram as portas. A multidão furiosa ateou fogo ao edifício. Trinta e oito pitagóricos, os primeiros discípulos do mestre, a nata da ordem, e o próprio Pitágoras pereceram; alguns nas chamas do incêndio, outros mortos pelo povo. Arquipo e Lísis foram os únicos que escaparam ao massacre (1)

(1). Esta é a versão de Diógenes de Laércio sobre a morte de Pitágoras.

Segundo Dicearco, citado por Porfírio, o mestre teria escapado ao massacre com Arquipo e Lísis. Mas teria caminhado de cidade em cidade, até Metaponto, onde se deixou morrer de fome no templo das Musas. Os habitantes de Metaponto pretendiam, ao contrário, que o sábio, acolhido por eles, tinha morrido pacificamente em sua cidade. Mostraram a Cícero sua casa, sua cadeira e seu túmulo. É de se notar que, muito tempo depois da morte do mestre, as cidades que mais perseguiram Pitágoras, por ocasião da reviravolta democrática, reclamaram a honra de tê-lo abrigado e salvado. As cidades do golfo de Tarento disputavam as cinzas do filósofo com a mesma obstinação com que as cidades da Jônia disputavam a honra de serem a cidade natal de Homero. Estes fatos são discutidos no minucioso livro de M. Chaignet: Pythagore et Ia philosophie pythagoricienne.

Assim morreu aquele grande sábio, aquele homem divino, que tentara aplicar sua sabedoria ao governo dos homens. O assassinato dos pitagóricos foi o sinal para uma revolução democrática em Crotona e no golfo de Tarento. As cidades da Itália expulsaram os infelizes discípulos do mestre. A ordem foi dispersa, mas seus remanescentes espalharam-se pela Sicília e pela Grécia, semeando por toda parte a palavra do mestre.

Lísis tornou-se o mestre de Epaminondas. Depois de novas revoluções, os pitagóricos puderam voltar à Itália, sob a condição de não mais constituírem um corpo político. Uma comovente fraternidade nunca deixou de uni-los; consideravam-se uma mesma e única família. Certo dia, um deles, na miséria e doente, foi recolhido por um estalajadeiro.

Antes de morrer, desenhou na porta da casa alguns sinais misteriosos e
disse ao hospedeiro: “Fica tranquilo. Um de meus irmãos pagará minha
dívida”. Um ano depois, passando pelo mesmo albergue, um estrangeiro
viu os sinais e disse ao hospedeiro: “Eu sou pitagórico. Um de meus irmãos morreu aqui. Dize-me o quanto devo por ele”. A ordem sobreviveu durante duzentos e cinquenta anos. Quanto às idéias, às tradições do mestre, elas vivem até nossos dias.

A influência regeneradora de Pitágoras sobre a Grécia foi imensa, exercendo-se misteriosa mas seguramente, em todos os templos por onde ele passara. Vimo-lo em Delfos dar nova força à ciência divinatória, reafirmar a autoridade dos sacerdotes e formar uma pitonisa-modelo. Graças a essa reforma interior que despertou o entusiasmo no próprio coração dos santuários e na alma dos iniciados, Delfos tornou-se mais do que nunca o centro moral da Grécia. Isso se comprovou durante as guerras médicas.

Trinta anos apenas tinham decorrido desde a morte de Pitágoras quando o ciclone da Ásia, predito pelo sábio de Samos, veio estourar sobre as costas da Hélade. Nessa luta épica da Europa contra a Ásia bárbara, a Grécia, que representa a liberdade e a civilização, tem à sua retaguarda a ciência e o gênio de Apolo. É ele que, com seu sopro patriótico e religioso, agita e faz calar a rivalidade nascente entre Esparta e Atenas. É ele que inspira os Milcíades e os Temístocles. Em Maratona, o entusiasmo é tal que os atenienses acreditam ver dois guerreiros, claros como a luz, combater em suas fileiras. Uns reconheceram neles Teseu e Equetos; outros, Castor e Pólux. Quando a invasão de Xerxes, dez vezes mais formidável do que a de Dario, avança pelas Termópilas e submerge a Hélade, é a Pítia que, do alto de seu tripé, indica a salvação para os enviados de Atenas e ajuda Temístocles a vencer a batalha de Salamina. As páginas de Heródoto tremem com sua palavra ofegante: “Abandonai as residências e as altas colinas da cidade construída em círculo..., o fogo e o temível Marte, montado em um carro sírio, arruinarão vossas torres... os templos vacilam, de seus muros goteja um frio suor, de seu topo corre um sangue negro... Devereis sair de meu santuário. Um bosque vos servirá de muralha e de inexpugnável proteção. Fugi! Voltai as costas aos infantes e aos cavaleiros inumeráveis! Oh! divina Salamina! Serás funesta aos filhos da mulher!”(2)

(2). Na linguagem dos templos, o termo filhos da mulher designava o grau inferior da iniciação. A mulher significava a natureza. Acima havia os filhos do homem ou iniciados no Espírito e na Alma, os filhos dos Deuses ou iniciados nas ciências cosmogônicas e os filhos de Deus ou iniciados da ciência suprema. A Pítia chama os persas de filhos da mulher, designando-os pelo caráter de sua religião. Tomadas ao pé da letra suas palavras não teriam sentido.

No texto de Ésquilo, a batalha começa por um grito que se assemelha ao peã, o hino de Apoio: “Logo o dia, com os corcéis brancos, espalhou sobre o mundo sua resplandecente luz. Nesse instante, um clamor imenso, modulado como um cântico sagrado, eleva-se nas fileiras dos gregos. Os ecos da ilha respondem com mil vozes vibrantes”. É de se admirar, portanto, que, inebriados pelo vinho da vitória, os helenos, na batalha de Micália, em face da Ásia vencida, tenham escolhido como brado de reunir as palavras: Hebe, a Eterna Juventude? Sim, o sopro de Apoio atravessa essas extraordinárias guerras dos medas. O entusiasmo religioso, que produz milagres domina os vivos e os mortos, ilumina os troféus e doura os túmulos. Todos os templos foram saqueados, mas o de Delfos ficou de pé. A armada persa aproximava-se para espoliar a cidade santa. Todos tremiam. Porém o Deus solar disse pela voz do pontífice: “Eu mesmo me defenderei!”

Por ordem do templo, a cidade é evacuada. Os habitantes se refugiam nas grutas do Parnaso e só os sacerdotes permanecem à entrada do santuário, com a guarda sagrada. A armada persa entra na cidade silenciosa como um túmulo. Somente as estátuas olham-na passar. Uma nuvem negra acumula-se no fundo do precipício. O trovão ribomba e o raio cai sobre os invasores. Duas enormes rochas rolam do
cume do Parnaso e esmagam grande número de persas. Ao mesmo tempo, clamores eclodem do templo de Minerva, chamas brotam do solo sob os passos dos assaltantes. Diante destes prodígios, os bárbaros apavorados recuam. Sua armada foge enlouquecida. O próprio Deus se defendera (3).

(3). “Vê-se ainda no recinto de Minerva”, diz Heródoto, VIII, 39. – A invasão gaulesa, que teve lugar 200 anos mais tarde, foi repelida de maneira análoga. Lá também forma-se uma tempestade, o raio cai várias vezes sobre os gauleses, o solo treme sob seus pés. Eles vêem aparições sobrenaturais. E o templo de Apolo fica incólume. Estes fatos parecem provar que os sacerdotes de Delfos possuíam a ciência do fogo cósmico e sabiam utilizar a eletricidade por meio de poderes ocultos, como os magos caldeus. – Vide Amédée Thierry, Histoire des Gaulois, I, 246.

Teriam estas maravilhas ocorrido, estas vitórias que a humanidade conta como suas, teriam elas ocorrido se trinta anos antes Pitágoras não tivesse surgido no santuário délfico para ali reacender o fogo sagrado? É pouco provável.

Uma palavra ainda a respeito da influência do mestre sobre a filosofia. Antes dele, houve físicos de um lado, moralistas de outro.

Pitágoras fez entrar a moral, a ciência e a religião em sua vasta síntese.

Esta síntese não é senão a doutrina esotérica, cuja plena luz procuramos encontrar no fundo da iniciação pitagórica. O filósofo de Crotona não foi o inventor, mas o organizador luminoso destas verdades primordiais na ordem científica. Portanto, escolhemos seu sistema como o quadro mais favorável para uma exposição completa da doutrina dos Mistérios e de verdadeira teosofia.

Aqueles que seguiram o mestre conosco terão compreendido que, no fundo dessa doutrina, brilha o sol da Verdade-Una. Encontram-se seus raios espalhados nas filosofias e nas religiões, mas o centro está lá.

O que será preciso para alcançá-lo? A observação e o raciocínio não são suficientes. Necessita-se ainda, e acima de tudo, da intuição. Pitágoras foi um adepto, um iniciado de primeira ordem. Possuiu a visão direta do
espírito, a chave das ciências ocultas e do mundo espiritual. Ele foi buscar, pois, na fonte primeira da Verdade. E como a essas faculdades transcendentes da alma intelectual e espiritualizada ele acrescentava a observação minuciosa da natureza física e a classificação magistral das idéias por sua elevada razão, ninguém melhor do que ele estava preparado para construir o edifício da ciência do Cosmo.

Na verdade, este edifício jamais foi destruído. Platão, que tomou a Pitágoras toda sua metafísica, teve dele uma idéia global, embora a tivesse exposto com menos rigor e nitidez. A escola alexandrina ocupou-lhe os pavimentos superiores. A ciência moderna tomou-lhe o rés-do-chão e consolidou-lhe os fundamentos. Numerosas escolas filosóficas, seitas místicas ou religiosas habitaram diversos de seus compartimentos. Mas nenhuma filosofia jamais abrangeu o seu conjunto. É este conjunto que nos propusemos reencontrar aqui, em sua harmonia e unidade.












Pitágoras, Filósofo e Matemático, grego, nasceu na pequena ilha de Samos (Ásia Menor), no mar Egeu, aproximadamente em 580 a.C., sendo filho de um opulento comerciante, pertencia a uma família de aristocratas.

No início de sua juventude, estudou filosofia sob os cuidados de um discípulo de Tales, o filósofo Ferecídio.  Ainda bem jovem, foi para o Egito, onde ele e vários outros filósofos foram iniciados nos antigos Mistérios egípcios.  Viajou também para a Babilônia e Caldéia, onde deu as últimas pinceladas em seus estudos sobre o mistério do universo.

Enfim, dotado de habilidades matemáticas que foram adquiridas nas viagens pelo mundo na juventude, principalmente, com os egípcios e babilônios onde aprendeu novas técnicas, isto porque esses povos antigos tinham ultrapassado a simples contagem tendo já avançado para cálculos mais complexos, como por exemplo, a criação de sistemas sofisticados de contabilidade e a construção de prédios.

Partiu então para Creta a fim de receber os ensinamentos do filósofo Epimênides, e finalmente retornou a Samos.  Entretanto, as condições políticas de sua ilha o impediram de ensinar livremente sobre suas experiências. Dada à tirania de Polícrates, Pitágoras emigrou de Samos para o Sul de Itália, estabelecendo-se em Crotona. Ele condenou publicamente a tirania em Samos e foi subsequentemente exilado em Crotona, onde naquela época a presença da linguagem grega era muito forte. Aí, teve a felicidade de se encontrar com um dos homens mais ricos da época, Mílon, que para além de outros interesses, apreciava e estudava a filosofia e a matemática. Ao morrer, cedeu parte da sua casa a Pitágoras com o propósito de aí ser estabelecida uma escola. Foi então fundada a escola pitagórica, dedicada ao estudo dos números. Os membros desta escola ficaram conhecidos por pitagóricos que podem considerar-se como uma ordem religiosa e uma escola filosófica. Pensa-se que a sua filosofia se baseava no lema "O número é tudo", isto é, o "número era a substância de todas as coisas". Faziam parte desta Irmandade Pitagórica, cerca de seiscentos seguidores, entre os quais haviam vinte e oito irmãs, sendo que uma delas era a sua estudante favorita, a filha de Mílon, Theano, que acabou por se casar com Pitágoras apesar da diferença de idade.

Como iniciado e mestre, Pitágoras deu continuidade às doutrinas, que aprendera no Egito, na grande escola iniciática que fundou em Crotona. Foi lá que ele fundou sua própria escola de filosofia, sobre cujo portal lia-se: "Deus extraiu a Terra do nada, assim como extraiu o Um do nada para criar a multiplicidade". Isto se expressava de forma sumária a visão de Pitágoras sobre a criação do universo, a qual é compartilhada hoje pelos místicos. 

Suas doutrinas místicas com relação à natureza da alma e a relação dessa com o corpo integram os ensinamentos místicos e ocultistas gerais que são expostos atualmente.  Sua Ética, suas normas de comportamento, especialmente as que visam à consecução duma consciência espiritual, muitas vezes são ministradas por instrutores de esoterismo sem pleno conhecimento de sua origem.  Atribui-se a Pitágoras a descoberta das relações matemáticas entre as várias notas da escala musical.  Ele teria medido uma corda vibrátil e descoberto que a freqüência duplicava em cada oitava.  Pode ser que esse fenômeno lhe tenha sido demonstrado pelos sábios sacerdotes menfitas, a cuja cidade viajou e onde foi iniciado nos mistérios.

Na escola de Pitágoras, a filosofia era ensinada em várias etapas.  A instrução começava pelo silêncio absoluto e atendimento a palestras, e terminava em estágios mais avançados, com discussões em grupo sobre matemática, física e astronomia. Devido aos costumes dessa escola (diz-se que seus integrantes não se conheciam uns aos outros, pois se reuniam encapuzados), é difícil especificar o papel desempenhado por esta ou aquela figura na elaboração da doutrina, principalmente quanto à sua origem.  A geometria tinha uma posição-chave em seus ensinamentos, pois ele acreditava que "Deus está perpetuamente medindo a terra" (de geo, gaia=terra, e metro=medir).  Ele combinava matemática com música, e considerava a harmonia matemática como a pedra fundamental de toda a criação, existência e operação do universo.

Pitágoras concebeu que "as coisas são números"- em outras palavras, cada realidade, cada coisa que percebemos, possui natureza vibratória e tem seu número específico de vibrações.  Consequentemente, alguém que conheça o nível vibratório da essência ou energia de um objeto poderá, portanto, controlar sua forma de expressão - exatamente o que a Física moderna está querendo fazer.  Além disso, cada realidade ou coisa teria uma relação matemática ou um lugar no grande teclado universal.  Do mesmo modo que existe uma harmonia entre as notas de um teclado musical, Pitágoras afirmou que todas as coisas têm sua relação numérica ou harmônica no Cosmos.  Essa, pois, foi à primeira postulação de um universo que possui uma disposição ordenada, disposição essa que possibilita uma pesquisa científica experimental.

Pitágoras elaborou uma teoria que, no que se refere ao fenômeno do som, era parcialmente demonstrável.  Tratava-se duma premissa lógica, portanto, projetar isso à esfera de outros fenômenos naturais.  Ele defendia a idéia de que, se picos altos e baixos podem ser combinados numa perfeita harmonia, era natural supor que todos os objetos possuem relacionamento análogo.  A teoria dos opostos ou contrários, como quente e frio, duro e macio, como a causa fundamental na forma das coisas, era uma idéia corrente na época de Pitágoras. (Aliás, que já existe bem antes de Pitágoras, como vimos em outros Mestres)  Para ele, a harmonia significava um equilíbrio ou uma fusão dos contrário.  Num universo ou realidade estável, haveria a fusão de opostos numa proporção que pudesse ser expressa numericamente. Para Pitágoras, o número era "a chave do universo". Se descobrirmos o número e a proporção de toda a realidade, conhecemos o segredo do universo.  Séculos mais tarde, John Dalton, eminente também no campo científico, apresentou uma concepção semelhante de proporções fixas dos elementos químicos.

O pitagorismo desenvolveu também um grande esforço no sentido de relacionar a astronomia com a matemática, usando para isso a aritmética, a geometria e até a música. 

Pitágoras aplicou seu conceito às distâncias relativas do Sol, Lua e astros.  Imaginou que existia entre eles uma relação harmônica que poderia ser expressa numericamente.  Trata-se duma teoria que foi defendida em tempos mais recentes, embora de modo algo diverso.  Pitágoras disse que o Sol, a Lua e os astros possuíam freqüências vibratórias correspondentes a oitavas específicas da escala universal, cada qual produziria vibrações, do mesmo modo que uma lira produz sons.  Em outras palavras, se os planetas são vibratórios, devem propagar oitavas que podem ser percebidas, do mesmo modo que quando alguém tange as cordas dum instrumento musical.

Nesse ponto de sua filosofia, Pitágoras foi mal compreendido por muitos, ou pelo menos mal-interpretado.  Ele não quis dizer que essa “música das esferas”, essa harmonia do universo planetário, pode ser audível fisicamente como ouvimos a voz de outra pessoa.  Para fazer-lhe jus, devemos dizer que ele quis dizer que se não ouvimos essa música das esferas é porque não estamos harmonizados com sua freqüência vibratória - esse "ouvir" não deveria ser concebido no sentido objetivo ou físico. Com efeito, afirmou ele que a alma do homem deve ser posta em harmonia com a harmonia universal superior das energias cósmicas para que a pessoa pudesse ouvi-la.  A palavra ouvir deve ser entendida como apreensão outra que não a percepção auditivia.

Misticamente, essa “música das esferas” é o resultado de uma harmonização pessoal com o Cósmico.  Trata-se de um grau de Cosnciência Cósmica.  As sensações que se tem dessa harmonia, quando perfeita, nem sempre são percebidas como impressões reais de audição.  A experiência pode ser como um êxtase de sensação ou como um sentimento de profunda paz.

A seus discípulos de Crotona, ensinava que a felicidade maior está em nos colocarmos em harmonia - isto é, em nos colocarmos numa relação apropriada com o movimento universal de todas as coisas.  Alcméon de Crotona, um filósofo pitagórico, disse: "Todas as coisas divinas, a Lua, o Sol, os astros e todo o céu estão em contínuo movimento." Essa afirmação abriu a porta a uma investigação científica da unidade de toda a realidade.  Pitágoras propôs uma propriedade ou qualidade comum de todas as coisas.

A saúde também era considerada como a harmonia adequada do corpo.  Afirmava-se que deve haver uma consonância dos opostos no corpo, isto é, os opostos devem estar presentes na proporção correta para que a saúde seja preservada.  A doença era considerada "uma expansão desproporcionada de um ou mais dos contrários".

Pitágoras acreditava na reencarnação, porque achava que ela conduzia a humanidade para esferas mais elevadas de espiritualidade e um desenvolvimento superior contínuo.

Após sua morte (cerca de 500 a.C.) Pitágoras assumiu proporções lendárias aos olhos das gerações que se seguiram.  Foi considerado um semideus, enquanto matemáticos dessas gerações posteriores foram tidos como reencarnações de Pitágoras.  Suas escolas de misticismo continuaram operando em cidades ao sul da Itália e na Sicília, e suas visões filosóficas foram expostas por muitos séculos pelos filósofos neo-pitagóricos.








As regras da Irmandade eram muito rígidas, chegando ao ápice de que cada adepto, ao entrar na Irmandade, teria que doar tudo o que tinha para um fundo comum, mas ao sair receberiam em dobro o que tinham doado e uma lápide seria erguida em sua memória; cada membro da escola era forçado a jurar que nunca revelaria ao mundo exterior qualquer uma das suas descobertas matemáticas; era dever dos seus adeptos atribuir ao mestre e fundador todas as conquistas alcançadas.

Logo depois de fundar a Irmandade, Pitágoras criou a palavra filósofo e definiu os objetivos da escola. De entre as lendas que cercam a vida de Pitágoras, algumas asseguram que ele na verdade não era um homem comum, mas sim um Deus que tomara a forma de ser humano para melhor guiar a humanidade e ensinar a filosofia, a ciência e a arte.

A escola pitagórica diversificou-se em dois ramos de estudos científicos, sendo que um deles tratava da teoria matemática que englobava a astronomia e a arte médica, e o outro ramo dedicava-se à doutrina metafísica, que posteriormente passou a ser denominada de doutrina dos números. Esta última, tinha como objetivo levar à determinação numérica das relações permanentes em que consiste a vida do universo.

Os pitagóricos afirmavam que o número é a essência das coisas e defenderam a concepção segundo a qual, assim como todos os números compõem-se da soma de pares e ímpares, as coisas encerram determinações opostas, como as de limitado e ilimitado, concluindo-se que todas as coisas são vistas como conciliação de opostos.

A descoberta de grandezas que não podiam ser representadas por um número inteiro nem por uma fração de números inteiros, às quais deram o nome de alogon, que quer dizer o inexprimível, surpreendeu e chocou os pitagóricos, admiradores dos números, originando uma crise nos fundamentos da matemática. Juraram nunca o revelar a ninguém fora da sua sociedade; mas a notícia espalhou-se e a lenda diz que Pitágoras afogou um membro que divulgou ao mundo o segredo da existência dos estranhos números irracionais.

Pitágoras morreu por volta de 500 a.c. e não deixou nenhum registro acerca do seu trabalho. O centro de Crotona foi destruído por um grupo rival político, sendo a maioria dos seus membros morta, e os restantes dispersaram-se pelo mundo grego levando a sua filosofia e o misticismo dos números. 



 
A escola de Pitágoras que era aristocrática, chegou a tentar também uma ação política e com isso excitou a malevolência dos profanos; por ocasião de uma revolta popular, a casa de Mílon foi incendiada e Pitágoras refugiou-se em Tarento, onde pouco depois foi assassinado durante outra revolta. Um grupo exaltado cercou a casa em que se achava Pitágoras e incendiou-a. O filósofo, sua esposa e alguns discípulos pereceram nesse incêndio (Cf. BELL, G.,30).

Pitágoras, a quem a geometria deve este caráter rigoroso de dedução que a distingue ainda hoje, conhecia e ensinava ao que parece tudo o que, em substância, encerram os dois primeiros livros dos Elementos de Euclides. Acreditava que a ciência dos números encerrava o fundamento da teoria do Universo e chegava a atribuir propriedades sobrenaturais aos números e figuras geométricas.

Os pitagóricos dividiam os assuntos matemáticos em quatro secções:

1) Os números absolutos ou a Aritmética;
2) Os números aplicados ou a Música;
3) As grandezas no estado de repouso ou a geometria;
4) As grandezas em movimento ou a Astronomia.

Esse quadrivium foi durante muito tempo considerado como  constituindo um curso mínimo para uma instrução liberal. 






O PENTAGRAMA
 




Desde os primórdios da humanidade, o ser humano sempre se sentiu envolto por forças superiores e trocas energéticas que nem sempre soube identificar. Sujeito a perigos e riscos, teve a necessidade de captar forças benéficas para se proteger de seus inimigos e das vibrações maléficas.

Foi em busca de imagens, objetos, e criou símbolos para poder entrar em sintonia com energias superiores e ir ao encontro de alguma forma de proteção. Dentro destes inúmeros símbolos criados pelo homem, se destaca o pentagrama, que evoca uma simbologia múltipla, sempre fundamentada no número 5, que exprime a união dos desiguais.

As cinco pontas do pentagrama põem em acordo, numa união fecunda, o 3, que significa o principio masculino, e o 2, que corresponde ao princípio feminino. Ele simboliza, então, o andrógino. O pentagrama sempre esteve associado com o mistério e a magia. Ele é a forma mais simples de estrela, que deve ser traçada com uma única linha, sendo consequentemente chamado de "Laço Infinito".

A potência e associações do pentagrama evoluíram ao longo da história. Hoje é um símbolo omnipresente entre os neo-pagãos, com muita profundidade mágica e grande significado simbólico. Um de seus mais antigos usos se encontra na Mesopotâmia, onde a figura do pentagrama aparecia em inscrições reais e simbolizava o poder imperial que se estendia "aos quatro cantos do mundo".

Entre os Hebreus, o símbolo foi designado como a Verdade, para os cinco livros do Pentateuco (os cinco livros do Velho Testamento, atribuídos a Moisés). Às vezes é incorretamente chamado de "Selo de Salomão", sendo, entretanto, usado em paralelo com o Hexagrama.

Pitágoras, filósofo e matemático grego, grande místico e moralista, iniciado nos grandes mistérios, percorreu o mundo nas suas viagens e, em decorrência, se encontram possíveis explicações para a presença do pentagrama, no Egito, na Caldéia e nas terras ao redor da Índia.

A geometria do pentagrama e suas associações metafísicas foram exploradas pelos pitagóricos, que o consideravam um emblema de perfeição. A geometria do pentagrama ficou conhecida como "A Proporção Dourada", que ao longo da arte pós-helênica, pôde ser observada nos projetos de alguns templos.

- Para os agnósticos, era o pentagrama a "Estrela Ardente" e, como a Lua crescente, um símbolo relacionado à magia e aos mistérios do céu noturno;
- Para os druidas, era um símbolo divino;
- No Egito, era o símbolo do útero da terra, guardando uma relação simbólica com o conceito da forma da pirâmide.
- Para os celtas pagãos atribuíam o símbolo do pentagrama à Deusa Morrigan;
- Os primeiros cristãos relacionavam o pentagrama às cinco chagas de Cristo e, desde então, até os tempos medievais, era um símbolo cristão.

Antes da Inquisição não havia nenhuma associação maligna ao pentagrama; pelo contrário, era a representação da verdade implícita, do misticismo religioso e do trabalho do Criador.

O imperador Constantino I, depois de ganhar a ajuda da Igreja Cristã na posse militar e religiosa do Império Romano em 312 d.C., usou o pentagrama junto com o símbolo de chi-rho (uma forma simbólica da cruz), como seu selo e amuleto.

Tanto na celebração anual da Epifânia, que comemora a visita dos três Reis Magos ao menino Jesus, assim como também a missão da Igreja de levar a verdade aos gentios, tiveram como símbolo o pentagrama, embora em tempos mais recentes este símbolo tenha sido mudado, como reação ao uso neo-pagão do pentagrama.

Durante a purgação das bruxas, outro deus cornudo, como Pan, chegou a ser comparado com o diabo (um conceito cristão) e o pentagrama - popular símbolo de segurança - pela primeira vez na história, foi associado ao mal e chamado "Pé da Bruxa".






VERSOS DOURADOS DOS PITAGÓRICOS

PREPARAÇÃO


Presta a Deus imortal o culto consagrado;
Conserva a tua fé; dos vultos do passado,
Ou santos ou heróis, louva a divina ação.


PURIFICAÇÃO

Sê bom filho e bom pai; sê justo como irmão;
Amável como esposo; escolhe como amigo
Aquele que tiver luz para repartir contigo
E dê conselhos bons que o porte não desminta.
Se o fogo das paixões for cinza nele extinta,
Imita o seu exemplo, escuta o seu conselho,
Sê tu, para o refletir, um voluntário espelho;
Jamais te afastes dele por fútil discrepância;
Enjaula dentro em ti a fera da arrogância.
Sê sóbrio, ativo e casto: evita a irritação;
À raiva fecha a alma, ao ódio o coração.
Em público ou privado o mal jamais pratiques;
A quem te der lições escuta e não critiques;
Respeita-te a ti próprio, o sábio verdadeiro
Nada diz, nada faz sem refletir primeiro.
Sê justo. As más ações são catacumbas frias
Para sepultar, na morte, os bens e as honrarias;
Toda a riqueza é vã se foi contra um dever,
O fácil de ganhar, é fácil de perder.
O cálice da amargura imposto pela sorte
Aceita-o resignado, ele te fará mais forte.
Em mil fiéis ao erro, um só busca a verdade,
Mas Deus protege o sábio e livra-o da maldade.
O filósofo aprova ou condena sem tédio
E onde encontrar o erro incapaz de remédio,
Afasta-te e espera. "Afasta-te e espera!"
Grava bem esta lei, medita-a, considera
Quanta inútil pendência ela pode evitar-te.
Com todos sê cortês, sê nobre em toda a parte,
Não dês exemplos maus nem os sigas tampouco;
Agir sem fim nem causa é proceder de louco.
Olhos e ouvidos cerra a todo o preconceito.
A todo o fanatismo ou julgamento feito
Preconcebidamente e só por teimosia;
Seja tua e só tua a razão que te guia.
Não pretendas fazer o que a tua ignorância
Não permitir; o tempo, a atenção e a constância
Hão de trazer-te um dia o poder que te falta.
Aprender a Servir, eis a ambição mais alta
Que deve nortear a tua vida inteira.
Cuida bem do teu corpo; o trabalho aligeira
Quando ele se queixar, mas não lhe satisfaças
Apetites boçais; as dores e as desgraças
Começam quando o corpo ordena mais que a alma;
Se o serves uma vez, já nunca mais se acalma.
Do luxo ou da avareza os males são iguais,
Diferentes na aparência, irmãos em tudo o mais.
Procura encontrar sempre o justo médio termo,
Pois nenhum corpo é são estando o mental enfermo
Formula, ao despertar, o teu programa honesto
E nunca para amanhã deixes ficar um resto.


PERFEIÇÃO

Antes de adormecer repassa no mental
As ações que fizeste ou para bem ou para mal.
Não repitas as más, insiste só nas boas,
Estende a compaixão aos brutos e às pessoas;
A cada novo esforço, a cada prova rude,
Acenderás em ti a luz duma virtude.
Assim sublimarás a Tétrada Sagrada,
A tua quaternária e cósmica morada,
Alma, espírito e corpo – um embrião de Deus.
Procura com fervor abrir os olhos teus
À luz que vem do Olimpo; o teu esforço é vão,
Se o céu te não cobrir da sua proteção;
Só ele pode acabar as obras que começas
E dar-te, para o bem, o auxílio que lhe peças.
Estuda a natureza, aprende a lei sublime
Que rege a imensidade e que à matéria imprime
A vida universal. Perante estudos sérios,
Abrem-se pouco a pouco as portas dos Mistérios.
Então descobrirás a luz do teu destino
Que, por divino amor do nosso Pai Divino,
É vir colaborar no plano do Universo,
Com Deuses de que tu és "Uno", mas diverso.
Então desprezarás todo o desejo fútil;
Verás que o sofrimento é criação inútil
Dos erros e do vício e da maldade crua
Da torva insensatez dos outros e da tua,
O homem vive e morre a procurar um bem,
Sem nunca reparar nos bens que em si contém.
Quem não souber ser bom não sabe ser feliz,
É náufrago num mar de praias sempre hostis;
E entre o fraguedo atroz que a riba lhe apresenta,
Não pode resistir nem ceder à tormenta.
Porque não descobriu que transporta consigo
Um farol para o guiar a salvamento e abrigo.
Por entre os vendavais dessa jornada ignota,
Tem cada qual de abrir a sua própria rota.
Uma estirpe divina impõe à humanidade
Buscar no mar do erro o porto da Verdade;
A natureza ajuda o homem no caminho,
Nunca o desamparou, nunca o deixou sozinho.
Homem sábio, homem bom, tu que já penetraste
Os mistérios da vida e mediste o contraste
Entre o Bem e o mal, concentra-te um momento
E medita que deus, ao dar-te o Pensamento
E muitos outros dons que reflete os Seus,
Fêz-te um Ser Imortal, porque és tu próprio um deus.

Autor: Anônimo (Atribuído a Pitágoras)